quinta-feira, 22 de junho de 2023

“Literatura: o pão nosso de cada dia” (XV)

 Luís Souta

MISCEGENAÇÃO DE GÉNEROS LITERÁRIOS

«A literatura serve para mostrar a infinita complexidade dos seres humanos»
(Javier Cercas, entrevista ao Ípsilon, 12/05/2023, p. 10)

    A categorização de obras por géneros literários dá azo a permanentes controvérsias. Parece ser um problema mais de críticos literários e editores do que de escritores. Para os críticos é uma questão de métier, para os editores é a rentabilização das vendas (o romance vende mais(1)), e para os escritores, um assunto, em regra, incómodo havendo muitos que “fogem” ou pelo menos contornam as polémicas em volta da classificação dos seus livros. Por exemplo, Cristóvão de Aguiar rodeia a categorização em géneros, através da ironia: “romance ou o que lhe queiram chamar”, “novela em espiral ou o romance de um ponto a que se vai sempre acrescentando mais um conto”, “narrativa militar aplicada”, “polifonia romanesca”, “diário ou nem tanto ou talvez muito mais” – são algumas das catalogações que utilizou nos seus livros depois da publicação de Raiz Comovida (1978), Prémio Ricardo Malheiros; forma de “fintar” os críticos que à época «dedicavam grande parte da crítica a interrogar-se sobre se a obra era ou não um romance», como nos confessou na entrevista que lhe fizemos em Abril de 2001.

   Vejamos exemplos de alguns autores cujas obras foram categorizadas de forma diferenciada em tempos diferentes. A 1ª edição de Onde a Noite se Acaba (saída no Brasil em 1946) de José Rodrigues Miguéis classifica as histórias como «contos», no entanto, o autor, na carta a Danton Coelho, datada de 1941, menciona-as como «novelas».

    Filha de Labão (1951) de Tomás da Fonseca intitulado pelo editor de «romance» ainda
que o autor a designe por «novela rústica», na página de dedicatória.

Tomás da Fonseca, desenho de Octávio Sérgio (1961)

    Orvalho do Oriente (1981) de Altino do Tojal, surge classificado como romance para, pouco tempo depois, em 1984 (quando se identificam as obras do autor numa outra publicação sua – Os Novíssimos Putos) aparecer catalogado como novela. Mais tarde, Tojal acaba por incluir todo esse livro (composto de três “capítulos”: O Grilo do Pi, Orvalhinho, O Ocidente Misterioso) no Histórias de Macau, um “romance”, como o classifica o crítico J. Pimenta de França (na contracapa do livro) e com a qual o autor não parece discordar como o revelou na entrevista que nos concedeu (Julho de 2001).Teríamos assim, um romance dentro de outro romance! Posteriormente, dois desses “capítulos” originais de Orvalho do Oriente seriam inclusos no livro de «contos» Os Putos, na sua edição de 2001. A versatilidade editorial não se preocupa com catalogações prévias de géneros (que de rígidas nada têm).

    João Gaspar Simões, na nota endereçada ao companheiro José Régio com que abre o romance Amigos Sinceros (1941), sente-se na necessidade de esclarecer o seu desacordo pela decisão da editora em o categorizar como tal: «Não é um romance: é uma novela. Tu sabes que isso para nós significa alguma coisa. Um romance é mais amplo(2) , mais pormenorizado, mais rico. A novela é linear e esquemática: tudo o que nela acontece pertence à economia do desfecho. Os editores, porém, são exigentes: navegam nos ventos do público, e o público, segundo eles, não gosta de novelas. Façamos a vontade ao editor.»

    Pedro Paixão, um escritor de short-stories, quando questionado numa entrevista(3) se não estaria na altura de fazer um romance, responde nestes termos: «mas se chamar simplesmente romance a uma história contada com muitas páginas (…) vou tentar escrever uma só história com muitas páginas.»

    Júlio Conrado, a propósito da 2ª edição do seu O Deserto Habitado, esclarece: «este trabalho, agora rotulado de romance, porque entretanto se foi alargando a classificação do género a obras de média extensão» (1984:10).

    Já José Luís Peixoto, numa recensão no DNA(4) , recorre à metáfora das corridas de atletismo para mostrar como a perspectiva tradicional distinguia os géneros: «O romance seria (…) uma corrida de fundo; a novela seria uma corrida de meio-fundo e o conto seria uma corrida de velocidade.» Acontece que as obras de fôlego ou de síntese não têm, necessariamente, a ver com um esforço diferenciado. Como dizia Heine (citado por Peixoto): «Não fui breve, porque não tive tempo».

Eduarda Dionísio, foto de Luís Souta (2002)

    Mas as fronteiras surgem, às vezes, onde parecia ser óbvia a separação das águas. É o caso da distinção entre prosa e poesia. Esta última, tem vindo a “perder” alguns dos seus traços identificadores, como a rima ou o grafismo. O que provoca equívocos, como nos relata Eduarda Dionísio, na entrevista que nos deu (Julho de 2002), a propósito do seu livro Tina M. provas de contacto (2001): «Já vi em algumas livrarias catalogado como poesia, mas é apenas porque as linhas não chegam até ao fim. É pela mancha gráfica!»

    Irene Lisboa, no seu livro Poesia, entrega-se aos critérios do leitor: «Ao que vos parecer verso chamarei verso, e ao resto chamarei prosa» (1991:238). O verso livre e a poética do quotidiano apontam para uma «linguagem que tende para a prosa mas que a recusa».

    Alguns escritores integram na ficção um tipo de pensamento que habitualmente se exprime pelo ensaio(5) ; e daí recuperarem alguns dos seus artigos, em geral publicados nos jornais, para as suas obras literárias, posteriormente editadas em livro: por exemplo, Aquilino Ribeiro usa extractos dos seus artigos em O Século (10/01 e 05/02/1927), sobre a (in)utilidade de construir escolas no mundo rural, no livro Aldeia. E o autor acaba por ter dificuldade em categorizar a sua própria obra: «se quisesse pôr um rótulo no meu livro, teria que declinar sucessivamente romance, ensaio, folclore, monografia, crítica, didáctica, etc., para me agarrar ao varia de todos os guisados literários» (1946:7). Em Vergílio Ferreira é difícil distinguir o romance e o ensaio; o romance filosófico ou «romance problema» (como ele o preferia designar) mostra como a separação “clássica” de géneros se tem vindo a esbater, ao associar dois tipos que pareciam estar nos antípodas (a criatividade ficcional vs a racionalidade ensaística). Por sua vez, o romancista José Saramago, põe a hipótese de o não ser quando afirma: «sou mais um ensaísta que, por não saber escrever ensaios, se limitou aos romances»(6).

    Os livros com misturas de géneros então são um quebra-cabeças para catalogadores, bibliotecários, arquivistas e livreiros! Este atenuar, ou melhor, esta crescente e intrincada osmose de géneros defende-o, claramente, Cristóvão de Aguiar, na citada entrevista que nos concedeu, designadamente em torno do seu diário: «tem de tudo um pouco: crónica, conto, acontecimentos históricos e acontecimentos baseados na realidade para se tornarem mais bem inventados…». Tal mescla também se encontra em Mário Cláudio (Astronomia, 2015, Os Naufrágios de Camões, 2017, Memórias Secretas, 2018…) onde historiografia, efabulação e biografia intercomunicam.

    Miguel Torga escreveu: «No meu Diário creio que há muita literatura, também» (1946:173), mas para ele as distinções e classificações de géneros não o preocupavam, como o confessa no Diário IX: «Porque sempre considerei os géneros literários camisas-de-força complacentes que cada possesso alarga à sua medida, nunca me senti apertado em nenhum deles» (1964:100).

    Em suma, as fronteiras de género têm-se vindo a tornar bastante fluídas, sendo, em particular na narrativa, cada vez mais difícil a sua categorização de acordo com modelos estanques. A miscegenação de géneros vai-se impondo…

Notas
1. Os inquéritos nacionais efectuados por Freitas et al. (1992 e 1997) mostram que o «romance» é não só o género de livro mais lido (33,5% contra 13,2% de «contos/novelas») como o mais comprado.
2. Apesar das 203 páginas do livro!
3. Entrevista de Pedro Paixão ao Notícias Magazine, nº 313, de 24/05/1998, p. 73.
4. “O mundo em miniatura”, DNA, nº 190, 22/07/2000, p. 47.
5. Face ao espanto de José Gomes Ferreira quando da atribuição do Prémio Ensaio da Casa da Imprensa ao seu livro A Memória das Palavras, em 1965, Augusto Abelaira esclarecia-o «ensaio é tudo o que não é poesia, nem ficção» (in Passos Efémeros de José Gomes Ferreira, 1990, p. 36).
6. Entrevista de José Saramago ao DNA, 12/12/1999, p. 19.

Referências
AGUIAR, Cristóvão de (1978) Raiz Comovida I - A Semente e a Seiva. Coimbra: Centelha.
CONRADO, Júlio (1974) O Deserto Habitado. Lisboa: Âncora Editora, 2ª edição, nova
versão, 1984.
DIONÍSIO, Eduarda (2001) Tina M. - Provas de Contacto. Lisboa: &etc.
FONSECA, Tomás da (1951) Filha de Labão. Publicações Europa-América/ livros de bolso,
nº 32, 1972.
FREITAS, Eduardo de e SANTOS, Mª de Lourdes Lima dos (1992) Hábitos de Leitura em
Portugal. Inquérito Sociológico
. Lisboa: Publicações Dom Quixote.
FREITAS, Eduardo de; CASANOVA, José Luís e ALVES, Nuno de Almeida (1997) Hábitos
de Leitura em Portugal. Um Inquérito à População Portuguesa
. Lisboa: Publicações Dom
Quixote.
LISBOA, Irene (1991) Poesia: Um Dia e Outro Dia… Outono Havias de Vir. Lisboa:
Presença/ Obras de I.L., nº 1.
MIGUÉIS, José Rodrigues (1946) Onde a Noite se Acaba. Lisboa: Editorial Estampa/ Obras
completas J.R.M., 6ª edição, 1985.
SIMÕES, João Gaspar (1941) Amigos Sinceros. Lisboa: Guimarães Editores, 2ª edição
revista., 1962.
TORGA, Miguel (1964) Diário. Vol. IX, Coimbra.
TORGA, Miguel (1946) Diário. Vol. III, Coimbra, 2ª edição, 1954.
TOJAL, Altino do (1987) Histórias de Macau. Porto: Campo das Letras/ Campo da
Literarura, nº 20, 3ª edição, 1998.
TOJAL, Altino do (1984) Os Novíssimos Putos. Lisboa: Guimarães Editores.
TOJAL, Altino do (1964) Os Putos: Contos da Luz e das Sombras. [Lisboa]: IN-CM/
Biblioteca de Autores Portugueses, 28ª edição revista e aumentada, 2001.
TOJAL, Altino do (1981) Orvalho do Oriente. Lisboa: Sá da Costa Editores.

domingo, 18 de junho de 2023

GENEALOGIA

Luís Santos 

CINCO GERAÇÕES - lado da mãe

1) bisavó Conceição Miranda dos Santos (1878-1968), nasceu ainda antes de Fernando Pessoa, parteira, de Alhos Vedros, teve cerca de vinte irmãos, com fama de santa, porque dizia-se "nunca nenhum parturiente faleceu às suas mãos"... da sua mãe não tinha ideia, mas o meu primo Rodrigo diz que se chamava Iria Rosa dos Santos que faleceu em 1904, e eu acredito;
2) avó Aura Maria Rodrigues (1906-1994, se bem me lembro), corticeira e operária fabril, analfabeta, um percurso temporal semelhante ao de Agostinho da Silva, (quase) inteira travessia do século XX, atravessada pela 1ª República, peste espanhola, 2 grandes guerras, filho na guerra do ultramar, Aura para os amigos, simplesmente;
3) mãe e tia, Lena e Olímpia (nascidas entre a década de 30 e 40 do século passado, a primeira corticeira ainda na adolescência e vida de verdadeira dedicação a marido e filhos; a segunda, uma vida de serviço no Ministério dos Negócios Estrangeiros de Portugal, em vários países, várias línguas;
4) irmã, Célia Santos, à volta de 50 anos, olhos azuis, portuguesa, licenciada, professora, funcionária pública, casada, mãe, guardiã dos mares, continua a fazer por uma vida bem sucedida;
5) filha, Maria do lado da mãe, Luís do lado do pai, junho de 2023, carinhosa refilona, estudos na área da saúde, aqui na praça Gualdim Pais, em Tomar;
enfim, perdoem-me este lugar comum, género humano, genes que saem de genes, culturas que saem de culturas, nos meus mais de 150 anos de idade, lado da mãe, Ilha dos Amores.

CINCO GERAÇÕES - lado do pai
A MINHA AVÓ paterna, Palmira Ribeiro, nasceu no dia 7 de junho de 1903, em terras do Alto Alentejo, na freguesia do Espírito Santo, Nisa, distrito de Portalegre e faleceu em Alhos Vedros, mais ano menos ano, por volta de 1970. Sabe-se que os seus pais, António Maria Ribeiro e Maria Catarina, ou ancestrais, vieram do distrito de Castelo Branco, freguesia de Peral, lá para os lados onde viveu Viriato, chefe dos lusitanos, e donde vieram alguns cristãos-novos...
Por isso, António Maria Ribeiro, meu bisavô, terá vindo a descer Estrela abaixo e, atrás da cortiça, veio montar fabrico em Alhos Vedros que foi próspero, mas a má gestão de descendente familiar direto haveria de dar cabo do negócio.
O MEU AVÔ paterno, José António dos Santos (1887-1962), natural de Alhos Vedros, filho de Luiz António e de Mariana dos Santos. Foi ajudante de caldeireiro dos caminhos de ferro do sul e sueste. Tinha 1 metro e 55 centímetros de altura e "Milho" como alcunha. Viveu, pois, muito tempo ajudando a pôr carvão na caldeira do comboio, entre o Barreiro e Vendas Novas, lugar onde terá tido uma segunda mulher que deu à luz uma tia minha que nunca cheguei a conhecer.
De maneira que o MEU PAI, António Luís Ribeiro dos Santos, mais conhecido por Toninho da mercearia, justamente porque foi merceeiro por conta própria durante 60 anos, a que se podem juntar mais uma dúzia por conta de outrém, resultou de um encontro entre pessoal do Espírito Santo (Nisa) e pessoal da borda água (Alhos Vedros) que, em tempos idos, também terão andado a preparar as caravelas que haveriam de ir ao Brasil e à Índia, entre outros.
EU, nascido em Alhos Vedros, 1960, mesmo paredes meias com uma janela da taberna do Martinho, onde as carretas e as carroças vinham despejar uvas, logo pisadas e fermentadas a caminho do generoso vinhito com que se alegravam as almas, um simples escriba contador de memórias, muito dedicado ao longo dos anos às matérias da educação.
O MEU FILHO Tomás, também nascido em Alhos Vedros, em 1996, genes que vêm de genes no cruzamento de famílias, depois de trabalhar nos aviões, anda em engenheirices programando aplicações dando novas vidas às tele-comunicações.
Em suma, aqui borda de água, gente comum que para sobreviver se foi dedicando, ao longo deste século e meio, à indústria corticeira, aos caminhos de ferro, também à CUF (Companhia União Fabril), às vendas a retalho e, mais recentemente, entre os vivos da linhagem, à persistência em maiores estudos, outras especializações, que mais permitiu uma maior democratização e massificação do ensino.

domingo, 4 de junho de 2023

50ª Feira do Livro de Alhos Vedros

Exmos Senhores

Quando em 1972 a juventude da ACADEMIA MUSICAL E RECREATIVA 8 DE JANEIRO sonhou e fez a I FEIRA DO LIVRO DE ALHOS VEDROS, ainda se escreviam cartas à mão com canetas de tinta permanente ou em máquinas de escrever, peças que hoje constituem maravilhosas antiguidades.

Automóveis eram escassos, os telefones eram raros, poucos tinham televisão, muitos não sabiam ler nem escrever, os meninos e as meninas aprendiam em escolas separadas, muitos livros eram proibidos e no concelho da Moita não havia ensino secundário. Jovens morriam quase crianças na guerra colonial, havia presos políticos, não havia parques infantis, nem recintos desportivos, a mortalidade infantil era alta. As gentes de Alhos Vedros trabalhavam na cortiça, nas confeções e nas salinas, na Cuf e no Caminho de Ferro.

Neste contexto nasceu uma Feira do Livro em Alhos Vedros. Foi uma festa, primeiro sonhada e depois erguida. Um grande músico português Fernando Lopes Graça, depois de ter cá estado com o coro que dirigia, disse ao jornal Notícias da Amadora em 1973: Isto é Heróico!

Este ano vai acontecer a 50a FEIRA DO LIVRO. É a feira do livro associativa mais antiga do país e não se conhece outra no mundo. Só foi interrompida em dois anos de pandemia e durante 48 edições foi montada e desmontada diariamente. Já se realizou em meia dúzia de locais e este ano acontecerá no FAVO (Fábrica de Artes e Ofícios) junto ao Depósito da Água.

Terá livros principalmente de autores locais, pois promover e mostrar o que é nosso, é o lema que nos move. Haverá lançamento de livros, música, tertúlias, animação, exposições, amizade, encontros e cultura e moscatel para brindar.

Precisamos de alguma ajuda para continuarmos esta marcha que muito nos orgulha e que engrandece esta terra, a sua cultura e a sua história de que a Feira do Livro já faz parte com meio século de existência.

Se puder ajudar esta FEIRA DO LIVRO QUE É DE TODOS NÓS, aqui fica o IBAN da Academia. Qualquer quantia é uma boa quantia. Toda o apoio vale a pena.

PT50003504830001443383048

E fica desde já convidado a visitar a FEIRA do LIVRO de 29 de Junho a 2 de Julho no FAVO.

 

Antecipadamente gratos

VIVA A FEIRA DO LIVRO DE ALHOS VEDROS

A Direção da Academia Musical e Recreativa 8 de Janeiro de Alhos Vedros


Cartaz da autoria de Rafael Nascimento