terça-feira, 14 de dezembro de 2021

Literatura: o pão nosso de cada dia (II)

 Luís Souta 


O LIVRO: do papel ao digital

«Está acabada a cultura baseada em livros que era partilhada

pelas «pessoas intelectuais» de todo o Ocidente e das suas colónias»

(Passos Perdidos, Paulo Varela Gomes, 2016:58)

 

Muito se tem discutido sobre o futuro do livro na sociedade da informação (ou «educativa», como Carneiro a classificou em 2001). Debate algo estranho e aparentemente deslocado no tempo, pois seria natural que, num macro contexto deste tipo, o livro ganhasse um estatuto e uma divulgação como nunca conhecera no passado. Só que outros fenómenos emergiram pujantes, designadamente o multimédia. Concorrente fortíssimo o audiovisual – «civilização videológica» – onde a imagem não exige o esforço de concentração e descodificação que a leitura implica (Sartori, 2000). Num tempo de fugacidade, de que o spot e o vídeoclip são o paradigma, a leitura de um livro, que exige tempo e continuidade, corre sérias ameaças.

1. A perenidade do livro

No romance Para Sempre, Vergílio Ferreira remete o livro para um passado de que hoje só nos restam imagens, memórias ou artefactos de museu: «O tempo do livro é o tempo do artesanato. Coisa destinada a um indivíduo, fabricada com vagares, consumida com vagares. (…) O tempo do livro é o do candeeiro de petróleo, o das meias de algodão feitas em casa à agulha, o das papas de linhaça e do óleo de fígado de bacalhau. O das ceroulas compridas com atilhos. É o tempo dos botins e das cuias, dos palitos para palitar os dentes depois da sobremesa. O tempo das perucas, das lamparinas e dos penicos. (…) O tempo do livro é o do carro de bois» (1983:106,107,108).

Numa posição mais confiante na durabilidade do livro, independentemente dos novos aparatos comunicativos, Miguel de Sousa Tavares, numa entrevista concedida à revista semanal Pública (04/03/2001, pp. 28-32), aquando da edição do seu livro Não te deixarei morrer David Crockett, defende «que os grandes leitores têm uma relação física com os livros (…) o livro objecto é aquilo que desperta a vontade, o verdadeiro prazer de ler. Acho que as pessoas que lêem a internet nem sequer são leitores. Um leitor é uma pessoa que adormece com o livro ao colo, acorda, escreve no livro ou não escreve, marca as páginas (…). Eu não acredito numa civilização que não lê.»

Mais peremptório ainda é António Barreto quando afirma, com convicção: «O livro é eterno» (2002:343).

Muitos são aqueles que questionam a prática generalizada da leitura de um livro (e em especial de um romance) num ecrã de computador. Hoje, o acesso ao livro electrónico (e-book) 1 é extremamente facilitado (em termos técnicos, operacionais e até financeiros). Mas a relação física e afectiva (o toque, o cheiro, a memória de uma oferta…) que o leitor estabelece com o livro enquanto objecto não é substituível pelos meios informáticos, que remetem o texto para o campo da virtualização. As potencialidades que são reconhecidas ao «hiperlivro» (por exemplo, a rapidez na pesquisa de um elemento do texto, seja uma frase, uma expressão, o nome de um personagem ou de um lugar, os links possíveis com outros textos e autores), dirigem-no mais para uma utilização pragmática e parcelar, ligada a actividades de análise e estudo, do que ao processo normal de uma leitura sequenciada, capítulo a capítulo.

A leitura em livro tem a vantagem de ser feita em casa, na rua, nos transportes, praticamente em qualquer lugar; ainda que a miniaturização dos computadores aproxime o portátil, o tablet ou o iphone dessas virtualidades atribuídas ao livro, há limites e obstáculos a superar (por enquanto?) como a autonomia energética, o acesso à rede wireless ou a dimensão reduzida da mancha gráfica (ainda que atenuada com os ecrãs suaves que não cansam a vista). Coisas menores, poder-se-ia dizer, preconceitos de uma geração que, tem dificuldades de adaptação na passagem do táctil para o digital (do palpável ao virtual). Uma geração que entrou em contacto com todos estes equipamentos numa fase muito adiantada da sua formação, com uma maturidade já definida e estilos de vida pessoal e de aprendizagem consolidados. Seriam então os jovens, já socializados com a informática desde muito cedo, os “coveiros” do livro.

Mas tal parece ser contrariado, entre nós, pelos dados divulgados por diversos estudos e sondagens. Livreiros e bibliotecas públicas mostram como a compra e a leitura de livros, entre os estratos mais jovens, é das mais florescentes. O Observatório das Actividades Culturais constata, em 2001, a manutenção da «centralidade simbólica» do livro, ainda colocado pelos jovens no topo hierárquico dos bens culturais, apesar de no dia a dia privilegiarem os meios audiovisuais.

Estamos numa nova fase de transição, onde as certezas são abaladas e as dúvidas mais que muitas. Algo de semelhante deve ter ocorrido em outros momentos da História, por exemplo, quando o pergaminho foi substituído pelo papel (Vallejo, 2019). E o livro continuou, ainda com maior vigor. Agora, «o mundo digital não é o inimigo maior dos livros, mas o modo de vida», como defende Zivkovic (2016).

 2. Escritores sem caneta

Mas as consequências do desenvolvimento informático não se colocam apenas no patamar do consumo. A própria literatura, na área da produção, enfrenta fortes desafios decorrentes da escrita cibernética. Num tempo de «aceleração» (Hartmut Rosa, 2005), quando se potencializa a “imaterialização de conteúdos”, se expande a interactividade, se alargam as redes a limites  inimagináveis, e quando a regra é “falta de tempo”, novos horizontes se rasgam à gente da escrita (que a tem como profissão ou como hobby). Uma nova geração de escritores irá irromper em definitivo, a que já não usa a “caneta” pois funciona permanentemente no teclado (o que se vai tornando vulgar mesmo para os escritores ‘clássicos’) e desconhece o ‘papel’ uma vez que a escrita entra de imediato nos circuitos electrónicos e fica disponível on-line. Em regra, os autores electrónicos criam o seu site pessoal e nele disponibilizam as suas obras, criam mailing lists, newsletters, fóruns de discussão o que lhes permite um contacto constante com os seus leitores. Este tipo de escritor dispensa assim as tradicionais estruturas intermédias: ele não só anula os círculos editoriais de impressão, como se livra de editoras e distribuidoras, com a vantagem de encurtar, de forma vertiginosa, os circuitos de divulgação, alargando imensamente o acesso à sua obra. Deste modo, temos reunidas numa só pessoa as tarefas e funções que se encontravam pulverizadas numa teia empresarial a jusante do acto da escrita. Em regra, essa cadeia de produção e prestação de serviços escapava ao controlo do escritor, ficando excessivamente dependente dela. E no fim, era ele o que menos beneficiava (financeiramente) com a venda dos seus próprios livros. A expansão vertiginosa da internet, do print-on-demand, e do e-business abrem enormes perspectivas neste campo, em especial, no que respeita à democratização editorial (dando outra visibilidade aos “escritores de segunda linha”). Nesta área, ainda em profundas e rápidas mutações, muito está por definir, designadamente os direitos autorais (copyright). Será que as contrapartidas para o escritor (mormente as económicas) vão consolidar esta dinâmica? Ou estamos apenas perante formas mais simplificadas e alargadas de acesso e/ou divulgação à obra literária?

A comunidade académica, mais do que a literária, tem utilizado intensamente a internet e disponibilizado muitos dos seus produtos científicos (artigos, relatórios, monografias) no suporte virtual. Muitos livros e revistas científicos, em papel, têm vindo a ser substituído, progressivamente, pelo ciberlivro (o uso generalizado do inglês, como língua franca das diferentes comunidades científicas, tem facilitado este processo de expansão).

3. Antropólogos nas tribos electrónicas

O campo virtual tem vindo igualmente a interessar os antropólogos. Esse movimento faz-se em dois sentidos: (i) no conhecimento das novas «tribos electrónicas» (Ramos, 1999), com os cibernautas, numa partilha de intensa comunicação, “habitando” uma “sociedade virtual” onde floresce uma cultura específica, a cultura cibernética, também ela com os seus rituais, jargões, valores, códigos e marginalidades (hackers); (ii) no recurso sistemático à internet para a condução da pesquisa etnográfica.

Ambas as situações colocam problemas metodológicos novos, nomeadamente no que respeita ao trabalho de campo e à observação participante, e até quanto ao próprio objecto da disciplina. Neste caso, poderíamos configurar semelhanças e diferenças com o histórico percurso desta nossa ciência social. Se estes grupos – os internautas – podem incorporar as categorias do “exótico” e do “minoritário” (todavia, com tendência para se esbater à medida que se vai massificando o acesso à net), já se distanciariam quanto ao carácter “primitivo”; aqui, bem pelo contrário, está-se perante elites (knowledge workers), numa área de ponta e de vanguarda (high tech) nesta modernidade centrada num bem que elas dominam – a informação e o conhecimento (sofisticado e tecnológico). Sabendo que as clivagens e desigualdades passam, nas nossas sociedades pós-industriais, por estar on-line ou off-line (German, 2000), estes seriam grupos bem posicionados nesse contexto de acentuada globalização. Um outro problema, que se cola ao seu estudo, prende-se com o facto de estarmos perante grupos altamente dispersos, ao nível do planeta, sem um território nem fronteiras e em permanente mobilidade demográfica. Portanto, na ausência plena de um “lugar antropológico”, entendido como espaço delimitado, relacional, identitário e histórico que, como sabemos, é um dos elementos centrais na caracterização de qualquer grupo social. Por outro lado, os cibernautas, enquanto ‘grupo’, revelam uma elevada transitoriedade no tempo: fazem-se e desfazem-se a todo o momento. Este seria um exemplo extremo de desterritorialização, um dos fenómenos caracterizadores da sociedade globalizada. Por tudo isto, a entrada da antropologia nestes domínios do “virtual”, traz novos argumentos para a reconfiguração conceptual de base com que temos operado até agora. Ela ilustra, de forma paradigmática, a questão das «novas escalas na abordagem antropológica» de que falava Silvano (1998). Sendo assim, importa reelaborar conceitos como cultura, campo, território, etc. E rever os procedimentos associados à interacção entre investigador e sujeito (que aqui se faz num quadro de uma certa invisibilidade, onde o face-to-face é, quanto muito, mediado por uma câmara e um monitor, e portanto a entrada do investigador no ‘grupo’ e a sua aceitação, são encarados numa outra dimensão).

Neste domínio, é particularmente interessante a experiência de pesquisa realizada pela antropóloga brasileira Rita Amaral (2001), conducente à sua tese de doutoramento sobre a “Festa à Brasileira” em cinco regiões do país. Ela utilizou a internet não só como fonte de dados complementares à pesquisa tradicional, como principalmente, pelo uso que deu às conversas e entrevistas efectuadas em chats. O antropólogo que faz do contacto directo e personalizado com os sujeitos de estudo, num território concreto (onde permanece de forma continuada durante um certo período de tempo), uma das suas especificidades metodológicas, já a sua “inserção” num campo virtual, de intermitência temporal, levanta enormes desafios à forma tradicional de conduzir a pesquisa.

O futuro é mesmo amanhã.

Nota

Quando o livro de Stephen King – Riding the Bullet, em 2000, ficou disponível apenas na internet, a procura foi tal que os servidores de duas grandes livrarias (Amazon e Barnes & Nobles) ficaram bloqueados.

Referências

AMARAL, Rita (2001) “Antropologia e Internet. Pesquisa e campo no meio virtual”. Trabalhos de Antropologia e Etnologia, vol. 41, nº 3-4, pp. 31-44.

BARRETO, António (2002) Tempo de Incerteza. Lisboa: Relógio d’Água/ Antropos.

CARNEIRO, Roberto (coord.) (2001) “O Futuro da Educação em Portugal. Tendências e Oportunidades – Um Estudo de Reflexão e prospectiva”.

FERREIRA, Vergílio (1983) Para Sempre. Venda Nova: Bertrand Editora/ Obras de V. F., 10ª edição, 1996.

GERMAN, Christiano (2000) “On-line off-line: internet e democracia na sociedade de informação”. Sociologia – Problemas e Práticas, nº 323, pp. 101-116.

RAMOS, José Luís (1999) “Computadores, Internet e Aprendizagens. Novas Sociabilidades e Tribos Electrónicas”. Economia e Sociologia, Universidade de Évora, nº 68, pp. 97-119.

ROSA, Hartmut (2005) Aceleração: a transformação das estruturas temporais na Modernidade. Editora Unesp, 2019.

SARTORI, Giovanni (1997) Homo videns: Televisão e pós-pensamento. Lisboa: Terramar, 2000.

SILVANO, Filomena (1998) “As novas escalas na abordagem antropológica”. Revista da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, nº 11, pp. 59-71.

ZIVKOVIC, Zoran (2016) entrevista ao Ípsilon, 24/06/16, pp. 22-23.


1 comentário:

Unknown disse...

Maravilhoso percurso entre o livro e o smartphone ou iphone tanto para o leitor como para o escritor. Cito "Este tipo de escritor dispensa assim as tradicionais estruturas intermédias: ele não só anula os círculos editoriais de impressão, como se livra de editoras e distribuidoras, com a vantagem de encurtar, de forma vertiginosa, os circuitos de divulgação, alargando imensamente o acesso à sua obra."
Como sempre o rigor, a criatividade, a observação do mundo atual.
José Gil