terça-feira, 19 de novembro de 2024

Do Diário de Vida de Raul Iturra

 

Alegrias no Lar

 Tenho a impressão, Diário amigo, que não sou capaz de deixar de expressar nas tuas páginas que a vida no lar, em que resido, também tem as suas piadas…falo de funcionários, de utentes perdidos…mas não tenho falado das confusões que também se geram aí...seria como não entender as palavras ou as conversas que a minha segunda irmã, já falecida, gostava de contar, como esta história:

“Era um capitão dum barco de turistas que no meio duma tempestade chamou um marinheiro que era gago e disse-lhe para atirar a âncora para parar o barco porque este estava a soçobrar. O marinheiro gago que mal entendia as palavras e mal avaliava as situações,  ripostou ao comandante: “pois é capitão,  é melhor so-sobrar do que fa-faltar…!” contava a minha falecida irmã quando brincava em vida. Eu ria como um possesso com a história do jovem marinheiro gago que confundia “soçobrar” que quer dizer afundar com o “so- sobrar” que era a sua forma gaga de dizer sobrar… Era uma irmã divertida, como o era também o escritor espanhol Jardiel Poncela do começo do século XX , que narra no seu espantoso livro “La Tournée de Dios” que o criador numa anunciada visita à terra apareceu num balão Zeppelin... Os notáveis da terra o esperavam em formação no cimo dum monte, com o representante da divindade na terra, o Papa na frente da fila; Deus desce do Zeppelin, um velhinho magro, pequeno, com uma pequena mala na mão direita e vestido de fraque, olha  indeciso e com temor para tanta gente aí reunida, hesita e avança duvidoso para um senhor vestido de vermelho, ajoelha-se e diz com temor:  “Santidade…” e beija o chão… o cardeal em questão sente-se embaraçado e lhe diz com medo “meu Senhor, não sou eu… é esse pequenino vestido de branco que está aí…” e dissimuladamente o cardeal aponta várias vezes com o dedo para ao lado e Deus diz…”Desculpe, é que há tanta gente… e faz tão pouco tempo que mudaram o meu representante na terra que fico confuso… também já estou tão velho que me engano…”

Se o marinheiro curtido equivoca-se, se a divindade engana-se também, o que não será Diário querido dos enganos dos meus velhos do lar! Era essa capacidade de se equivocar que vários de nós usamos maldosamente para nos divertir com os nossos colegas utentes. Foi o que eu fiz vezes sem conta com a minha querida amiga de mesa, essa senhora gorda que adorava a hierarquia das classes sociais do qual eu tomei vantagem e disse-lhe um dia que: “as pessoas da alta usam a colher e não a faca para comer”. Ela de imediato pousou a faca, e passou doravante a usar a colher para comer;  olhava para mim com um porte altivo, elegante, com uma certa arrogância no seu visual e passou a aconselhar a todos usar a colher em vez da faca para comer… Todo o lar come agora com este talher tão prático que até os funcionários o aconselham e todos o preferem. Duma brincadeira nasceu uma forma de comer bem mais prática  para os velhos. Ou também o problema do garfo… em que sugeri, também à minha gorda amiga… “que os dentes do garfo devem-se pôr para baixo, como o usam as marquesas e condessas para não se picarem os dedos”; essa minha amiga acreditou e assim passou a fazer e foi imitada por vários utentes que se orientavam pelo seu comportamento. Na visita seguinte da sua família ela apareceu com ar de orgulho e disse “sou agora uma condessa e como como tal …o Sr. Doutor ensinou-me” e a família ficou feliz por vê-la tão bem disposta. “Parabéns Sr. Doutor parabéns por diverti-la!” Sem eu lhes dizer o que eu me tinha divertido com estas anedotas. Como o caso de outro colega de mesa que adora comer e repetir o prato, esse grande e gordo amigo meu, que a todas refeições dizia: “senhora cozinheira não me dava mais um pouquinho, um nadinha de comida a mais , por favor, uma nadinha...”. Eu advertia: “Ó senhora cozinheira não se engane, é só uma nadinha, meia batata, meia colher de arroz apenas…e o colega de mesa, educado e tímido como era reforçava…”pois é cozinheira é mesmo como o Sr. Doutor diz…”. Felizmente ninguém ligava ao que nós dizíamos e o prato da segunda vez aparecia cheio. Foi assim que esse meu amigo aumentou mais vinte quilos de peso. Até lhe é difícil andar agora! Passou de setenta a noventa quilos, facto quase inédito numa casa de repouso sempre a poupar para não gastar, mais inclinada a poupar para lucrar e repartir esse dinheiro poupado aos velhos pela família proprietária… Uma família que brinca com a vida dos utentes. Assim quando aparecem na casa de repouso vão logo directo desligar os aquecimentos dos quartos ou retirar o aquecedor da sala de convívio aquecida agora só pelo calor humano dos vinte e tal utentes apinhados nesta sala. A outra sala de estar antigamente usada, que é excelente, com sol e vista para o jardim e para as árvores foi suprimida por “ordem superior”…antes fosse brincadeira, pensava eu..,queria eu..,sonhava eu…

Essas brincadeiras com os meus colegas utentes não eram apenas minhas, a minha amiga gorda um dia disse-me que eu não era doutor nem merecia ser assim chamado porque eu andava a namorar com uma senhora utente que não prestava, dizia ela, porque nem sabia como me tratar, nem sabia dizer-me sr. Doutor como ela fazia…e essa minha amiga gorda deixou de falar comigo durante dias a fio; foi uma situação incómoda a de estar na mesa com quem estávamos habituados a falar, com quem tínhamos falado durante anos e que eu queria como amiga verdadeira. Felizmente a acusada de conviver comigo disse um dia a esta minha amiga que ela era uma esposa devota ao seu falecido marido, acrescentando que de certeza a senhora gorda também o seria. Então ela reconsiderou e sem explicação nenhuma começou a falar-me outra vez e desta forma um dia disse-me: “O senhor Doutor merece todos os complimentos porque  Deus o fez Doutor." Foi a melhor brincadeira da minha vida. O que eu tinha suado para ser doutorado, os anos de pesquisa, os montes de livros estudados, o sacrifício da minha família e agora no lar, a minha beata amiga pensa que tudo o que é bom desce desde do Criador, sendo nós uma pura porcaria que deveríamos agradecer e ficar calados! Engano que todos sofremos pelo ensino da Santa Madre…Igreja …Católica…uma simpatia dos cónegos que ensinam a palavra de Deus. Meu Deus! Santa paciência…! 

Os enganos são grandes, não só o do marinheiro mas também os dos dons atribuídos à divindade. Outro  engano divertido surgia à hora do jantar quando  um amigo de 92 anos telefonava à sua namorada e lhe dizia “...meu amor já estou na bicha do jantar”.  Era todos os dias corrigido por outra minha amiga utente, que dantes dançava comigo, mas que tinha perdido a sua capacidade de andar e que desde o seu confinamento numa cadeira de rodas ouvia, mandava e dizia-lhe, aos gritos;  “ não é bicha!...é fila! …bicha é homem que gosta de homem!” O  namorado apressava-se a corrigir, ou seja, sofria desse mal mundial que pune a quem ama pessoas do seu mesmo sexo, o que felizmente está a mudar… o amigo de 92 anos morreu antes de mudar de opinião. A amiga da cadeira de rodas não vai mudar facilmente como não muda para me dizer diariamente e várias vezes “Como está hoje Sr. Presidente Américo Tomás!” Dizer-me isso a mim que estou em Portugal por causa duma ditadura que combati, passei assim, vivendo num lar, a ter os poderes de outra ditadura que nunca conheci. Uma delícia de brincadeira!

São os divertimentos dos que não sabem que confundem a história da humanidade porque vivem noutra realidade chamada doença senil, como essa outra utente que entrou a falar francês aprendido da sua emigração de trinta anos em Paris e que após sete anos de vida no lar só canta em português as música da nossa Amália ou o hino de Fátima.  “A 13 de Maio…” Que nem Deus nem os gritos dos outros utentes conseguem calar; ou o caso do homem que vai a caminho aos 100 anos e que me chama “doido do caralho”. Um novo nome que este senhor criou para mim e que cada vez que não faz chichi na porta de entrada do lar vai à casa de banho que eu uso e quando eu entro ele entra também e diz-me “saca o seu caralho  para cruzar a sua mija  com a minha, como eu fazia com os meus amigos quando batíamos punheta todos juntos…” e  eu fujo antes que queira bater punheta comigo … . Eu nem reporto o caso à direcção, só ia arruinar a reputação do senhor centenário e não ia curar a demência senil de que sofre e que um dia o vai matar…

É uma risada o que conto e que tem divertido a minha vida no lar, na casa de repouso que tenho habitado há quase uma dezena de anos. Se não procurar esses divertimentos que o Mozart fez com a música no séc XVIII como ia eu poder viver e guardar comportamento adequado ao meu entendimento. Eu faço rir os mais próximos, os mais amigos, os colegas de mesa, mas até certo ponto apenas, porque uma não ouve, outra não tem voz, outro só fala para dizer que nada tem para dizer e… só fala para pedir mais comida ou para dizer “não me chateiam a cabeça…não me dêem  banho, não quero, nasci limpo…”,
pois é assim também como ele se cheira… É como um galinheiro em que a convivência de galinha, patos, gansos que tenho tido o prazer de cuidar ao longo da minha vida, bicam-se, os machos batem nas fêmeas, como é comum acontecer entre humanos…os mais grandes sempre batem nos mais pequenos como se o seu corpo fosse o capital que dá lucro que permite o prazer. É a alegria dos seres humanos que sabem bater nos mais perdidos…Diário querido…alegrias do lar…

Professor Doutor Raul Iturra, Catedrático Emérito do ISCTE-IUL

Texto Editado por Claire Smith, Antropóloga

Barra Mansa, 16 Novembro de 2024