sábado, 27 de julho de 2024

Do Diário de Vida de Raul Iturra

 

Os velhos, somos atropelados…


Não é uma afirmação gratuita, Querido Diário, nasce da minha experiência com diversas pessoas da vida social. Estava eu sentado no meu sofá em frente da porta do refeitório, a meu lado uma comprida fila de velhos em cadeiras de rodas estava à espera de entrar no refeitório para lanchar. Todos já com babete imenso que cobre peito e colo, para não sujar as roupas e colocados a correr pelos funcionários que organizavam a entrada ao refeitório, todos preparados para comer! 

De repente abre-se a porta da sala de jantar e aparece uma mulher com aspecto descuidado, desgrenhada como é o seu cabelo. É uma funcionária nova que diz aos gritos: 

  • “Então! está tudo bem, ainda todos vivos!, ou já há vários mortos como deve ser com os velhos”.

 As pessoas protestaram: 

  • “Eu não quero morrer, sou ainda uma pessoa nova, tenho 25 anos e a minha mãe deixou-me cá enquanto foi às compras”, diz a minha amiga de 85 anos, que antes andava muito e agora não consegue abandonar a sua cadeira de rodas. Mais 3 ou 4 pessoas protestam e dizem : 

- “Eu não quero morrer, eu quero comer!”, enquanto a desalinhada funcionária ri e assobia alto e diz “Morrer é uma lei da vida e vocês estão todos perto da hora de desaparecer”. 

Eu furioso pela atitude protesto e peço à funcionária para calar-se e ser mais discreta com as pessoas que ela estava a espantar; esse espanto usado para subordinar os velhotes às suas ordens. Felizmente a porta do refeitório abriu e a fila de adultos maiores concentrou-se no ritual de entrada e serem levados aos seus sítios nas mesas do dito refeitório: O desejo de comer era tão forte que faz esquecer a ”simpática” ameaça da funcionária que não parava de assobiar. 

As pessoas querem viver, as pessoas não querem sofrer, as pessoas querem rir, falar e engolir, não comer, engolir os alimentos que estão na mesa e comentam uns com os outros: “Eu não tenho pão!, tu tens!”, eu tenho iogurte com bolachas que gosto mais ", diz outro. Todos debatem numa confusão em que vários querem arrebatar o que tem a pessoa que está ao pé deles: até parecem adequar-se ao grito da funcionária que lhes disse que todos iam morrer, para poder controlar o acesso à comida. Mas não é necessário porque aparece a cozinheira de mãos nas ancas e grita violentamente: 

  • ”Pouco barulho, o lanche é para estarem calados e sem comentários, calem! e pela força do grito as pessoas assustam-se, calam e comem em silêncio.

 Então a cozinheira diz: 

  • "Lindos meninos, assim é que é, todos caladinhos e a comer como deve ser”.

Custa-me muito aceitar estes procedimentos. Como já tinha dito em capítulos anteriores, o agir das pessoas cuidadoras é pouco simpático para todos, é por meio do medo e da ameaça que o pessoal que vive na casa de repouso, obedece cheio de pânico de fazerem mal e receber mais uma gritada de quem deveria cuidá-los e tratá-los com simpatia, mas não conseguem. Havia os funcionários mais novos que eram amáveis e carinhosos com os utentes. Mas o peso do trabalho de sentar nas cadeiras conduzir ao refeitório, abrir os iogurtes, levantar as bolachas que caem no chão, levar os utentes de volta , nas cadeiras de roda e sentá-los nos seus sofás respectivos é uma tarefa pesada que dá cabo da amabilidade e do sorriso que estes funcionários tinham nos primeiros dias de trabalho. Conseguem realizar a tarefa mas mal acabam, refugiam-se na cozinha ou no pátio de trás para se contarem entre eles quem tinha conseguido melhor despachar os utentes. Estes, os utentes, ficam sós na sala de convívio a ver televisão em alto volume de som para apagar qualquer tipo de conversas entre eles e que só leva ao desânimo, à zanga, ao se bater uns com os outros, como crianças a lutar por um rebuçado. Comportamento que bem podia ser evitado se houvesse entretenimento onde fixar as energias não gastas de adultos maiores que antigamente lavravam a terra , lavavam roupa para outros, cozinhavam para os demais, …. Não têm agora como se entreter, como fixar seus pensamentos, como gastar suas energias, excepto gritar uns para os outros: “cala-te, estás doido, antigamente não eras assim!” e outras mordomias que a inatividade do dia inteiro os levam a exprimir. Não são apenas os gritos que se tentam calar mas também as conversas que se possam iniciar entre os utentes e que uma funcionária desactiva manda todos calar. 

Em suma, os utentes são vigiados. 

Lembro-me bem das conversas que eu tinha com o meu colega de aulas Michel Foucault, na Maison des Sciences de l’Homme e no Collège de France, Paris, que referia um livro que tinha escrito “Vigiar e Punir” onde ele sustém que a vigilância é a forma de orientar o pensamento para aquilo que quem vigia pretende. O título em francês é mais eloquente “Surveiller et Punir” que é obcecadamente, insidiosamente, ver o que faz o outro para retirar qualquer dinâmica de comportamento não adequado à calma procurada pelo vigilante. Não é em vão que a polícia em Espanha ou em países da América Latina são chamados “vigilantes”. Estes levem no seu pensamento o que a lei prescreve para um comportamento socialmente adequado e assim ninguém tem a ousadia de inventar condutas alternativas, autônomas e independentes. “Deus nos livre” dizem os sacerdotes da igreja católica, “Deus nos valha” costuma dizer a cozinheira do lar quando nada é feito como ela manda. A vigilância total reside na divindade que “vigia” e “pune” o que está mal feito pelas pessoas que interagem. Deus vê. Deus julga, Deus premeia ou retira favores. É este o esquema básico do que Michel Foucault propõe nos seus livros, retirados da sua observação da conduta social e da história. É isto o que os utentes usam entre eles para adequar o comportamento do vizinho ao comportamento por eles desejado. É o comportamento dos funcionários com os utentes; é o comportamento dos sacerdotes que falam do inferno com os seus fiéis ou dos políticos que usam o covid para fechar a população por anos nas suas casas e usar o trabalho a domicílio como forma de produção. 

Este comportamento alastra-se já desde a época da Idade Média onde quem sabe se pôr em posição de mandar manda e como era nessa época, quem não obedece é morto. Hoje em dia não se mata tão facilmente mas estabelece-se um comportamento de vergonha e atribui-se um diagnóstico negativo.

É o que me aconteceu com a neuróloga que devo visitar como a lei prescreve de 6 em 6 meses e que deve avaliar se ainda sou capaz de pensar, falar, articular um discurso lógico, entender a realidade. Tanto faz se eu sei ou não sei, se eu me comporto ou não como esperado de uma forma lógica, o diagnóstico está já feito nos livros e é me aplicado. Este senhor tem uma escrita compulsiva, este senhor não é capaz de planificar. Eu pergunto-me de onde foi retirado este diagnóstico? E lembro-me que antes tinha sido eu submetido a uma bateria de testes por uma outra neuróloga, simpática, bonita e querida que tinha concluído também a escrita compulsiva e a falta de planificação de vida que antes, num episódio decadente da minha vida tinha sido diagnosticado por psicólogos que me tinham examinado. Faz 12 anos que este diagnóstico foi emitido; faz 12 anos que já estava condenado ao mesmo diagnóstico por medo dos médicos de falhar na sua vigilância. Felizmente um neurólogo antigo que consultei recentemente, independente não envolvido em teorias de livros, mas ele criador duma teoria adaptada à realidade observada, disse com sorriso “sempre foi assim" referindo-se à insistência de classificar a minha escrita de compulsiva e ofereceu-se a ler este meu Diário de Vida e a escrever o seu prólogo.

Tanto pelo diagnóstico da neuróloga, tanto pelo comportamento de funcionários e utentes reitera-se o espreitar, vigiar, “surveiller” para punir. Punição que se manifesta por fechar velhos num lar, encher de calmantes e comprimidos para ninguém desobedecer. Criar grilhetas novas para os desesperados que procuram um agir adequado aos seus objetivos de vida que é comer, descansar, amar, rir. É assim que eu penso que nós os velhos somos atropelados, é assim que eu penso que nunca nos dão razão. Vigiar e punir é a base da estrutura religiosa e da vida social que incute o comportamento em que a punição final é o velho ser ignorado, encarcerado.

 

Professor Doutor Raul Iturra, Catedrático Emérito do ISCTE-IUL

Texto Editado por Claire Smith Antropóloga

Barra Mansa, Julho de 2024


quinta-feira, 11 de julho de 2024

Epaminondas Costalima


EU NUNCA ESTIVE AQUI...

 Para Agostinho da Silva

Ah Portugal!
Ninguém neste mundo agora sabe
em que dias remotos
um Vaz, um Nunes,
um Ribeiro, um Rosa
um Silva, um Costa Lima
deixaram a casa avoenga
e partiram 
para nunca mais.

Ninguém!
Nem mesmo os que, como eu,
seus velhor nomes portam
e ainda conservam
na alquimia do sangue
um certo contigente
do que lhes foi legado
originariamente.

Ah esses fantasmas ancestrais
insistem
em açular extintas
memórias.
Quem, senão eles,
de onde estão comandam 
esta vontade de rever
o nunca dantes visto
e de reviver
o que não foi jamais
por mim
vivido?

Assim, já não sei, Portugal
se sou eu que venho a ti
ou eles que regressam
disfarçados
dentro de mim.

Alguns por certo
cantaram enternecidos
suas próprias canções.

Daí,
este apelo do sangue
que antecede
as histórias ouvidas
na infância.
...velhos castelos
princesas e fadas
madrastas cruéis
inocentes órfãs
as incríveis perfídias
da Moura Torta.
E o herói
(ou o destino?)
aparecendo afinal
quando o bem
invariavelmente
triunfava sobre o mal.

E é deles também
o apelo que revive
impressões obscuras
- Trovas de amor ingênuo
Cantigas de Amigo -
das primeiras leituras. 

Ah esses fantasmas ancestrais
blasonam
seu grande destemor nas caravelas.
Daí, talvez,
este apelo do sangue
que se junta à lembrança mais funda
da epopéia lusíada.
Os versos de Camões
outrora declamados
agora compreendidos
quando piso, reverente,
as lájeas dos Jerónimos
onde repousam o Gama,
e o Vate,
e reis e infantes.
Onde um sepulcro jaz
vazio
à espera de um rei
que partiu
para nunca mais.

Ah Portugal!
Dói de tão intensa
a emoção que me envolve
nesta hora
ao percorrer 
em lentos passos
os enormes salões,
os corredores,
os terraços
de teus museus,
de teus palácios.

Silencioso, assisto
o desfilar de séculos
de tua longa história,
enquanto à minha volta
esses fantasmas ancestrais
comentam
que viveram, sofreram,
pelejaram
neste ou naquele episódio.

Acompanham-me, depois,
ao Terreiro do Paço,
à Torre de Belém,
ao Tejo!
que ainda é formoso
e é meu também.

E seguem-me
pelas ruas de Alfama
onde, inesperadamente,
tal como vieram
no ar se desvanecem.

De novo só,
no entanto ilhado
pelas lembranças
que ficaram em mim
do ler, do ouvir dizer.
Versos, romances,
lugares... A Baixa,
o Chiado, o Rossio...

Ah Portugal!
De tão familiares
não me surpreenderia
se visse agora
o vulto esguio de Eça
saindo da Havanesa;
ou, em um café anônimo,
Fernando Pessoa solitário
a meditar
ninguém sabe com qual
de seus heterônimos.

Ah Portugal!
Estas confusas emoções
recebe-as
com paciência e com bondade
que eu nunca estive aqui
e vim matar saudade.

Lisboa, Maio/81



A fotografia é do editor


terça-feira, 9 de julho de 2024

O FIRMAMENTO É NEGRO E NÃO AZUL

por Luís Santos

António Cândido Franco recebeu no passado 4 de julho, Dia da Cidade, o Prémio de Literatura Biográfica atribuídp pela Associação Portuguesa de Escritores e a Câmara Municipal de Coimbra, com biografia do escritor Luiz Pacheco intitulada " Firmamento é Negro e Não Azul".

Aqui fica uma insinuante e preciosa pintura a óleo em platex sobre o biografado, de Jaime Duro, 2023.

Assinale-se que o escritor Cândido Franco tem outras biografias no seu pecúlio, de Agostinho da Silva (O Estranhíssimo Colosso), Mário Cesariny (O Triângulo Mágico) e Literatura de Teixeira de Pascoaes, entre uma obra literária muito referenciada e que já vai longa.