Raul Angel Iturra
Carta para Carlos Roque Santos no dia da sua morte
Vi-o
sair do seu sofá ao pé do meu no corredor da entrada do lar, meu caro, como
sempre tem feito para ir à sala de convívio para ver o futebol. Qualquer jogo é
válido para si meu querido amigo Carlos. Foi a arrastar os pés, como sempre, a
puxar/alastrar essas pantufas já meio desfeitas por tanto uso; e eu já farto de
lhe dizer: “levanta os pés, homem! parece um velho caquético! não o é!” Eu não
sei bem o que é caquético, nem o meu amigo, mas a palavra soa bem, então o
Carlos levantava os pés para andar ou pelo menos não os arrastava no perímetro
da minha audição. O Carlos tem por hábito fazer tudo o que lhe seja pedido.
Mesmo se não gostava de dizer muito obrigado cada vez que eu lhe media a tensão
arterial, eu dizia-lhe: lembra-se meu caro? E o Carlos proferia essa palavra
que lhe soava mal.
Esses cinco anos sempre um ao pé do outro,
cimentaram um precioso convívio entre nós dois, não lhe parece? Se se lembrar
bem tudo começou quando o Carlos apareceu no lar vindo da sua casa e foi
colocado em quarentena por causa de um vírus que andava por aí e que diziam que
matava. O Carlos não cumpriu a quarentena, andou pelo corredor livremente e eu,
com medo, fui ter consigo e perguntei-lhe “qual é o seu nome?”. O Carlos
disse-me o seu nome, mas eu não entendi e acrescentei “sou o Doutor Raul
Iturra, o senhor devia estar no seu quarto sem sair por causa do contágio…”. O
meu amigo deu-me um olhar admirado e esticou a mão que eu não quis tocar, com
medo de ficar contagiado. O Carlos nunca entendeu as alternativas às convenções
sociais, não as aceita, nunca as aceitou. Entendi depois, transcorrido um
tempo. Pareceu-me destemido e sorridente, mas muito convencional, tempo depois
entendi que era assim consigo e adaptei-me à sua forma de ser. Nesse dia
lembro-me de lhe ter dito que não devia sair do seu quarto por ordem médica e
na altura meu amigo pensou que o médico era eu por me ter apresentado como
doutor. Meu caro amigo, não sabe que há doutores noutras ciências! Nunca o
entendeu, nunca o aceitou, não é caro Carlos? Recordava tudo isso e mais
enquanto ia andando a arrastar os pés entre o seu sofá e a sala de
convívio.
Recordo ainda, como por exemplo, que era alto, magro,
cabelo branco e ralo, olhos azuis profundos, que tinha sido loiro antigamente.
Era um homem bonito; que, se meu caro lembra, era disputado pelas mulheres,
o que veio a confirmar ao longo da nossa amizade. Lembra-se Carlos que um
dia nós dois homens velhos, falávamos de meninas e do encantador que era
beijá-las e fazer amor com elas, descrevendo aspectos dos seus corpos e do que
mais gostávamos nelas e disse-me “sabe da tal mulher” - deu-me o seu nome e
acrescentou “foi a minha amante…” shui! gritei desgostoso, isso não se diz,
homem! salve a honra da senhora. Se quer falar dela diga que foi sua namorada
sem dizer como se chama, caramba!” lembra-se disso! penso que se lembrou porque
nunca mais me citou nomes de senhoras bonitas das que, como dois velhos verdes,
não parávamos de falar de como era quando você e eu éramos jovens. Conversas
que nestes tempos da juventude eram com detalhes eróticos que agora já não
usamos. Normalmente só falamos de lembranças do passado, o presente para si e
para mim são apenas reminiscências. O Carlos disse-me um dia que sentia falta
das mulheres, mas não sei se o Carlos tinha alternativas. Em miúdos inventávamos
para nos exibir frente aos nossos jovens amigos, especialmente frente aos mais
atraentes que queríamos enxovalhar com os nossos triunfos. Não sei se o Carlos
bonito como era, teve muitos amores, meu amigo muito formal, nunca me contou
detalhes.
Mesmo com senhoras do lar tem sido atencioso, como com
a tal Lourdes de 98 anos que aparecia no nosso corredor à espera do jantar e
meu caro lhe oferecia sempre seu sofá para ela se sentar; ela embaraçada dizia-lhe
sempre não, mas o Carlos não suportava ver uma mulher em pé, levantava-se de
imediato.
Sabe Carlos, sempre tive pena da sua distância entre
si e a sua única filha da qual nunca mais soube “Não nos dávamos bem”
dizia quando falávamos de família; eu manifestava a minha tristeza sem
reparar que comigo era igual. Nunca mais soube de uma das minhas filhas, o que
nunca lhe contei, era-me difícil aceitar esta realidade. O meu amigo é mais
prático, se uma relação não é possível cada um segue com o seu caminho, sem
pranto nem saudade. Vou-lhe dizer mais tarde que admiro como sabe ter cuidado
de si, eu ainda não aprendi muito embora esteja a imitá-lo.
Fica clara essa forma de ser, pragmática no seu
espantoso desejo de comer muito, sempre com repetição. Eu dizia-lhe “homem já vai para os
noventa quilos, as meninas não gostam dos pesos pesados, custa-lhes
suportar tanto por cima dos seus frágeis corpos que tanto gostamos”. Essa
sua forma prática de entender a vida pareceu-me óbvia quando um dia lhe perguntei
com quem se parecia na sua família: “ao pai, à mãe, avós, irmãos?” Disse-me que
a ninguém, eles eram mais do tipo escuros e que não tinha irmãos…os pais nunca
lhe disseram de onde foram herdados os cabelos loiros, os olhos azuis nem a
pele branca, “nem sei se fui adotado” costumava-me dizer, encolhia os ombros
com a sua naturalidade, não lhe interessava.
Meu caro Carlos, à nossa idade a vida acaba sem
explicação, de repente, em silêncio. Acabam de me dizer que sentiu-se mal, que
caiu, que correram ao pé de si dois funcionários a ampará-lo…O rapaz
funcionário o ajudou, o abraçou e o meu Carlos amigo parou de respirar em
apenas um minuto, nos seus 87 anos que ia cumprir em Junho. Muita idade, muita
doença do coração ao longo da sua vida…, teve assim uma morte que chamamos
“santa”, nem reparou. Meu caro amigo, jeitoso, namorado, comilão, autoritário
de forma amável, dou-lhe um abraço com dois beijos para o acompanhar dentro da
eternidade. Choro a sua morte, que ainda não me parece verdade…seu amigo
doutor, como dizia sempre quando me chamava…vi-o sair do sofá ao pé de mim e
nunca mais voltou, mas será sempre meu caro rapaz jeitoso, mesmo na sua
velhice…
Raul Iturra, o encantador de patos
Barra Mansa, 3 de Junho de 2025
2 comentários:
Texto cheio de ternura e companheirismo. Análise psicológica num discurso sempre a transbordar de antropologia. E eu a pensar que R.I. tinha posto um ponto final aos seus etnográficos escritos sobre essa dolorosa experiência do lar… O livro acaba por ir ganhando mais um capítulo. A perda de um amigo deixa-nos mais sós. Resta-nos a memória, esse enorme acervo a que recorremos para fazer o passado, presente.
Agradeço seu comentário querido amigo Luiz Souta! Vivo essa época em que a minha geração desaparece. Vivo de recuerdos dos mortos e de como era solicitado por tanta gente... que já me enterrou!! Só lhes falta ir ao meu funeral para encerrar o capítulo comigo! Penso que a minha análise da velhice não vai parar, os velhos somos tão infantilizados, eles não têm voz para se defender nem sabem como. Eu queria falar por eles. A escrita do meu livro de Antropologia da velhice, não senilidade que quer dizer tanta coisa, velhice é específica, acabará na minha morte. Educação e velhice são dois tópicos que não vou-me cansar de explorar, até para minha defesa... tenho que lutar para ser tratado como igual... eu que tenho lutado a vida toda pela igualdade, até vivo exilado por essa causa. Quando eu morrer por favor veja com a minha mulher Claire Summers Smith e meu editor Luís Carlos Santos como pôr ponto final a estes textos e publicar em papel pela Fim de Século, prefácio do meu médico Alexandre Castro Caldas. O digo publicamente para que se saiba a minha vontade... besos y abrazos, obrigado pelo seu apoio e comentários...
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