Alegrias no Lar
“Era um capitão dum barco de turistas que no meio duma
tempestade chamou um marinheiro que era gago e disse-lhe para atirar a âncora
para parar o barco porque este estava a soçobrar. O marinheiro gago que mal
entendia as palavras e mal avaliava as situações, ripostou ao comandante:
“pois é capitão, é melhor so-sobrar do que fa-faltar…!” contava a minha
falecida irmã quando brincava em vida. Eu ria como um possesso com a história
do jovem marinheiro gago que confundia “soçobrar” que quer dizer afundar com o
“so- sobrar” que era a sua forma gaga de dizer sobrar… Era uma irmã divertida,
como o era também o escritor espanhol Jardiel Poncela do começo do século XX ,
que narra no seu espantoso livro “La Tournée de Dios” que o criador numa
anunciada visita à terra apareceu num balão Zeppelin... Os notáveis da terra o
esperavam em formação no cimo dum monte, com o representante da divindade
na terra, o Papa na frente da fila; Deus desce do Zeppelin, um velhinho magro,
pequeno, com uma pequena mala na mão direita e vestido de fraque, olha
indeciso e com temor para tanta gente aí reunida, hesita e avança duvidoso para
um senhor vestido de vermelho, ajoelha-se e diz com temor: “Santidade…” e
beija o chão… o cardeal em questão sente-se embaraçado e lhe diz com medo “meu
Senhor, não sou eu… é esse pequenino vestido de branco que está aí…” e
dissimuladamente o cardeal aponta várias vezes com o dedo para ao lado e Deus
diz…”Desculpe, é que há tanta gente… e faz tão pouco tempo que mudaram o meu
representante na terra que fico confuso… também já estou tão velho que me
engano…”
Se o marinheiro curtido equivoca-se, se a divindade
engana-se também, o que não será Diário querido dos enganos dos meus velhos do
lar! Era essa capacidade de se equivocar que vários de nós usamos maldosamente
para nos divertir com os nossos colegas utentes. Foi o que eu fiz vezes sem
conta com a minha querida amiga de mesa, essa senhora gorda que adorava a
hierarquia das classes sociais do qual eu tomei vantagem e disse-lhe um dia
que: “as pessoas da alta usam a colher e não a faca para comer”. Ela de imediato
pousou a faca, e passou doravante a usar a colher para comer; olhava para
mim com um porte altivo, elegante, com uma certa arrogância no seu visual e
passou a aconselhar a todos usar a colher em vez da faca para comer… Todo o lar
come agora com este talher tão prático que até os funcionários o aconselham e
todos o preferem. Duma brincadeira nasceu uma forma de comer bem mais
prática para os velhos. Ou também o problema do garfo… em que sugeri,
também à minha gorda amiga… “que os dentes do garfo devem-se pôr para baixo,
como o usam as marquesas e condessas para não se picarem os dedos”; essa minha
amiga acreditou e assim passou a fazer e foi imitada por vários utentes que se
orientavam pelo seu comportamento. Na visita seguinte da sua família ela apareceu
com ar de orgulho e disse “sou agora uma condessa e como como tal …o Sr. Doutor
ensinou-me” e a família ficou feliz por vê-la tão bem disposta. “Parabéns Sr.
Doutor parabéns por diverti-la!” Sem eu lhes dizer o que eu me tinha divertido
com estas anedotas. Como o caso de outro colega de mesa que adora comer e
repetir o prato, esse grande e gordo amigo meu, que a todas refeições dizia:
“senhora cozinheira não me dava mais um pouquinho, um nadinha de comida a mais
, por favor, uma nadinha...”. Eu advertia: “Ó senhora cozinheira não se engane,
é só uma nadinha, meia batata, meia colher de arroz apenas…e o colega de mesa,
educado e tímido como era reforçava…”pois é cozinheira é mesmo como o Sr.
Doutor diz…”. Felizmente ninguém ligava ao que nós dizíamos e o prato da
segunda vez aparecia cheio. Foi assim que esse meu amigo aumentou mais vinte
quilos de peso. Até lhe é difícil andar agora! Passou de setenta a noventa
quilos, facto quase inédito numa casa de repouso sempre a poupar para não
gastar, mais inclinada a poupar para lucrar e repartir esse dinheiro poupado
aos velhos pela família proprietária… Uma família que brinca com a vida dos
utentes. Assim quando aparecem na casa de repouso vão logo directo desligar os
aquecimentos dos quartos ou retirar o aquecedor da sala de convívio aquecida
agora só pelo calor humano dos vinte e tal utentes apinhados nesta sala. A
outra sala de estar antigamente usada, que é excelente, com sol e vista para o
jardim e para as árvores foi suprimida por “ordem superior”…antes fosse
brincadeira, pensava eu..,queria eu..,sonhava eu…
Essas brincadeiras com os meus colegas utentes não eram
apenas minhas, a minha amiga gorda um dia disse-me que eu não era doutor nem
merecia ser assim chamado porque eu andava a namorar com uma senhora utente que
não prestava, dizia ela, porque nem sabia como me tratar, nem sabia dizer-me sr. Doutor como ela fazia…e essa minha amiga gorda deixou de falar comigo
durante dias a fio; foi uma situação incómoda a de estar na mesa com quem
estávamos habituados a falar, com quem tínhamos falado durante anos e que eu
queria como amiga verdadeira. Felizmente a acusada de conviver comigo disse um
dia a esta minha amiga que ela era uma esposa devota ao seu falecido marido,
acrescentando que de certeza a senhora gorda também o seria. Então ela
reconsiderou e sem explicação nenhuma começou a falar-me outra vez e desta
forma um dia disse-me: “O senhor Doutor merece todos os complimentos
porque Deus o fez Doutor." Foi a melhor brincadeira da minha vida. O que
eu tinha suado para ser doutorado, os anos de pesquisa, os montes de livros
estudados, o sacrifício da minha família e agora no lar, a minha beata amiga
pensa que tudo o que é bom desce desde do Criador, sendo nós uma pura porcaria
que deveríamos agradecer e ficar calados! Engano que todos sofremos pelo ensino
da Santa Madre…Igreja …Católica…uma simpatia dos cónegos que ensinam a palavra
de Deus. Meu Deus! Santa paciência…!
Os enganos são grandes, não só o do marinheiro mas também os
dos dons atribuídos à divindade. Outro engano divertido surgia à hora do
jantar quando um amigo de 92 anos telefonava à sua namorada e lhe dizia
“...meu amor já estou na bicha do jantar”. Era todos os dias corrigido
por outra minha amiga utente, que dantes dançava comigo, mas que tinha perdido
a sua capacidade de andar e que desde o seu confinamento numa cadeira de rodas
ouvia, mandava e dizia-lhe, aos gritos; “ não é bicha!...é fila! …bicha é
homem que gosta de homem!” O namorado apressava-se a corrigir, ou seja,
sofria desse mal mundial que pune a quem ama pessoas do seu mesmo sexo, o que
felizmente está a mudar… o amigo de 92 anos morreu antes de mudar de opinião. A
amiga da cadeira de rodas não vai mudar facilmente como não muda para me dizer
diariamente e várias vezes “Como está hoje Sr. Presidente Américo Tomás!”
Dizer-me isso a mim que estou em Portugal por causa duma ditadura que combati,
passei assim, vivendo num lar, a ter os poderes de outra ditadura que nunca
conheci. Uma delícia de brincadeira!
São os divertimentos dos que não sabem que confundem a
história da humanidade porque vivem noutra realidade chamada doença senil, como
essa outra utente que entrou a falar francês aprendido da sua emigração de
trinta anos em Paris e que após sete anos de vida no lar só canta em português
as música da nossa Amália ou o hino de Fátima. “A 13 de Maio…” Que nem
Deus nem os gritos dos outros utentes conseguem calar; ou o caso do homem que
vai a caminho aos 100 anos e que me chama “doido do caralho”. Um novo nome que
este senhor criou para mim e que cada vez que não faz chichi na porta de
entrada do lar vai à casa de banho que eu uso e quando eu entro ele entra
também e diz-me “saca o seu caralho para cruzar a sua mija com a
minha, como eu fazia com os meus amigos quando batíamos punheta todos juntos…”
e eu fujo antes que queira bater punheta comigo … . Eu nem reporto o caso
à direcção, só ia arruinar a reputação do senhor centenário e não ia curar a
demência senil de que sofre e que um dia o vai matar…
É uma risada o que conto e que tem divertido a minha
vida no lar, na casa de repouso que tenho habitado há quase uma dezena de anos.
Se não procurar esses divertimentos que o Mozart fez com a música no séc XVIII
como ia eu poder viver e guardar comportamento adequado ao meu entendimento. Eu
faço rir os mais próximos, os mais amigos, os colegas de mesa, mas até certo
ponto apenas, porque uma não ouve, outra não tem voz, outro só fala para dizer
que nada tem para dizer e… só fala para pedir mais comida ou para dizer “não me
chateiam a cabeça…não me dêem banho, não quero, nasci limpo…”,
pois é
assim também como ele se cheira… É como um galinheiro em que a convivência de
galinha, patos, gansos que tenho tido o prazer de cuidar ao longo da minha
vida, bicam-se, os machos batem nas fêmeas, como é comum acontecer entre
humanos…os mais grandes sempre batem nos mais pequenos como se o seu corpo
fosse o capital que dá lucro que permite o prazer. É a alegria dos seres
humanos que sabem bater nos mais perdidos…Diário querido…alegrias do lar…
Professor Doutor Raul Iturra, Catedrático Emérito do
ISCTE-IUL
Texto Editado por Claire Smith, Antropóloga
Barra Mansa, 16 Novembro de 2024
4 comentários:
Tenho lido os teus textos sobre o lar. Estão muito bons, corajosos e divertidos. Vai ser uma publicação muito importante quando estiver acabado. Nunca vi nada do género. Abraços.
Foi com prazer que revi e publiquei o seu delicioso texto. Este livro vai ser precioso para os mais avançados em idade física, pois que consciência é outra coisa. Mas também para lares, políticas para séniores, proprietários, auxiliares, técnicos e, sobretudo, utentes, pessoas. E subscrevo José Smith que em poucas palavras, diz tudo. Abraços.
Tenho lido com prazer os comentários do meu enteado escritor português José Smith Vargas, filho do escritor português Alexandre Vargas e neto do inesquecível José Gomes Ferreira, autor de livros de banda desenhada, especialmente do 'O vale dos vencidos', editora Chile com carne, 2023, já a sair em segunda edição, um comentário fruto de anos de convívio e da sua pesquisa no bairro Mouraria, Lisboa, e duma leitura atenta dos meus capítulos deste livro...eu agradeço profundamente caro Josecito... já a começar um outro de banda desenhada com pesquisa histórica! Parabéns meu caro...!
Li o comentário do meu antigo estudante, hoje meu editor dum livro meu que tenta ser destemido e arrojado e ele, Luís Carlos Rodrigues dos Santos, julga que este capítulo é o livro é resultado de uma arte de escrita. Sinto-me acanhado... este meu editor tem a capacidade de me ler, corrigir, dar-me ânimo, guardar as minhas confidências que publicará quando eu morrer. Agradeço essa cumplicidade nascida duma especial amizade que temos tido...apesar dele me chamar ainda 'senhor professor '... nunca raul...! Envio este agradecimento com esse meu abraço que ele sabe, obrigado meu querido editor tão ilustrado que é...
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