(Alves Redol, O Cavalo Espantado, 1960:291)
As condições em que o escritor trabalha são muito peculiares, como o evidenciava Maria Velho da Costa na intervenção de tomada de posse como presidente da direcção da APE em 1976: «o escritor, trabalhador à distância, trabalhador no silêncio, decifrador e criador de sinais por espécie de alquimia de cujos processos nem sempre é totalmente consciente»1. Esta actividade intelectual, incentivadora de individualismo e propiciadora da concorrência2 coloca dúvidas quanto ao tipo de elos de união e sentido de grupo entre gente tão díspar e dispersa. Miguel Torga era peremptório: «Os artistas não constituem uma classe» (1976:19).
No entanto, tal não invalidou a criação da SPE (Sociedade Portuguesa de Escritores), em 1956, e a sua “reabilitação” institucional, em 1973, com a designação de APE (Associação Portuguesa de Escritores), onde se vislumbrava uma certa dimensão “para-sindical” no reivindicar de um «estatuto do escritor»3. A ditadura do Estado Novo, acabou por fornecer o “cimento” aglutinador dos escritores – o antifascismo. Nessa “frente intelectual oposicionista” encontramos «a grande maioria dos escritores e poetas significativos portugueses», como o reconhecia o próprio Torga (1976:72). Nesse, como em outros períodos particularmente tensos e conturbados da vida política, o escritor «é sempre uma voz que fala por todos» (Torga, 1976:65), uma espécie de “consciência nacional”, de alguém que se pauta por uma «ética da responsabilidade».
Os escritores seriam como que «instituições de liberdade», no dizer de Bourdieu (1992:294). Daí a sua semelhança a um «grupo manifesto». Mas essa força é intrínseca à própria literatura. No dizer de Serafim Ferreira «o “espaço literário” é aberto, total e absolutamente povoado: as visões, sonhos e fantasmas de cada escritor são afinal de todos nós»4. E é nesses processos de identificação que se encontram muitas das raízes mobilizadoras, de empenhamento e procura de um sentido para a vida. Claro que, o atribulado e conflituoso processo de transição democrático (1974-75), também neste como na maioria dos campos, abriu fissuras, aprofundou clivagens, levou a rupturas. Têm demorado a sarar, mesmo na fase de “normalização” em que temos vivido nos últimos anos e que coincide com a «regressão dos intelectuais».
Um outro problema tem a ver com a própria existência ou não de «campo literário»5 em Portugal, tal como Bourdieu (1992) o definiu em As Regras da Arte: Génese e Estrutura do Campo Literário (e cuja operacionalização se poderia verificar na criação de associações de classe, de revistas, prémios literários, crítica especializada). Enquanto António Sousa Ribeiro (1995) o toma como um dado objectivo e a partir dele analisa o papel dominante dos escritores entre os intelectuais num período «singular» da nossa história – do 25 de Abril de 1974 ao 25 de Novembro de 1975 – já Avellar George (2000) coloca reservas à existência desse campo, em função da não autonomia dos escritores relativamente ao poder político, quer antes do encerramento da SPE6, em 1965 (e aí nega o conceito contraditório de «campo literário do poder» de Ramos do Ó), quer nos primeiros tempos do pós 25 de Abril. Num caso, era a política de António Ferro e a tentativa de “certificação”, por parte do Governo, da qualidade literária dos escritores (e dos artistas de um modo geral) pela atribuição dos prémios literários pelo SPN/SNI. No outro, era a vontade explícita, agora por iniciativa dos escritores, de uma intervenção na “política cultural”, no desejo de agirem segundo formas «socialmente úteis»; era o “clima” da altura em que ninguém devia ficar de fora do processo de reconstrução do país, designadamente nas chamadas «campanhas de dinamização cultural», na tão propalada aproximação «ao povo», considerado numa dupla vertente, como fonte inspiradora e destinatário preferencial da obra literária. Quer num quer noutro caso, era o fenómeno de atracção ao poder que punha em causa, para grupos importantes de escritores, a autonomia do campo literário, onde a liberdade de criação, a independência e a autonomia plena e desinteressada constituiriam o seu «capital simbólico» por excelência.
Os escritores portugueses sentem-se, ontem como hoje, num dilema que os acompanha e que se prende com a procura dos eixos em torno dos quais se dá a construção da sua identidade. Se nos tempos de altas percentagens de analfabetismo e de baixa escolarização, o acesso aos bens literários estava fortemente condicionado por esse handicap, não é menos verdade que hoje, num contexto educativo e cultural bem diferente, outros obstáculos se ergueram à fruição desses produtos de criação literária. A sociedade mediatizada está mais culturalizada o que não quer dizer necessariamente mais culta. E, mais do que isso, que tenha crescido a apetência pela leitura. Ou pelo menos por aquela que se enquadraria nos padrões de qualidade de que os escritores se reclamam. Os processos de democratização da cultura têm levado à trivialização da mesma. Os produtos tornam-se mais “rasteiros” e triviais para poderem ser captados pelo grande público. Promove-se a cultura da banalidade, do efémero e do fugaz. Ora o que floresce, quais cogumelos em dias de humidade, são os subprodutos literários, consubstanciados na denominada literatura (ultra) light (há quem a designe também como literatura “cor-de-rosa”, “comestível” ou de “consumo”), uma «escrita de telenovela» (no dizer de Eduarda Dionísio, 2002) que não exige esforço ao leitor. Daí uma certa impotência face aos mecanismos do mercado livreiro, ao “gosto” do grande público (que compra o que é publicitado na TV). E, ainda, a dificuldade de se constituírem como referentes desse património comum que é a língua, da qual são, simultaneamente, os seus preservadores (uma espécie de “guardiões do templo”) e transformadores, através da invenção e recriação verbal. Não é de estranhar, pois, alguma frustração perante a incapacidade de contrariar um processo, que se afigura imparável, de importação de vocábulos estrangeiros (antes o francês, hoje anglo-saxónicos) sempre que surgem novas realidades sociais ou tecnológicas. O escritor António Alçada Baptista constatava que a nossa língua tem vindo a ser atacada por «frequentes necroses no seu vocabulário»7. São estes dois fenómenos – a explosão da literatura light e o abastardamento da língua – que acentuam também um certo sentimento de “orfandade”, que já vem de trás: «Os escritores (…) acham-se esquecidos. Como o foram ontem, como o foram quase sempre», não só pelo poder, a que se referia Fernando Namora8, mas também pelos media e por muitos leitores. Talvez por isso, muitos escritores se tenham virado para as instituições de ensino, colaborando em iniciativas diversas («Olimpíadas da Leitura», sessões nas escolas…) como um investimento que se deve promover a montante, numa fase etária em que os «hábitos operativos» se estão a formar.
Notas
1. Maria Velho da Costa, Seara Nova, nº 1567, Maio de 1976, p. 39. 2. Concorrência negada por José Saramago quando afirma: «nenhuma obra que se publica tira o lugar a outras obras e a outros autores, o espaço da literatura é infinito» (entrevista ao DNA, 12/12/1999, p. 21). Pois é, dito por quem vende milhões…
3. Hoje, a APE está mais focada nos prémios literários e na evocação de escritores do cânone.
4. Serafim Ferreira, “A Literatura (sempre) em questão”, a Página, nº 104, Julho, 2001, p. 28.
5. Bourdieu define «campo» como o universo relativamente autónomo de relações específicas definido por uma lógica e um sistema de referências comum. Esse sistema determina um “espaço dos possíveis”, dentro do qual os agentes lutam pela afirmação e dominação.
6. Sobre o processo de extinção da SPE, cf. Orlando Costa (1996:941-944), Avellar George (2000:470-488), Notícias Magazine, nº 522, 26/05/2002, pp. 64-67.
7. António Alçada Baptista “Lembrança de Alexandre O’Neill”, Notícias Magazine, nº 495, 18/11/2001, p. 146.
8. Fernando Namora “Um coração parado”, O Jornal, 29/08/1975, nº 18, p. 11.
Referências
BOURDIEU, Pierre (1992) As Regras da Arte: Génese e Estrutura do Campo Literário. Lisboa: Editorial Presença, 1996.
GEORGE, João Pedro de Avellar (2000) “Campo Literário Português? O caso da extinção da Sociedade Portuguesa de Escritores em 1965”. Revista de História das Ideias, vol. 21, pp. 461-499.
TORGA, Miguel (1976) Fogo Preso. Coimbra, 2ª edição, 1989.