sábado, 17 de agosto de 2024

Crónicas de Paulo Landeck


EM ÓRBITA

Desejou ter barba de raspar fósforos, e guardar no bolso universal uma pedra de isqueiro para desconsertar improvisado céu em noite escura, quando fugisse novamente de casa para viver nas dunas à beira mar.

Nessa altura, em que tudo se podia e quase nada era ainda permitido pelos pais, - nem mesmo fugir de casa, - sonhou desentortar um dos olhos com o garfo e cuspi-lo até à lua! 

Com um pouco de sorte, deixaria a sua marca em solo lunar. 

Mas...tinha uma dúvida, só uma dúvida: 

não saberia como piscar o olho mais tarde, ciente de que perderia o globo e a dúvida surgiria.

Tinha só esse problema com o olho, o seu olho, uma dúvida, sem o resto do corpo em redor para o chatear...imaginem se fossem duas, problemas a dobrar!

Lá bem ao alto, a singular dúvida persistiria, na direção do berlinde terrestre que reflectia vivo azul e deflectia algo que talvez nem sequer pudesse um dia voltar a vislumbrar; por seu deleite, e por todos os oceanos que o seu olho jamais derramaria, seguro no garfo ou longe de si, admitiu o fracasso da ideia.

Procurou renovar sofrimentos, queria agora polir o fosco iluminado pelo farol. 

Se esquerdo ou direito, não sabia precisar...e ao centro, sobejava o nariz.  

Das três, uma certa, libertou-se da armação devido à condicionada ilusão.

Tanto sonhou e sonhou para não deixar de quebrar óculos...e assim, possíveis fragmentos de janelas e mais janelas perdidas no espaço!

Ainda como consequência, o lume jamais se apagou das páginas bruxuleantes dos muitos livros lidos fora de horas. - Palavra de narrador. - Estava mais do que certo, destinado para toda a vida a sonhar acordado. - E talvez depois da morte fosse uma espécie de sonho ao contrário, quem sabe, livre de pesadelos. Não sei...sonhos e pesadelos sempre andaram de mão dada, pelo menos, na vida real de quem sonha acordado. - 

De nada lhe valeria fugir de casa...ainda que encontrasse seguramente conforto nas dunas de verão à beira-mar.

Naquele tempo, dificilmente existiria céu igual. 

Despertou. 

Pensou então em aprimorar nova técnica de olho posto na ambição. Quem sabe o que dali resultaria, se resolvesse explorar uma outra órbita à procura de familiar globo ocular, desta feita, de faca e garfo. - Nada como a boa educação, nunca sabemos quem pode estar à espreita numa qualquer janela indiscreta. -

Deu por si abraçado a um enorme sobreiro despido, inequivocamente envergonhado. 

Seria por causa do coração da menina gravado à navalhada pelo futuro marinheiro!? 

Faltava-lhe o garfo, afinal. 

Não sabia ainda, se o coração dela palpitaria sequer por tão notável entrega e delicadeza. 

Desconhecidas as contas, não passava de um sonhador preso no espaço, ansioso por regressar à Terra, tremendamente nervoso por avaliar todas as possibilidades de regresso. - 

Tinha visto uma vez em vários documentários, como as impressionantes expedições às florestas virginais, podiam bem começar nos despenteados vasos das varandas, algures pela vizinhança. 

Avencas e fetos até o ajudavam a pensar, mas ali, na zona nascente da serra, só tinha um enorme sobreiro corado, e uma navalha de algibeira para cortar os cotos no lugar das côdeas...-

sem um pé-terra sequer para afogar ansiedade em sumo; e quando assim é, o melhor é aguardar que chova. -

Procurou então novos sinais, de pés bem assentes na terra...para dar com marca pintada cor da neve. Quedou-se incrédulo: próximo encontro marcado com a desgraçada que lhe dera a volta ao miolo, só dali a nove anos!

Como pôde ser tão cruel...não podia ser...

Tinha quase a certeza de estar bem perto das nove da noite, por issso, resolveu esperar mais um pouco.

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