A PERDA DE IDENTIDADE NO LAR
Nem tudo o que acontece no lar, querido diário, é resultado do eterno debate entre funcionários e utentes ao qual me tenho referido nas páginas anteriores. Entramos no lar já velhos, cansados, com uma história de vida marcada pelas nossas relações sociais construídas na interação com os outros. Somos pessoas resultado da nossa vida social, vivemos em nichos definidos pela dita interacção. Nascemos, somos filhos, um primeiro nicho social; se temos pila entramos na categoria de homem, se não, mulher. Desenvolvemos o nosso comportamento imitando os adultos que nos criam, que nos rodeiam, que acompanham o nosso crescimento, sejam eles familiares ou instituições que tomam conta de crianças. Em breve somos estudantes, somos enviados para instituições chamadas escolas para sermos introduzidos à cultura, à mente cultural do estado em que vivemos: somos preparados para sermos cidadãos do país em que nascemos e incutem-nos sabedoria de letras, sabedoria de história, sabedoria sobre o universo em que moramos; incutem-nos também a crença numa divindade e um comportamento religioso que define como agirmos com outros seres humanos; incutem-no sermos pessoas.
Os anos passam, cada época da nossa vida é diferente da etapa anterior: somos aprendizes, somos estudantes, chegamos à idade de amar e sermos amados, à idade de trabalhar e colaborar com a economia social, passamos a ser profissionais. Uma profissão seja letras, ciência ou trabalho direto, que nos introduz à economia, que nos dá salário, casa, emprego. Normalmente encontramos o nosso par, juntamo-nos, acasalamos, passamos ao estatuto de pais, criamos, educamos, orientamos. A nossa atividade muda de etapa em etapa e vamos ganhando uma identidade pela qual somos conhecidos no país de que somos parte. Somos cidadãos com responsabilidade ética, estética e afetiva. É principalmente o nosso papel de pais que define o nosso comportamento como um elo importante do nosso objectivo de vida: não apenas reproduzimos seres humanos, também reproduzimos saber para introduzir os seres humanos que criamos na vida social, como nós também fomos igualmente introduzidos. Sermos pais é o mais importante da nossa vida de interação. O nosso objetivo não é apenas educar, é também amar e ser amado pela geração de pessoas que temos estado a criar. Crescemos, envelhecemos, cansamo-nos. A geração que criamos devia tomar conta de nós e velar por um fim adequado de vida, calmo, tranquilo e economicamente funcional. No entanto, a vida social moderna tem organizado uma interação que retira os mais velhos da responsabilidade social directa e entrega-os a lares que os alimentam, os cuidam, os vestem, definem os seus parâmetros quotidianos.
A nossa identidade muda de sermos adultos responsáveis para sermos outra vez crianças que obedecem a um plano definido de comportamento individual. A nossa vida social muda, deixamos de ser entidades, passamos a sermos indivíduos obedientes.
Já não vou referir o que acontece com os outros colegas utentes do lar em que vivo como tenho feito nos outros capítulos do meu diário mas vou passar a vasculhar apenas na minha própria vida. Um dia não consegui andar, colocaram nas minhas mãos um andarilho para me apoiar e continuar meu quotidiano como sempre tinha sido. Esta etapa não durou muito tempo: caía na rua, enganava-me nas compras, a minha gestão económica era-me difícil com o pouco dinheiro que me era pago cada mês pela minha reforma, pela mudança das formas do acontecer no quotidiano; entrou na nossa vida pessoal a internet, os bancos passaram a serem geridos pelo computador, as compras eram feitas em linha, enfim um descalabro que me acontecia após 70 anos de uma construção histórica social liderada por mim próprio e a partir do meu entendimento. As formas de vida mudaram de tal maneira que era necessário uma nova educação para viver de forma autónoma como o tinha feito antes. Confiei que a minha descendência ajudar-me-ia, confiei que a minha descendência explicar-me-ia as novas formas de ação em função da minha nova etapa de vida. Não tive esta sorte. A minha descendência resolveu fechar-me num lar e referir que eu não entendia a realidade, que eu estava doente e não valia a pena explicar-me a nova vida social, e isolar-me do mundo que eu tinha ajudado a construir foi a solução encontrada. Eu próprio acreditei que era incapaz de perceber o mundo atual causado por doença progressiva, seria parkinson e demência vascular tal como me era explicado que doravante era a minha realidade. Felizmente uma médica do lar disse-me: Doutor Raul vamos parar com estas queixas e doenças, vamos diminuir a medicação que toma ao pequeno almoço, almoço, e jantar e a pouco e pouco vai se confrontar com a vida como ela é e não como a sua filha mais velha, a quem foi confiada a sua tutoria, lhe quer fabricar. Perguntei-lhe como iria eu fazer? Com paciência, com calma e boa disposição, respondeu-me a médica, e quando precisar venha falar comigo para contar-me o que pensa, o que sonha e o que sente.
A partir deste momento foi uma progressiva viragem.
Assim no lar eu tinha todo o tempo para mim, estava isolado, não tinha passeios, não tinha visita dos meus amigos e colegas excepto o convívio com duas antigas estudantes de doutoramento que não pararam de me acompanhar, alguns passeios com uma antiga amiga de longa data e pelo convívio da minha filha mais nova que me visitava desde do estrangeiro um par de vezes ao ano. Visitas escassas devido à distância do lar do meu antigo local de vida e dominadas pela falta de partilha da vida social ativa.
Como disse antes tinha todo o tempo para mim e pensando como redefinir um convívio com os meus colegas de lar resolvi apoiar quem precisasse cada vez que fosse necessário, andar, ajudar os meus colegas a jogar ao bingo com a animadora cultural, ler livros sem fim o dia todo, escrever o meu diário de vida na sofá que uso, inventar conversas com funcionários amigos que me relatavam o que acontecia no mundo exterior. Raramente ouvia notícias, normalmente nunca aceitei sentar-me a ver televisão. Conseguir ler e escrever foi o meu objectivo de vida. Era difícil convencer as diversas diretoras do lar de como eu queria organizar a minha vida. Fiz-me amigo profundo de uma senhora com quem almoçava, conversava e ria. Esta senhora foi retirada da minha mesa e fui colocado com outras pessoas sendo assim o meu convívio organizado pela direcção do lar, por ordem de quem neste tempo, conforme a lei, era a minha tutora. Tive que lutar e com ajuda de poucos amigos e da minha filha mais nova, mandei o meu grito de ipiranga recorremos ao tribunal de família e tempo mais tarde fui libertado da minha submissão a uma tutoria que me ia matando. A minha identidade foi recuperada pelo grande esforço e disciplina de vida que organizei no meu dia a dia: acordar às 5 da manhã, tomar banho, escrever e viver o dia entre comidas, conversas, reflexões e música. Tive sorte, e a pouco e pouco tornei a ser o Raul Iturra que eu tinha sido. Comecei a interagir em mensagens e telefonemas com algumas pessoas que quiseram responder às minhas mensagens e chamadas.
No lar é mais fácil perder identidade e submeter-se ao que define a direção por ordem da família. Falei com o proprietário do lar e pedi para ser tratado como um velho que não tinha para onde ir e aí morava por falta de acolhimento noutro sítio. O lar submete. O lar manda. O lar ouve a família e não o utente. O utente normalmente tem pouco para dizer e passa a ser como criança como falei nos capítulos anteriores. No meu caso infelizmente entendia o que acontecia e bati-me contra a disciplina e organização do meu tempo por outros. Aceitei horário de comida do lar, mas o meu tempo quotidiano foi por mim organizado: assim me entretive e os nove anos passaram sem eu reparar.
Somos pessoas. Somos adultos, somos pais, somos cidadãos. Tudo isso parece acabar quando se quer manter uma disciplina no seio de um grupo de adultos que passa o dia a conversar e ver televisão, eventualmente a se entreter com as atividades de animação cultural. Há eleições nacionais, ninguém sabe e ninguém vota, ninguém vai às urnas. Apenas dois de nós temos seguido à risca a planificação política do país. Ninguém sabe o que se passa nem qual será o futuro. O nosso país prescinde das pessoas que moram em lares apenas orientados pelas suas famílias nas quais cada utente confia com profundidade e nos quais tem esperança de os ver outra vez numa próxima visita.
O lar faz perder a identidade de ser pessoa que a sociedade nos incute antes de sermos velhos entrando assim no fim da sua vida sem que saibamos para onde vamos, nem com quem, nem como. Eu gritei, pedi acesso ao tribunal de família e libertei-me do autoritarismo com que a lei manda tratar os velhos do país. Tentei recuperar a minha identidade mas choro pela solidão dos meus colegas que ainda estão fechados no lar sem saber para onde vão até um dia dele sair no seu próprio funeral.
Professor Doutor Raul Iturra, Catedrático Emérito do ISCTE-IUL
Texto Editado por Claire Smith, Antropóloga
Barra Mansa, Agosto de 2024
2 comentários:
Acheo o seu texto extrordinário. Um testemunho vivo que absolutamente interessa a todos, muito particularmente aos que estão ligados às políticas com os séniores.
Eu que atualmente coordeno Licenciatura em Animação Sociocultural, não deixarei de lhe
dar ampla divulgação. Até pelos estudos ligados ao envelhecimento ativo, uma vertente fundamental desta área do conhecimento e da praxis.Famílias, diretores e funcionários de lar, utentes, professores, estudantes, muito terão a agradecer por um texto com tanto interesse.
Dizer também que achei o seu texto de uma enorme lucidez. Um texto de um espírito jovem, de grande clarividência, luminoso.
Muitos Parabéns.
Muito obrigado.
Caríssimo amigo, caro Mestre, um excelente texto autobiográfico. A teoria e a praxis cruzam-se numa escrita limpa e escorreita. Esse Diário vai no bom caminho editorial.
Grande abraço.
Luís Souta
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