Os velhos, somos atropelados…
Não é uma afirmação gratuita, Querido Diário, nasce da
minha experiência com diversas pessoas da vida social. Estava eu sentado no meu
sofá em frente da porta do refeitório, a meu lado uma comprida fila de velhos
em cadeiras de rodas estava à espera de entrar no refeitório para lanchar.
Todos já com babete imenso que cobre peito e colo, para não sujar as roupas e
colocados a correr pelos funcionários que organizavam a entrada ao
refeitório, todos preparados para comer!
De repente abre-se a porta da sala de jantar e aparece
uma mulher com aspecto descuidado, desgrenhada como é o seu cabelo. É uma
funcionária nova que diz aos gritos:
- “Então! está tudo bem, ainda todos vivos!, ou já há vários mortos
como deve ser com os velhos”.
As pessoas protestaram:
- “Eu não quero morrer, sou ainda uma pessoa nova, tenho 25 anos e a
minha mãe deixou-me cá enquanto foi às compras”, diz a minha amiga de 85
anos, que antes andava muito e agora não consegue abandonar a sua cadeira
de rodas. Mais 3 ou 4 pessoas protestam e dizem :
- “Eu não quero morrer, eu quero comer!”, enquanto a
desalinhada funcionária ri e assobia alto e diz “Morrer é uma lei da vida e
vocês estão todos perto da hora de desaparecer”.
Eu furioso pela atitude protesto e peço à funcionária
para calar-se e ser mais discreta com as pessoas que ela estava a espantar;
esse espanto usado para subordinar os velhotes às suas ordens. Felizmente a
porta do refeitório abriu e a fila de adultos maiores concentrou-se no ritual
de entrada e serem levados aos seus sítios nas mesas do dito refeitório: O
desejo de comer era tão forte que faz esquecer a ”simpática” ameaça da
funcionária que não parava de assobiar.
As pessoas querem viver, as pessoas não querem sofrer,
as pessoas querem rir, falar e engolir, não comer, engolir os alimentos que
estão na mesa e comentam uns com os outros: “Eu não tenho pão!, tu tens!”, eu
tenho iogurte com bolachas que gosto mais ", diz outro. Todos debatem numa
confusão em que vários querem arrebatar o que tem a pessoa que está ao pé
deles: até parecem adequar-se ao grito da funcionária que lhes disse que todos
iam morrer, para poder controlar o acesso à comida. Mas não é necessário porque
aparece a cozinheira de mãos nas ancas e grita violentamente:
- ”Pouco barulho, o lanche é para estarem calados e sem comentários, calem! e pela força do grito as pessoas assustam-se, calam e comem em silêncio.
Então a cozinheira diz:
- "Lindos meninos, assim é que é, todos caladinhos e a comer como deve
ser”.
Custa-me muito aceitar estes procedimentos. Como já
tinha dito em capítulos anteriores, o agir das pessoas cuidadoras é pouco
simpático para todos, é por meio do medo e da ameaça que o pessoal que vive na
casa de repouso, obedece cheio de pânico de fazerem mal e receber mais uma
gritada de quem deveria cuidá-los e tratá-los com simpatia, mas não conseguem.
Havia os funcionários mais novos que eram amáveis e carinhosos com os utentes.
Mas o peso do trabalho de sentar nas cadeiras conduzir ao refeitório, abrir os
iogurtes, levantar as bolachas que caem no chão, levar os utentes de volta ,
nas cadeiras de roda e sentá-los nos seus sofás respectivos é uma tarefa pesada
que dá cabo da amabilidade e do sorriso que estes funcionários tinham nos
primeiros dias de trabalho. Conseguem realizar a tarefa mas mal acabam,
refugiam-se na cozinha ou no pátio de trás para se contarem entre eles quem
tinha conseguido melhor despachar os utentes. Estes, os utentes, ficam sós na
sala de convívio a ver televisão em alto volume de som para apagar qualquer
tipo de conversas entre eles e que só leva ao desânimo, à zanga, ao se bater
uns com os outros, como crianças a lutar por um rebuçado. Comportamento que bem
podia ser evitado se houvesse entretenimento onde fixar as energias não gastas
de adultos maiores que antigamente lavravam a terra , lavavam roupa para
outros, cozinhavam para os demais, …. Não têm agora como se entreter, como
fixar seus pensamentos, como gastar suas energias, excepto gritar uns para os
outros: “cala-te, estás doido, antigamente não eras assim!” e outras mordomias
que a inatividade do dia inteiro os levam a exprimir. Não são apenas os gritos
que se tentam calar mas também as conversas que se possam iniciar entre os
utentes e que uma funcionária desactiva manda todos calar.
Em suma, os utentes são vigiados.
Lembro-me bem das conversas que eu tinha com o meu
colega de aulas Michel Foucault, na Maison des Sciences de l’Homme e no Collège
de France, Paris, que referia um livro que tinha escrito “Vigiar e Punir”
onde ele sustém que a vigilância é a forma de orientar o pensamento para aquilo
que quem vigia pretende. O título em francês é mais eloquente “Surveiller et
Punir” que é obcecadamente, insidiosamente, ver o que faz o outro para
retirar qualquer dinâmica de comportamento não adequado à calma procurada pelo
vigilante. Não é em vão que a polícia em Espanha ou em países da América Latina
são chamados “vigilantes”. Estes levem no seu pensamento o que a lei
prescreve para um comportamento socialmente adequado e assim ninguém tem a
ousadia de inventar condutas alternativas, autônomas e independentes. “Deus
nos livre” dizem os sacerdotes da igreja católica, “Deus nos valha”
costuma dizer a cozinheira do lar quando nada é feito como ela manda. A
vigilância total reside na divindade que “vigia” e “pune” o que está mal feito
pelas pessoas que interagem. Deus vê. Deus julga, Deus premeia ou retira
favores. É este o esquema básico do que Michel Foucault propõe nos seus livros,
retirados da sua observação da conduta social e da história. É isto o que os
utentes usam entre eles para adequar o comportamento do vizinho ao
comportamento por eles desejado. É o comportamento dos funcionários com os
utentes; é o comportamento dos sacerdotes que falam do inferno com os seus
fiéis ou dos políticos que usam o covid para fechar a população por anos nas
suas casas e usar o trabalho a domicílio como forma de produção.
Este comportamento alastra-se já desde a época da
Idade Média onde quem sabe se pôr em posição de mandar manda e como era nessa
época, quem não obedece é morto. Hoje em dia não se mata tão facilmente mas
estabelece-se um comportamento de vergonha e atribui-se um diagnóstico
negativo.
É o que me aconteceu com a neuróloga que devo visitar como a lei prescreve de 6 em 6 meses e que deve avaliar se ainda sou capaz de pensar, falar, articular um discurso lógico, entender a realidade. Tanto faz se eu sei ou não sei, se eu me comporto ou não como esperado de uma forma lógica, o diagnóstico está já feito nos livros e é me aplicado. Este senhor tem uma escrita compulsiva, este senhor não é capaz de planificar. Eu pergunto-me de onde foi retirado este diagnóstico? E lembro-me que antes tinha sido eu submetido a uma bateria de testes por uma outra neuróloga, simpática, bonita e querida que tinha concluído também a escrita compulsiva e a falta de planificação de vida que antes, num episódio decadente da minha vida tinha sido diagnosticado por psicólogos que me tinham examinado. Faz 12 anos que este diagnóstico foi emitido; faz 12 anos que já estava condenado ao mesmo diagnóstico por medo dos médicos de falhar na sua vigilância. Felizmente um neurólogo antigo que consultei recentemente, independente não envolvido em teorias de livros, mas ele criador duma teoria adaptada à realidade observada, disse com sorriso “sempre foi assim" referindo-se à insistência de classificar a minha escrita de compulsiva e ofereceu-se a ler este meu Diário de Vida e a escrever o seu prólogo.
Tanto pelo diagnóstico da neuróloga, tanto pelo
comportamento de funcionários e utentes reitera-se o espreitar, vigiar,
“surveiller” para punir. Punição que se manifesta por fechar velhos num lar,
encher de calmantes e comprimidos para ninguém desobedecer. Criar grilhetas
novas para os desesperados que procuram um agir adequado aos seus objetivos de
vida que é comer, descansar, amar, rir. É assim que eu penso que nós os velhos
somos atropelados, é assim que eu penso que nunca nos dão razão. Vigiar e punir
é a base da estrutura religiosa e da vida social que incute o comportamento em
que a punição final é o velho ser ignorado, encarcerado.
Professor Doutor Raul Iturra, Catedrático Emérito do
ISCTE-IUL
Texto
Editado por Claire Smith Antropóloga
Barra
Mansa, Julho de 2024