domingo, 8 de junho de 2025

O Encantador de Patos

Raul Angel Iturra 



      Carta para Carlos Roque Santos no dia da sua morte

Vi-o sair do seu sofá ao pé do meu no corredor da entrada do lar, meu caro, como sempre tem feito para ir à sala de convívio para ver o futebol. Qualquer jogo é válido para si meu querido amigo Carlos. Foi a arrastar os pés, como sempre, a puxar/alastrar essas pantufas já meio desfeitas por tanto uso; e eu já farto de lhe dizer: “levanta os pés, homem! parece um velho caquético! não o é!” Eu não sei bem o que é caquético, nem o meu amigo, mas a palavra soa bem, então o Carlos levantava os pés para andar ou pelo menos não os arrastava no perímetro da minha audição. O Carlos tem por hábito fazer tudo o que lhe seja pedido. Mesmo se não gostava de dizer muito obrigado cada vez que eu lhe media a tensão arterial, eu dizia-lhe: lembra-se meu caro? E o Carlos proferia essa palavra que lhe soava mal.

Esses cinco anos sempre um ao pé do outro, cimentaram um precioso convívio entre nós dois, não lhe parece? Se se lembrar bem tudo começou quando o Carlos apareceu no lar vindo da sua casa e foi colocado em quarentena por causa de um vírus que andava por aí e que diziam que matava. O Carlos não cumpriu a quarentena, andou pelo corredor livremente e eu, com medo, fui ter consigo e perguntei-lhe “qual é o seu nome?”. O Carlos disse-me o seu nome, mas eu não entendi e acrescentei “sou o Doutor Raul Iturra, o senhor devia estar no seu quarto sem sair por causa do contágio…”. O meu amigo deu-me um olhar admirado e esticou a mão que eu não quis tocar, com medo de ficar contagiado. O Carlos nunca entendeu as alternativas às convenções sociais, não as aceita, nunca as aceitou. Entendi depois, transcorrido um tempo. Pareceu-me destemido e sorridente, mas muito convencional, tempo depois entendi que era assim consigo e adaptei-me à sua forma de ser. Nesse dia lembro-me de lhe ter dito que não devia sair do seu quarto por ordem médica e na altura meu amigo pensou que o médico era eu por me ter apresentado como doutor. Meu caro amigo, não sabe que há doutores noutras ciências! Nunca o entendeu, nunca o aceitou, não é caro Carlos? Recordava tudo isso e mais enquanto ia andando a arrastar os pés entre o seu sofá e a sala de convívio. 

Recordo ainda, como por exemplo, que era alto, magro, cabelo branco e ralo, olhos azuis profundos, que tinha sido loiro antigamente. Era um homem bonito; que, se meu caro lembra, era disputado pelas mulheres, o que veio a confirmar ao longo da nossa amizade. Lembra-se Carlos que um dia nós dois homens velhos, falávamos de meninas e do encantador que era beijá-las e fazer amor com elas, descrevendo aspectos dos seus corpos e do que mais gostávamos nelas e disse-me “sabe da tal mulher” - deu-me o seu nome e acrescentou “foi a minha amante…” shui! gritei desgostoso, isso não se diz, homem! salve a honra da senhora. Se quer falar dela diga que foi sua namorada sem dizer como se chama, caramba!” lembra-se disso! penso que se lembrou porque nunca mais me citou nomes de senhoras bonitas das que, como dois velhos verdes, não parávamos de falar de como era quando você e eu éramos jovens. Conversas que nestes tempos da juventude eram com detalhes eróticos que agora já não usamos. Normalmente só falamos de lembranças do passado, o presente para si e para mim são apenas reminiscências. O Carlos disse-me um dia que sentia falta das mulheres, mas não sei se o Carlos tinha alternativas. Em miúdos inventávamos para nos exibir frente aos nossos jovens amigos, especialmente frente aos mais atraentes que queríamos enxovalhar com os nossos triunfos. Não sei se o Carlos bonito como era, teve muitos amores, meu amigo muito formal, nunca me contou detalhes. 

Mesmo com senhoras do lar tem sido atencioso, como com a tal Lourdes de 98 anos que aparecia no nosso corredor à espera do jantar e meu caro lhe oferecia sempre seu sofá para ela se sentar; ela embaraçada dizia-lhe sempre não, mas o Carlos não suportava ver uma mulher em pé, levantava-se de imediato. 

Sabe Carlos, sempre tive pena da sua distância entre si e a sua única filha da qual nunca mais soube “Não nos dávamos bem” dizia quando falávamos de família; eu manifestava a minha tristeza sem reparar que comigo era igual. Nunca mais soube de uma das minhas filhas, o que nunca lhe contei, era-me difícil aceitar esta realidade. O meu amigo é mais prático, se uma relação não é possível cada um segue com o seu caminho, sem pranto nem saudade. Vou-lhe dizer mais tarde que admiro como sabe ter cuidado de si, eu ainda não aprendi muito embora esteja a imitá-lo. 

Fica clara essa forma de ser, pragmática no seu espantoso desejo de comer muito, sempre com repetição. Eu dizia-lhe “homem já vai para os noventa quilos, as meninas não gostam dos pesos pesados, custa-lhes suportar tanto por cima dos seus frágeis corpos que tanto gostamos”. Essa sua forma prática de entender a vida pareceu-me óbvia quando um dia lhe perguntei com quem se parecia na sua família: “ao pai, à mãe, avós, irmãos?” Disse-me que a ninguém, eles eram mais do tipo escuros e que não tinha irmãos…os pais nunca lhe disseram de onde foram herdados os cabelos loiros, os olhos azuis nem a pele branca, “nem sei se fui adotado” costumava-me dizer, encolhia os ombros com a sua naturalidade, não lhe interessava.

Meu caro Carlos, à nossa idade a vida acaba sem explicação, de repente, em silêncio. Acabam de me dizer que sentiu-se mal, que caiu, que correram ao pé de si dois funcionários a ampará-lo…O rapaz funcionário o ajudou, o abraçou e o meu Carlos amigo parou de respirar em apenas um minuto, nos seus 87 anos que ia cumprir em Junho. Muita idade, muita doença do coração ao longo da sua vida…, teve assim uma morte que chamamos “santa”, nem reparou. Meu caro amigo, jeitoso, namorado, comilão, autoritário de forma amável, dou-lhe um abraço com dois beijos para o acompanhar dentro da eternidade. Choro a sua morte, que ainda não me parece verdade…seu amigo doutor, como dizia sempre quando me chamava…vi-o sair do sofá ao pé de mim e nunca mais voltou, mas será sempre meu caro rapaz jeitoso, mesmo na sua velhice…


Raul Iturra, o encantador de patos

Barra Mansa, 3 de Junho de 2025

Editado por Claire Smith

quarta-feira, 4 de junho de 2025

José Pacheco. Fazendo a Ponte.


José Pacheco 

 José Francisco de Almeida Pacheco educador e pedagogo, grande defensor e dinamizador da gestão democrática da educação, nasceu no Porto em 10 de maio de 1951.

Foi professor primário e universitário. Crítico do sistema tradicional de ensino, defende uma escola sem turmas, sem testes ou exames, sem reprovações, sem campainhas Para ele, a aula tradicional é um sistema ultrapassado de reprodução de conteúdos que impede cada criança, cada pessoa, de se cumprir em corpo e alma.

Em meados de 2017, era impulsionador de dezenas de projetos para uma nova educação no Brasil e colaborador voluntário no Projeto Âncora, que segue o mesmo método de ensino da "Escola da Ponte". Uma escola focada na autonomia e protagonismo do aluno, no “aprender a aprender”, na “autoformação orientada”, centrada numa relação estreita entre professor e aluno. “A Escola com que Sempre Sonhei sem imaginar que Pudesse Existir”, como diz o título do livro do grande pedagogo brasileiro Rubem Alves.

A famosa Escola da Ponte em Portugal está a fazer 50 anos. José Pacheco um dos seus criadores vive há 25 anos no Brasil, mas o projeto ficou bem ancorado e, até hoje, continua bem vivo, assente num modelo pedagógico de vanguarda que o distingue dos princípios políticos educativos que orientam a gestão da escola pública no país.

Embora radicado no país irmão, José Pacheco vem habitualmente a Portugal participar em encontros vários, onde discorre sobre os seus ideários pedagógicos, e a praxis em que eles se erguem, sendo que é esse um dos méritos que se lhe reconhece, não se reduzir à elaboração de ideias num plano exclusivamente teórico, mas antes servir-se da teoria para desenvolver práticas bem consolidadas. A Escola da Ponte em Portugal, o Projeto Âncora no Brasil, são dois desses significativos projetos, também sustentados pela publicação de uma centena de livros pelo mundo inteiro.

Nos últimos anos tem vindo também a globalizar as suas ideias na criação de uma “rede de comunidades de aprendizagem”, com encontros regulares online, onde com vai partilhando e debatendo as suas propostas educativas.

Este ano, 2025, meses de abril e maio, preparou para Portugal uma série de Encontros sobre Educação, Guimarães, Lisboa, Setúbal… onde, onde em articulação com entidades e colegas, vem falar das suas mundivivências pedagógicas e lançar dois novos livros: “Porque não há mais Escolas como a Escola da Ponte?” e “Inovação Mata Inovação”. Curiosamente, a sua obra, embora publicada em vários países do mundo, não está publicada e é pouco conhecida em Portugal. Porque será?

É evidente que as ideias em que José Pacheco alicerça o seu pensamento não surgem unicamente das experiências acumuladas enquanto professor, num percurso já com mais de cinco décadas. Herdeiro que se diz do movimento social do “Maio de 68”, iniciou a profissão ainda no tempo da “velha senhora”, leia-se, ainda durante o regime fascista em Portugal, antes da Revolução Democrática do 25 de abril de 1974, período em que chegou a ser preso político, por oposição ao regime.

As suas ideias são sustentadas pelos desenvolvimentos pedagógicos da modernidade, muito particularmente, depois do aparecimento do movimento da “Escola Nova”, que António Sampaio da Nóvoa adjetiva como “a melhor geração pedagógica de sempre”, uma síntese herdada de ilustres educadores e professores que alguém apelidou como os “filhos de Rousseau”, tais como, Dewey, Montessori, Steiner, Freinet, Freire, Adolfo Lima, António Sérgio e, como diz Pacheco, muito particularmente Agostinho da Silva. Como disse neste abril no Encontro de Guimarães, foi quando conheceu a obra de Agostinho da Silva, avidamente lida de uma ponta a outra, que consolidou o ideário pedagógico  com que se lançou no projeto da Escola da Ponte.

Agostinho da Silva que, aproveite-se a deixa, também passou 25 anos da sua vida no Brasil, onde lecionou em várias universidades, do norte ao sul do país, tal como criou vários Centros de Estudos, como por exemplo, o Centro de Estudos Afro-Orientais, na Universidade de São Salvador da Bahia, e o Centro de Estudos Portugueses, na Universidade de Brasília, onde acaba por fechar a sua atividade docente, depois do golpe militar que instaurou a ditadura no país.

Agostinho da Silva regressa a Portugal em 1969 e, além do mais, é nele que José Pacheco, como o próprio diz, vai encontrar o impulso decisivo que o levaria aquele ímpar projeto de inovação pedagógica. Mas, acrescente-se que no arranque inicial do Projeto não estava só, com ele estavam mais duas professoras, cujos nomes pouco aparecem a público, que erguendo os valores da liberdade, responsabilidade e solidariedade, o ajudaram a “Fazer a Ponte”.

Luís Carlos R. dos Santos
maio/2025

Referências principais: José Pacheco, Educação Nova, Escola Moderna, Célestin Freinet, Agostinho da Silva, Rubem Alves.