sábado, 14 de dezembro de 2024

Do Diário de Vida de Raul Iturra


 A memória dos meus velhos


Eis-me irritante, meu Diário amigo, por essa crença das pessoas todas, dos velhos sermos esquecidos, não entendermos, não dizermos o que pretendemos, termos só memória do passado e ignorar o presente. No entanto, somos pessoas prioritárias em qualquer fila, deixam-nos passar primeiro nas ruas onde os carros param à nossa passagem. Vejo-me obrigado a agradecer mexendo a minha bengala em gesto de cumprimento. Faz pouco fui convidado a ver uma peça de teatro com a minha família. No foyer éramos uma multidão à espera do começo da obra. Os mais jovens, corpos ágeis, tinham aparecido primeiro e estavam sentados nas escassas cadeiras; o meu enteado mais velho e a sua mulher procuraram sítio para mim porque tínhamos chegado mais tarde devido ao meu caminhar lento; uma senhora amável levantou-se e convidou-me a usar o seu sítio contra todos os meus princípios de “ladys first” e dizer, como era meu hábito à mulher que me oferecia a cadeira e à mulher do meu enteado que elas é que deveriam ter prioridade. Princípio que ninguém queria aplicar, eu era um velhinho magro e tremido por estar em pé; eles eram amáveis entendiam a realidade, eu por minha vez queria usar o tradicional “mulheres primeiro” que tinha norteado quase oitenta anos da minha vida…Como é que uma mulher, ainda por cima bonita, ia-me dar o seu lugar?…

               Os velhos não somos pessoas que esquecemos, somos seres de princípios.  Estes princípios têm mudado com a passagem do tempo. Os nossos corpos resistem um pouco, cansamo-nos, custa-nos muito admitir essa realidade. Talvez uma simpatia devesse acompanhar essa gentileza de quem nos quer amparar para nos ajudar, sem acanhamento: um sorriso, uma palavra amável para nos aceitar, uma abertura e argúcia a outras realidades. Ó Diário querido como educar os jovens para serem espontâneos no seu apoio, com alguma imaginação e sem vergonha nem embaraço pela caridade que fazem. Caridade essa que entendo ser a atitude má. Ser caridoso é o que nós os velhos rejeitamos porque salienta a nossa inutilidade na interação social. Na sociedade capitalista da concorrência é a forma de mostrar que somos inúteis na produção, de nos sentirmos pouco ativos na vida social, especialmente depois de termos passado a vida a criar e orientar outros, a criar filhos para serem interativos. Fomos criados numa sociedade que entende que a realidade deve ser caridosa e que obriga a socorrer os velhos…Dizem de nós: “Eles não sabem, coitadinhos não entendem, esqueceram!” Tudo isto é indigno de nós.

               Tenho uma querida amiga entre os meus velhos do lar que fartava de dizer a todos os que queriam ouvir que ela era filha dum senhor que compunha música e escrevia poemas na sua casa da aldeia A, da freguesia B, do concelho de C, do distrito D, onde ela tomava conta do rebanho de cabras e ovelhas todo o dia enquanto ia lendo histórias; após sete anos de contar isto a todos, agora só lembra este facto se lhe é perguntado com simpatia numa conversa normal, com carinho e estímulo. Tenho reparado que este carinho e apoio estimula a memória que outros dizem que não temos, uma memória atrapalhada pelo medo dos que mandam, dos que decidem. Um temor destas nossas crianças que rapidamente no tempo passam a ser autoridades no lugar em que dantes éramos nós a organizar a sua vida. Não reclamo o status quo, não peço para parar a sociedade na geração anterior, só digo que não queremos condescendência, queremos igualdade no tratamento e amor na interação. Não queremos que gozem da nossa conversa, menos ainda fazer pouco de nós, mas queremos que seja aceite sem ironia a realidade que vive o adulto maior; se se aceita com alegria e estímulo o que uma criança inventa como realidade, porque não fazer igual com a criança velha? 

Tenho reclamado esse respeito ao longo da minha vida em livros e ensaios, mas nunca tive aderentes a essa ideia.

Tenho tido companheiros de quarto que se sentem atemorizados quando chegamos ao pé deles, gritam e pedem ajuda, como esse senhor acometido com o mal degenerativo de Huntington que, por casualidade, um dia perguntei-lhe quem era esse lindo rapaz numa foto que tinha ao pé dele, se era filho ou amigo. Ele parou de gritar e disse-me com orgulho ”esse sou eu aos meus vinte anos”. Comecei a falar com ele sobre a sua vida dessa altura, e ele passou a contar-me das pessoas namoradas que tinha tido e, na sua difícil maneira de narrar, disse-me do colega que o tinha seduzido e da mulher que o tinha abandonado pela sua doença. Desde aquele dia pude acarinhá-lo, ouvi-lo, perdi o medo, pude beijá-lo. Um carinho que ele passou a esperar da minha parte porque mais ninguém lhe falava ou acariciava. O medo que eu tinha com os seus gritos passou com o amor que lhe dei e ele por seu lado acalmou. Nenhum homem beija outro na nossa cultura pelo temor de ser qualificado como gay. Com esse medo os machos batem nos outros machos quando é necessário. Para acalmar e apoiar os meus colegas do lar, apenas os funcionários não cristãos tocam e beijam esses velhos doentes. Com eles aprendi e assim a memória volta, e torna a vida calma, volta a simpatia, a comunicação… o medo desaparece, esse medo que faz gritar. Também deste colega de mesa, que sempre dizia que nada tinha para dizer, descobri que tinha uma filha e uma sobrinha com as quais não se dava muito bem, mas foi-me contando a vida da sua descendência e do seu passado. Até ganhou peso, antes aprisionado num corpo magro de solidão, depois de ter socializado seu problema.

                A falta de lembrança também ocorre pela falta de contacto com a  normalidade da realidade criada nas pessoas pela demência senil ou doenças neurológicas que aparecem com a idade. Assim como a senhora que fala com a sua irmã defunta e que quando eu aceitei esta conversa como um facto real, ela passou a sentar-se ao pé de mim e a me contar as suas conversas com a morta. Facto que eu contei às suas filhas e a partir daí, sem dúvida, conseguiram melhorar a sua relação com a mãe. Eu próprio tive uma filha que inventou uma família que dormia na casa de banho da nossa casa. Ela não conseguia dormir sem antes ir deitar a sua família inventada que para ela tinha existência material. Se aceitamos a realidade inventada com respeito, carinho e inteligência para uma criança, porque não se aceita também a realidade inventada pelo adulto maior.

               Os velhos não esquecemos, a nossa verdade é que é diferente da histórica, até por motivos de limitações fisiológicas e biológicas. É difícil viver na interação da concorrência e do lucro para o que já não temos nem informação, força, apetite ou entendimento. A maior parte de nós não pode realizar operações bancárias ou mesmo de comunicação porque hoje em dia tudo é digital e virtual, até o dinheiro pelo que lutamos uma vida inteira transforma-se em números abstratos - nunca o vemos, é imaterial. Como é que se pode pretender que o velhinho se lembre da materialidade que sustenta a memória se hoje ela é completamente diferente? Hoje em dia há barrigas de aluguer para a reprodução humana, matrimónio entre pessoas do mesmo sexo, morte assistida, divórcio, namoros que começam pela cama, valor das palavras na mesma língua que tem diferente significados. É uma sociedade absolutamente diferente para o qual o velho ou velha, este adulto maior, foi educado e que as religiões persistem em impingir como verdade dogmática contra os princípios que agora governam a interação…  A maior parte da sociedade está condenada a não lembrar o que não viveu… Com carinho é que se entende as recordações e realidade deste ser que já é de outra história. A falta de carinho dá medo e o medo faz esquecer.

Professor Doutor Raul Iturra, Catedrático Emérito do ISCTE-IUL

Texto Editado por Claire Smith, Antropóloga

Barra Mansa, Dezembro de 2024 


2 comentários:

Anónimo disse...

Um texto que pode ser entendido como um “Manifesto dos Velhos”. A propósito do medo, aqui referido por Raúl Iturra, sugiro a leitura do artigo de Isabel Lucas “Que medo é este?, Ípsilon, 13/12/2024, p. 11, que percorre um conjunto de romances recentes (Canção do Profeta, A Parede, Rombo, Mandíbula, Autocracia, Inc., Maniac, Toda a Gente tem um Plano) que abordam diferentes medos que nos constrangem nesta sociedade globalizada e… deshumanizada.

Raul Iturra disse...

Agradeço seu comentário ao capítulo 11 do livro que escrevo sobre a vida num lar, excelente escrita! É isso o que pretendo como antropólogo que pesquisa e escreve, um Manifesto de velhos, eles não conseguem, felizmente eu até agora sim. Por problema familiar fui internado numa casa de repouso da qual saí com ajuda judicial, animado pelo meu médico, minha mulher e uma filha. Observei durante 9 anos o maltrato aos velhos - eu também - e denuncio o que observei. Todos precisamos carinhos e apoio, velhos retirados do seu ambiente familiar começam a criar demência. Beijar, abraçar, ouvir, acreditar nessas fantasias, é básico para a alegria de viver, e é o que os funcionários não conseguem, porque não têm tempo nem formação. Junte-se aos que lutamos pela melhor vida do adulto maior que no lar é acalmado com sedativos. O que tive que lutar eu para cortar com a prescrição de quem aí me internou, tive que esconder os comprimidos e despejar na sanita. Meus velhos não conseguem se rebelar, eu o faço por eles, com ajuda duma filha, a minha mulher e meu editor. Obrigado pela sua luta comigo em prol dos velhos sequestrados pela família... besos y abrazos