Luís Souta
A ANTROPOLOGIA QUESTIONA-SE
No nosso anterior artigo, nesta
rubrica, a propósito da relação oralitura vs literatura / cultura
popular vs cultura erudita, iniciámos
o questionamento de três “ortodoxias” fundadoras
da Antropologia que andam em torno (i) do objecto, (ii) do trabalho de campo (iii)
da sincronia. Depois de abordamos
as referentes ao “objecto”, hoje, centramo-nos nas outras duas.
(ii) Quanto ao trabalho de campo: segundo Maurice Godelier «a nossa disciplina foi
construída em torno de um método, a observação participante, que postula a
imersão mais ou menos longa de um observador (normalmente um estranho) no grupo
observado.» (1992:104). A reputação e prestígio da Antropologia advém-lhe muito
da originalidade e eficácia desse método – o trabalho de campo através da
observação participante e, como corolário, a comparação das formas culturais
(semelhanças e diferenças entre grupos). Como relembra Robert Rowland, a
Antropologia, no conjunto das ciências sociais, é aquela «que mais directamente
levanta problemas relacionados com a possibilidade e com as implicações da
comparação» sendo que «a comparação, explícita ou implícita, desempenha ela própria
um papel determinante na constituição do seu campo analítico» (1998:103).
O trabalho de campo implica a
partida para um «terreno», onde se privilegia o contacto com a realidade, em
que se procede à observação directa de práticas e comportamentos humanos, se
fazem entrevistas (os anciãos foram, durante largos anos, os preferidos), se
recolhem documentos, se procura viver com (e como) o grupo, procurando reduzir,
o mais possível, a distância e o carácter alienígeno de que vem de fora, em
regra, de outro continente. O distanciamento na observação e análise e o olhar
exterior, face a uma realidade estranha, fazem da distância «a condição por
excelência do conhecimento etnográfico».
O método antropológico decorre igualmente de dois outros factores caracterizadores
das sociedades tradicionais: a ausência de documentos escritos e a sua
dimensão, o que obriga, por um lado, a um contacto directo com as populações e,
por outro, permite o seu estudo global. Daqui decorrem as grandes mais-valias
antropológicas: a experiência cross-cultural,
a perspectiva holística, e um conhecimento mais “subjectivo”1 por
uma entrada mais personalizada dentro do universo estudado.
O projecto de construção de uma «etnologia europeia», por que se tem batido o antropólogo francês Isac Chiva, coloca novas questões metodológicas pois «o terreno europeu é muito mais complicado que o terreno dito exótico, pela dimensão e pela sua história»2.
No entanto, uma ciência não é o
método, e hoje, com o primado do ecletismo e da multi/inter/trans/
disciplinaridade, ainda menos. Marc Augé considera mesmo que a «questão das
condições de realização de uma antropologia da contemporaneidade deve ser
deslocada do método para o objecto» (1992:47).
No seio na nossa comunidade científica,
é conhecida a linha divisória entre quem é ou não antropólogo, de facto,
essa linha é a «experiência iniciática» (Rowland, 1998) da prática do trabalho
de campo (e quanto mais prolongada a estadia, e maior o afastamento geográfico,
mais estatuto se aufere). Os outros, os excluídos por esta tirana “espada de
Dâmocles”, chamam em sua defesa a autoridade de Edmund Leach e da sua célebre
frase «a antropologia é o que fazem os antropólogos».
No processo de “ocidentalização”
disciplinar, acima referido, a Antropologia optou naturalmente pelas
comunidades «acústicas», onde a ausência de documentos escritos era um dos seus
traços distintivos (o analfabetismo secular, entre nós, era propício a essa démarche). Nessa aventura «romântica»,
pelo interior do país, descobre-se o folclore, recolhem-se os artefactos,
compilam-se lendas, costumes e tradições. Ficámos com a «literatura oral»: os
mitos, os provérbios, as adivinhas, os contos, as cantigas e lengalengas
(sempre adjectivadas de popular), aquilo a que Bernard Mouralis (1975) chama As ContraLiteraturas ou que Arnaldo
Saraiva (1975, 1980) designa de Literatura
Marginalizada. E assim, lá estava o capítulo obrigatório em qualquer
monografia funcionalista dedicado à oralitura. Também aqui, estamos numa área
que deu o que tinha a dar. O analfabetismo é residual, ainda que baixando a um
ritmo lento, circunscrito a nichos etários e reduzido à escala da “extinção”; a
sociedade do conhecimento e da informação avança, pelo que a escrita é
incontornável para os antropólogos (como Jack Goody o demonstrou).
(iii) Quanto à sincronia: os antropólogos têm privilegiado a dimensão sincrónica e
recorrido à dimensão diacrónica de forma pontual, esporádica e acessória, quer
pelas genealogias e histórias de vida (Raúl Iturra, Ricardo Vieira) quer pelos
que ensaiaram uma História Antropológica (Randles, Wachtel, Rowland…).
Em suma, temos andado mais pelo
“local” (comunitário, de preferência), o nível micro, o estudo de caso, o tempo
presente. Ora o alargamento temporal das análises é um ganho considerável na
compreensão de realidades culturais dinâmicas. Não podemos continuar a ser só
“fotógrafos” sociais na era do multimedia.
O trabalho que temos vindo a
desenvolver – em torno da escola e de uma minoria étnica –, tendo por centro as
obras literárias de escritores portugueses, procura ultrapassar alguns dos
limites que estas três “ortodoxias”3 estabelecem. Não partilhamos a
ideia de que o texto literário é “propriedade” intelectual exclusiva dos da Literatura. Não há, na procura do
conhecimento e na compreensão aprofundada dos fenómenos, “quintais” de
exclusividade. Nada do que é produto do Homem nos deve ser alheio, e muito
menos a literatura por se tratar de uma das mais importantes (e constantes)
realizações do ser humano.
Por exemplo, o estudo sobre a
diversidade da escola e dos processos de aprendizagem, a partir da literatura
portuguesa dos séculos XIX e XX, inscreve-se numa vertente da Antropologia da
Educação. Necessariamente que a “deslocamos” do campo tradicional, físico,
concreto, real, observável, para uma outra materialidade, de contornos mais
diluídos, de realidades mais difusas – o campo ficcional. Quer por uma via quer
por outra estamos perante “representações”, produtos historicamente
construídos, onde a marca do autor (seja ele o antropólogo ou o escritor) se
faz sentir. As culturas não são “objectos” científicos, isolados, neutros,
verdades em si.
Por outro lado, não se pode dizer, com rigor, que haja nesta investigação em particular (em que a escola está no seu centro) ausência de trabalho de campo. A minha vida no terreno da educação é bem longa: 16 anos como estudante e 43 como professor (em diferentes níveis de ensino); o que equivale a 59 anos! Ou seja, desde que entrei na 1ª classe que, praticamente, nunca mais saí da escola… até ao dia da minha aposentação. Trata-se de uma “modalidade” de trabalho de campo com algumas especificidades – auto-etnografia (Menely & Young, 2005) –, num sector onde tenho vivido intensamente e sobre o qual tenho reflectido, investigado e publicado. Creio, que essa continuada permanência no “campo”, me dá um capital de conhecimento e experiência valiosos para a compreensão, descodificação e análise das obras literárias com temas de ensino e cuja pesquisa se iniciou há umas três décadas. Mais tardia foi a entrada no “terreno” literário, o dos escritores (1998). No seu conjunto, são muitos anos próximo dos “objectos” de estudo… Como diz Pierre Erny, a fechar o seu livro Ethnologie de l’éducation: «A chacun son style e sa méthode, et en dernière analyse on juge les arbes aux fruits qu’ils portent» (1981:196).
Um trabalho deste tipo lança a
Antropologia nos trilhos da cultura erudita e da diacronia. Ambas menos
acarinhadas, ou mesmo evitadas, pelos antropólogos, porque, em certa medida,
“alheias” à especificidade fundadora da disciplina. Não se pretende, de modo algum,
pôr em causa um percurso e uma história de uma disciplina científica – frágil,
cultivada em nichos académicos, com dificuldades em impor a sua utilidade
social – mas que, e talvez por tudo isto, tem as suas âncoras, as suas
seguranças, os seus “clássicos”, que deram provas de eficácia e reconhecimento.
Correm-se riscos quando se opta por desbravar veredas em vez de ir por caminhos
conhecidos e seguros mas Bourdieu já alertara para esses riscos: «A ruptura que
é preciso operar para fundar uma ciência rigorosa das obras culturais (…)
implica uma verdadeira conversão da maneira mais comum de pensar e de viver a
vida intelectual, uma espécie de épochè
da crença comummente concedida às coisas da cultura e às maneiras legítimas de
as abordar» (1992:216).
O material literário tem essa dupla potencialidade, o de conjugar o racional e o afectivo numa escrita reflexiva que encoraja os investigadores sociais a alargar e aprofundar o conhecimento e o saber, sem tabus de fontes ou de métodos. Por isso, reclamamos uma heterogeneidade nos métodos, técnicas, fontes, e suportes… Queremos uma antropologia ousada na procura de novas fronteiras, novas temáticas, novas abordagens.
Notas
1. Lévi-Strauss considera a antropologia social como, provavelmente, a única ciência, «a fazer da subjectividade mais íntima um meio de demonstração objectiva» (1973:23).
2. “O património etnológico é uma noção inovadora”, entrevista de Isac Chiva ao Expresso, 11/05/1996, p. 120.
3. Temos bem presente o pensamento de Miguel Torga: «Não existem heterodoxos fora das ortodoxias» (1976:74).
Referências
AUGÉ, Marc (1992) Não-lugares: Introdução a uma Antropologia da Sobremodernidade. Venda Nova: Bertrand Editora, 1994.
BOURDIEU, Pierre (1992) As Regras da Arte: Génese e Estrutura do Campo Literário. Lisboa: Editorial Presença, 1996.
ERNY, Pierre (1981) Ethnologie de l’éducation. Paris: PUF/ l’éducateur, nº 73.
GEERTZ, Clifford (1988) “Estar lá, escrever aqui”. Diálogo, nº 58, vol. 22, nº 3, 1989, pp. 58-63.
GODELIER, Maurice (1992) «“Espelho meu, espelho meu…” O papel da Antropologia no passado e no futuro: uma avaliação provisória». Ler História, nº 23, pp. 101-116.
MENELEY, Anne & YOUNG, Donna J. (2005) Auto-Ethnographies. The Anthropology of the Academic Practices. University of Toronto Press / Anthropological Theory and Methods.
MOURALIS, Bernard (1975) As ContraLiteraturas. Coimbra: Livraria Almedina/ C. Novalmedina, nº 31, 1982.
ROWLAND, Robert (1998) “Além da diferença”. Leituras – revista da Biblioteca Nacional, nº 3, Outubro, pp. 103-8.
SARAIVA, Arnaldo (1975) Literatura Marginalizada. Porto.
SARAIVA, Arnaldo (1980) Literatura Marginalizada: novos ensaios. Porto: Edições Árvore.
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