A minha família e eu, Diário Amigo...
"...Caralho...onde será que andam estes rapazes...José Luís! Luís
Migueeel...! andem cá...! Venham caralho...! O “inri” disse-me que iam andar
bem... que o Luís Miguel podia caminhar...puxa onde é que andam estas merdas...
Luís Migueel!?! José Luíis!?! Joosé Luís..!! andem cá...! disse-me este senhor,
o “inri” como a palavra de Jesus quando estava crucificado…, esse que se senta
perto da porta de entrada… que vocês andam na vindima... será...? …talvez este
corredor por onde ando me leve para o caminho... Luíis Migueel…!, José
Luíis...!! tira-te daí puta... sai do meu caminho sua bêbada... esta é a minha
rua...puta... sai...ai!, aí há uma porta...vejo um pátio que de certeza leva-me
à estrada que me leva à vindima... José L…, L... Miguel...será que foram à casa
da Ivonne... a minha filha ...Luíiis... não pode ser, ela dá aulas... ha! cá
está a porta que me tira de aqui... mesmo...vai dar ao caminho onde me disse o
senhor que era a vindima… é só um salto... é só andar e rápido porque faz-se
noite e vejo mal... meninos!... a comer pois... onde é que estão
meninos?... paparoca!!... vejo pouco ...o sol entrou... caralho... olá, vem aí
um carro... vou correr pró mato para não me atropelar... atão... vem aí uma
senhora e um senhor... não queero…, não me agaarrem...! que eu não grite? como
não vou gritar se me estão a agarrar para eu não ir à vindima ter com os meus
rapazes! …o que vão eles cear? não vê que trabalham o dia inteiro e têm fome...
largue sua puta bêbada... soltem-me... meus filhos são doentes e vou levá-los à
casa... larguem-me digo!... não quero entrar no seu carro... ai caralho... está
me a magoar... Luís...Zé Miguel...! …larguem-me os braços... não vou entrar...
aí... aí... aí..." Foi o que disse a minha amiga magra do lar, enquanto
empurrava portas e afastava velhos para fugir da casa de repouso. E foi o que
fez com sucesso. Ela foi encontrada pelos funcionários que saíram de carro a
correr à sua procura no entardecer, numa tarde de inverno, alarmados e
assustados pela sua segurança. Por sorte foi que uma senhora a viu na estrada a
andar sem tino e gritar o nome de pessoas, calculou que ela era do lar e
avisou-nos. Não era a primeira vez que essa mulher de 94 anos que vivia no lar,
sempre em procura dos seus filhos já adultos, mas com atraso mental… zangava-se
com todos e fugia para tratar deles... a família colocou-a no lar, mas todos os
dias a sua angústia crescia por não os ver. Ela batia nas pessoas todas porque
não podia tratar desses adultos doentes, que eram crianças para ela…
Um dia meditava eu, com tristeza, nesta mãe frustrada que
procurava os seus filhos, quando ouvi de repente pontapés e golpes na porta do
refeitório e um pranto de agonia que interrompeu a minha meditação... "deixem-me
entrar ... abrem a porta pois... tenho que ir trabalhar para lavar os pratos do
jantar que cozinhei para os miúdos deste jardim de infância...abrem a porta...
não sejam maus, devo acabar meu trabalho para esses pequeninos, por favor... se
não trabalho como é que posso tomar conta do meu marido... e desses pequenos...
abrem...!! por favor!..." dizia a pequena cozinheira de metro e meio
de altura que, em desespero, temia não cumprir ao que estava obrigada no seu
emprego. A senhora chorava com grande mágoa. Então eu tomei as suas mãos,
beijei a sua cabeça e tentei acalmá-la porque sofria mais do que uma senhora
idosa como ela podia suportar. Sua sobrinha veio visitá-la como fazia sempre
todas as três semanas e desta vez contei-lhe a desventura da sua tia. Ela
disse-me que mais nada podia fazer por ela, e já era muito, que a sua tia era
uma viúva sem filhos que se tinha fartado de trabalhar para cuidar do seu
marido doente e tinha adoecido quando ele morreu… regressando à infância... Por
isso, essa pequena mulher ia a todos os quartos à procura de roupa para levar
para a casa do seu marido...que a esperava para jantar. Um triste fim de vida
para quem contribuiu para o bem estar dos filhos de outros, que na sua
esterilidade não foi capaz de conceber. Por isso ela adotava emotivamente os
filhos dos outros... que ia perdendo a cada ciclo, nessa elementar ação de os
alimentar, o mais humano dos trabalhos… alimentar para manter crianças vivas e
felizes! Ó Querido Diário uma luta sem fim, esse anseio desesperado de dar
conforto às suas crianças agora imaginárias, esse manter vivo o homem que
amava, uma louvável acção aprendida no seu duro lutar pelos outros.
" Anda Esmeralda - essa irmã defunta que ela ressuscitou, senta-te aqui comigo, querida irmã, aquece as minhas mãos pois eu não consigo, dá-me essa manta para me agasalhar antes que venha o nosso irmão João ma tirar e que eu fique com frio… ele vai dizer que já tenho manta nas pernas, para que quero mais... e quê... eu queria outra manta agora para as minhas costas... anda menina, dá já!… que morro de frio... essa manta não é de ninguém, digo-te é minha pois… anda… dá cá mulher... olha! ... repara abriu-se a porta da rua... vamos já fugir com este senhor que a abriu… carago…”. E dizia o velho que abriu a porta “abri a porta não sei como, consegui tirar o fecho de cima... vou correr para treinar à bola o meu plantel... assim continuo ativo para que os meus filhos se orgulhem de mim... dinheiro eles já têm…, trabalho também, falta-lhes ter o prazer de contar com um pai bem conhecido e muito aplaudido pelos outros... vamos minha senhora para o campo da bola?" "Vamos senhor sim com a minha irmã Esmeralda..." "… que bom sermos tantos... tem que me aplaudir muito!..." "aplaudimos Esmeralda?” "Que diz ela senhora..." "Diz que não entende a merda da bola, mas que como vamos fugir juntos vai bater palmas para agradecer..." "Bom então..." "Vamos depressa...?" "...vamos pois, vão gostar de me ver treinar, estou certo..."
Aí parou a aventura que vi e ouvi. Fui calmamente ao gabinete da direcção
referir deste projeto de escapada e a aventura cessou... Tinham conseguido
abrir a porta e sair para bem deles foram travados no seu intento, mas
desapontados na realidade por eles fabricada.
Relatos de situações recriadas bem melhores que a que o lar
ou as suas famílias fossem capazes de lhes inventar ou sugerir. Para familiares
e funcionários do lar eram transgressões por mentes doentes, não uma elaboração
feita por seres humanos agora isolados que antes tinham sido habituados a
carícias, a ter responsabilidades, dar e receber amor, a ter uma família e que
perderam desde o dia que entraram no lar e tiveram que inventar uma alternativa
para acompanhar essas emoções vazias. Para a família era um congeminar de
mentes doentes, não era entendido como algo que se procura, com essas
elementares criações e assim encontrar um amor que já não têm. A pior das
faltas num lar. Os velhos são pessoas que amam e tentam recuperar uma vida
doméstica perdida com imaginária criação.
Querido Diário, tudo isso é uma atentado contra família,
carinho, maturidade e passa a ser substituído com um grande investimento de
ternura em seres com atividades inventadas. É difícil entender este
comportamento mas parece-me que deveria ser respeitado como um direito de
recriar uma família com o aconchego amoroso necessitado por todo o adulto
maior... beijos e abraços Diário Querido...se não falo contigo, com quem falo
então...?
Professor Doutor Raul Iturra, Catedrático Emérito do
ISCTE-IUL
Texto Editado por Claire Smith, Antropóloga
Barra Mansa, Fevereiro 2025
2 comentários:
Caro Amigo Angel. Acabo de pensar que o seu diário deveria vir assinado por Raul Angel Iturra.
Quanto ao seu português, discordo de que tem erros. Penso que a escrita, enquanto expressão artística, deve ser o mais livre possível. Assim, como um poema, ou uma pintura. Quem as lê, observa, nunca percebe tudo o que lá está, é sempre uma interpretação...
Como sempre, acho o seu texto muito bom, profundo e interventivo no melhor sentido da palavra. Gosto do jeito como escreve, muito ao jeito dos surrealistas que lhe chamavam "escrita automática". Gosto muito, porque vem, sobretudo, do coração... e como o seu intelecto tem um treino de muitos anos, apuradíssimo, juntar cabeça e coração é o mesmo que juntar ciência e poesia. Numa palavra: brilhante.
Texto triste, o deste mês.
Excelente o registo etnográfico da oralidade.
Quando for para publicação em livro, o texto precisa de ser burilado. Nada tem a ver com o estilo (muito próprio) de escrita, mas a Claire também tem alguma razão. No site (_Estudo Geral_) lê-se, mas para o livro tem que se ser mais exigente. Grande abraço
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