Luís Souta
LITERATURA E EDUCAÇÃO
«Alguém viu a literatura como infância recuperada.Por isso escrevo, sim»(Mortal e Rosa, Francisco Umbral, 2003:81)
A Educação não ganhou ainda autonomia própria enquanto campo temático específicona literatura. Esta evidência pode ser constatada na não existência de nenhuma entrada com essa designação nos Dicionários de Literatura; por exemplo, num dos de maior referência, o dirigido por Jacinto do Prado Coelho, já com várias edições, a “Escola” não é contemplada, mas sim a «Infância» e a «Adolescência»[1], também eles temas, relativamente, recentes no universo literário. E é nestas duas “gavetas” que aparecem indicadas algumas das obras quenos interessaram para a análise do fenómeno educativo. Naturalmente, que estas duas grandes etapas da vida humana são, nos últimos tempos, marcadas por uma ocupação forte na vidaacadémica. Tanto assim é que, como nos relembra Calvino, «o romance de educação [termina] quando o herói atinge a maturidade» (1990:163).
Poder-se-ia supor que seriam os escritores realistas aqueles que, por querem captar o “mundo real”, a sua essência, mais interessaria uma démarche deste tipo. No entanto, vemos que as problemáticas escolares – adjacentes à centralidade que a infância e a adolescência têm em muitas das obras – estão presentes nas diferentes correntes literárias – romantismo(Camilo Castelo Branco), neo-romantismo (Trindade Coelho), realismo (Eça de Queiroz), naturalismo (Fialho de Almeida), simbolismo (Aleixo Ribeiro), saudosismo (Teixeira dePascoaes), orfismo (Fernando Pessoa), presencismo (José Régio), neo-realismo (SoeiroPereira Gomes), existencialismo (Vergílio Ferreira), surrealismo (Mário-Henrique Leiria) – e a especificidade e focagem desses olhares, em vez de nos “embaraçar”, servem antes para complementar o puzzle humano e educativo, que se (re)faz em dinâmicas permanentes.
O romance português, nos anos 40 e 50, dedica particular atenção à vida do jovem em (de)formação na clausura do internato, seja ele numa instituição laica, religiosa ou militar. Várias são as obras que o abordam: Ilha Doida (1945) de Joaquim Ferrer, A Velha Casa I - Uma Gota de Sangue (1945) de José Régio, Internato (1946) de João Gaspar Simões, Uma Luz ao Longe (1948) de Aquilino Ribeiro, Manhã Submersa (1954) de Vergílio Ferreira, Malta Brava (1955) de Alexandre Cabral, Adolescente Agrilhoado (1958) de José Marmelo e Silva, e, ainda que só em alguns episódios, A Origem (1958) de Graça Pina de Morais. Mais tarde temos o romance Lúcialima (1983) de Maria Velho da Costa dando particular destaque, em episódios marcantes, à vida do colégio interno feminino e do colégio militar. Em todoseles, a vida de estudo, as aulas, o quotidiano da escola-prisão estão presentes de forma constante e intensa. Esta é a instituição escolar em que, de forma mais explícita, e brutal, se procura domesticar os jovens e uniformizar os seus comportamentos. Pela disciplina, pelo medo e pelo castigo. O internato é, simultaneamente, um local de educação e de repressão. Aviolência da “pedagogia musculada”, o a mbiente asfixiante e despótico que neles dominava, leva a que se tome o microcosmos do internato como metáfora do país-prisão que vive em ditadura, privado de liberdade, fechado sobre si. Tal como na sociedade, também ali se registam resistências, se subvertem as regras, e na revolta os alunos procuram a evasão para oexterior. Para o reencontro com o lar de que foram, forçosamente, apartados.
Muitos outros escritores produziram romances geracionais, onde a vida escolar preenche parte substancial do jovem adolescente, em especial no liceu ou na universidade(aqui numa separação desejada da família, na procura dos caminhos da autonomia, da liberdade e, até de uma certa, boémia). Eis algumas dessas obras: A Via Sinuosa (1918) de Aquilino Ribeiro, Um Fio de Música (1937) de Raquel Bastos, os três volumes de A Criação do Mundo (1937, 1938, 1939) de Miguel Torga, Bússola Doida (1938) de Aleixo Ribeiro, As Sete Partidas do Mundo (1938) e Fogo na Noite Escura (1943) de Fernando Namora, Amigos Sinceros (1941) de João Gaspar Simões, O Caminho Fica Longe (1943) de Vergílio Ferreira, Adolescentes (1945) de Adolfo Casais Monteiro,
os cinco volumes de A Velha Casa (1945, 1947, 1953, 1960, 1966) de José Régio, Montanha Russa (1946) de Tomaz Ribas, Porta de Minerva (1947) de Branquinho da Fonseca, Rapariga (1949) e Companheiros (1959) de Ester de Lemos, Grades Vivas (1954) de Celeste Andrade, Alvorada (1955) de Manuel Mendes, Bárbara Casanova (1955) de Maria da Graça Freire, A Gata e a Fábula (1960) de Fernanda Botelho, Chamada Escrita (1988) Fala de uma Professora ao volante no IC1 (2004) de Orlando Ferreira Barros, Inveja - uma novela académica de Mário Avelar (2010). Como se pode constatar, o adolescentismo, e a personagem infanto-juvenil, têm o seu período áureo nos meados do século XX (muitocultivados pela geração presencista e neo-realista), com predominância ainda do herói masculino. No entanto, sente-se já o importante contributo que vem da “escrita feminina”, apesar da sua entrada tardia no campo da literatura, fazendo emergir esse universo próprio da infância e adolescência femininas e, naturalmente, «desocultando interacções e modelos de socialização nos espaços escolares tradicionalmente destinados às mulheres» (Souta, 2000:109). Maria Gabriela Llansol (2006:169) contrapõe: «quando eles se perderam na discussão aberrante da escrita feminina,/ se o tálamo da escrita tem sexo,/ o que eles estão é a desviar a atenção da ressuscitação do texto.(…) é um único o leito da linguagem».
A atracção da nossa literatura pelas personagens infantis e juvenis[2], traz associada a emergência do escolar, com uma vantagem acrescida: permite-nos ver a instituição escola pelos olhos daqueles que são os seus destinatários primeiros (“clientes” na terminologia neo-liberal). A explicitação dos objectivos da escola, dos seus mecanismos de funcionamento e organização é tarefa de adultos, em especial dos professores, pedagogos e políticos da educação. É sob a perspectiva do adulto especialista (que em geral se exprime sob a forma do ensaio) que se conhece esse mundo peculiar, onde as crianças e os jovens, aparecem como sujeitos indiferenciados sem “voz e pensamento”. Ora o olhar infantil da narração ficcional, o da criança-aluno (ainda que agora, num distanciamento temporal e racionalizante do adulto-escritor, maduro e sabedor), fruto de um acentuado introspectivismo, revela-nos um outro ângulo de apreciação, muito descurado nos trabalhos de investigação empírica. A forma comoa criança e o jovem entendem essa “máquina” organizacional, percepcionam as matérias curriculares, reagem aos métodos e orientações pedagógicas, se relacionam com osprofessores, interagem com os colegas, debatem com os seus familiares as questões escolares, são apenas algumas das muitas dimensões possíveis de captar através da sensibilidade e da linguagem única dos mais novos.
A força da narrativa tem vindo a impor-se, ultimamente, tanto no campo educativocomo no da psicologia. A proposta de desenvolvimento educacional de Kieran Egan (1979, 1986)[3] assenta no uso da narrativa como técnica de ensino – «teaching as story telling». Por sua vez, Óscar F. Gonçalves (1994) vem advogando, em vários trabalhos, uma linha de investigação e prática de uma psicoterapia narrativa, ligada ao campo da formação e da cognição.
Também António Damásio veio defender[4] as potencialidades formativas da narrativa, ligando o processo de contar histórias à capacidade de fazer “sentir”; as histórias que se contam têm uma força intrínseca capaz de desencadear o «processo de emoção e sentimento» e, paralelamente, despertam nos indivíduos memórias, pelo conjunto de associações,comparações que naturalmente sugerem. Para Damásio, as histórias podem ainda ter um outro apport: fazer com que «os estudantes aprendam mais sobre si». As implicações, para a área da educação, daqui decorrentes, poderão ajudar a escola, num processo de reconfiguração, a questionar o absolutismo, até aqui, dominante do “cognitivo” (reconhecendo ao “afectivo” utilidade formativa), abrir-se a outras dimensões consideradas “menores” (caso das histórias, do imaginário e da fantasia); e também, aceitar rever algumas “verdades” pedagógicas como aquela que considera o “contar histórias” como uma actividade de ensino a “evitar” (em especial em idades para lá do pré-escolar) porque promove a passividade; partidários acríticos dos «métodos activos», confundem uma postura de escuta com imobilismo intelectual[5].
Ora a narrativa tem a sua expressão de excelência na literatura. Os escritores são os exímios, e incontestáveis, contadores de histórias. Rentabilizá-los é um dever. Conhecer e estudar as suas obras, uma obrigação. O texto literário possibilita essa convergência do cognitivo, do emotivo e do sensorial.
A junção da escrita poética ou ficcional e da reflexão pedagógica é cultivada, entre nós, por um reduzido número de escritores. Foram os escritores/professores que mais o fizeram. O poeta Sebastião da Gama é talvez o caso mais emblemático porque o seu Diário, escrito entre Janeiro de 1949 e Outubro de 1950, se centra quase integralmente na experiência do estágio pedagógico de Português que realizou na Escola Técnica Veiga Beirão, em Lisboa (há um curto «Apêndice» sobre os primeiros dias de actividade lectiva na Escola Industrial e Comercial de Estremoz, onde efectivou). E que acabou por se tornar um livro de referência para aqueles que procuram abordagens alternativas, e se posicionam numa linha humanista que privilegia a dimensão relacional e afectiva. O que não deixa de ser curioso tratando-se de um jovem professor estagiário. O lema da sua vida ficou sintetizada na frase: «Tens muito que fazer? Não. Tenho muito que amar». Não se considerava apenas um professor de Português, mas um professor de Alunos, para quem essa tarefa não se restringia à sala de aula. O grande tema do Diário é, sem dúvida, o relacionamento entre professor e aluno. Daí as páginas do Diário estarem longe de ser uma fonte inspiradora exclusiva para os professores de língua materna. Muitas questões, para além das didácticas, são ali descritas e reflectidas. Por exemplo, as ligadas à (in)disciplina. É interessante como uma vida tão curta (morreu com 27 anos) e uma tão reduzida experiência docente (5 anos) foram tão marcantes no pensamento pedagógico nacional.
Outros exemplos de professores/escritores, bem conhecidos, poderiam ser avançados. Uns exerceram a profissão docente a tempo inteiro (Garibaldino de Andrade, Mário Dionísio, José Marmelo e Silva, Ondina Braga, Matilde Rosa Araújo, Maria Rosa Colaço, Eduarda Dionísio), outros por períodos mais ou menos longos (Aquilino Ribeiro, Ruben A., José Rodrigues Miguéis, Ruy Belo, Augusto Abelaira), no ensino básico (Irene Lisboa), secundário (José Régio, Vergílio Ferreira, João de Melo) e superior (Vitorino Nemésio, Almeida Faria, Cristóvão de Aguiar), mas em nenhum se consubstanciou a prática de um diário exclusivamente sobre o mundo escolar. Para além do Diário de Sebastião da Gama e do Bom dia, s'tora (diário duma professora em Macau) de Graciete Nogueira Batalha (1991) pouco mais temos em Portugal neste género literário. Isto apesar de alguns dos escritores terem cultivado a prática do diário – Conta-Corrente de Vergílio Ferreira, Diário de Miguel Torga, Dias Comuns de José Gomes Ferreira, Relação de Bordo de Cristóvão de Aguiar – mas onde as questões ligadas ao ensino surgem de forma esparsa, sem a preocupação de as destacar ou de lhes dar relevo especial. De realçar o caso de José Rodrigues Miguéis e de Irene Lisboa, que no início dos anos 30, foram integrados num grupo de bolseiros que a Junta de Educação Nacional enviou para a Europa com o intuito de se especializarem em Ciências Pedagógicas. Ambos, em muitas das suas obras têm episódios sobre a experiência escolar: no caso de Rodrigues Miguéis – Páscoa Feliz (1932), A Escola do Paraíso (1960), O Espelho Poliédrico (1973), Paços Confusos (1982);
e no de Irene Lisboa – Solidão: Notas do punho de uma mulher (1939), Começa uma Vida (1940), Apontamentos (1943), Voltar Atrás Para Quê? (1956). Nalguns casos estamos perante romances com fortes marcas autobiográficas. Em Irene Lisboa, essa linha é ainda mais notória, pois desenvolveu, com a persistência de uma escrita afectiva, tensa e amargurada, o «diário íntimo» e a autobiografia romanceada. Opções literárias usadas, no entanto, mais com objectivos de autoconhecimento mas onde também afloram análises a experiências de inovação pedagógica (arte infantil) em que esteve envolvida na sequência dessa formação adquirida no estrangeiro.
João de Melo, autor de Gente Feliz com Lágrimas (1988) onde se encontram múltiplas passagens sobre a escola (açoriana), salientava essa eficácia do professor/escritor: «tenho a sorte de amar a literatura e de a ensinar e de a praticar. Talvez haja nisso uma dupla convicção. Os alunos lêem essa paixão nos olhos do professor/escritor»[6].«Coitadas das professoras! Havia algumas simpáticas, merecedoras, não muitas; mas isso não importava… Sentiam que eu trazia a ideia nova, uma pequena ideia… Mesmo a novidade é sempre bruxuleante; é preciso acalentá-la, dar-lhe forças. Três professoras, ou quatro, ou cinco, criam que eu ia renovar o ensino. Não as interessava o meu programa, mas o meu espírito, as minhas ideias… submetiam-se-lhes com graça e com coragem.» (Apontamentos, Irene Lisboa, pp. 80-1).
Notas
1. Entrada também existente no volume I do Grande Dicionário da Literatura Portuguesa e de Teoria Literária dirigido por João José Cochofel (1977).
2. Óscar Lopes destaca Cinco Réis de Gente de Aquilino Ribeiro, de 1948, como «o melhor romance português que tem como protagonista uma criança».
3. E de sua “discípula” em Portugal, Maria do Céu Roldão (1995): «não se trata de contar “histórias” de ficção, mas sim de organizar os conteúdos de aprendizagem de qualquer das áreas curriculares segundo a estruturada história, e de acordo com os níveis etários dos alunos, ou seja, enquadrando-os numa estrutura narrativa».
4. Intervenção de António Damásio no fórum “A arte de se aprender”, Porto, 24/02/2001.
5. Vergílio Ferreira diz a este propósito: «Não é mexendo-nos muito que aprendemos muito. Pelocontrário, é a imobilidade que permite ao pensamento levantar ferro» in Dacosta (2001:117).
6. Entrevista de João de Melo ao DN, 23/12/00, p. 33.
Referências
CALVINO, Italo (1990) Seis Propostas para o Próximo Milénio (Lições Americanas). Lisboa: Teorema, 3ª edição, 1998.
EGAN, Kieran (1979) O Desenvolvimento Educacional. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1992.
EGAN, Kieran (1986) O uso da Narrativa como técnica de ensino: uma abordagem alternativa ao ensino e ao currículo na escolaridade básica. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1994.
GONÇALVES, Óscar F. (1994) “Cognitive narrative psychotherapy: The hermeneutic construction of alternative meanings”. Journal of Cognitive Psychotherapy, vol. 8, nº 2, pp. 105-125.
LLANSOL, Maria Gabriela (2006) Amigo e Amiga. Curso de silêncio de 2004. Lisboa: Assírio & Alvim/ arrábido, nº 5.
SOUTA, Luís (2000) “Antropologia da Literatura: a multiculturalidade num corpus literário português”. Educação, Sociedade & Culturas, nº 14, pp. 103-119.
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