Luís Souta
(Antonio Tabucchi, A cabeça perdida de Damasceno Monteiro,1997:142)
Na literatura podem-se encontrar múltiplas funções, quase tantas quantos os interesses daqueles que a ela recorrem. Como arte que é1, em primeiro lugar, o «horizonte da beleza» (Garcia, 2000), o lazer e o entretenimento, o deleite de quem a procura como fonte de evasão em mundos imaginários e quer despreocupadamente “passar o tempo”. E também, como o relembra Maria João Seixas2, «uma das mais fecundas fontes de consolação para as nossas humanas inquietações». Mas a literatura é também um espaço onde cabem muitos outros saberes (práticos, simbólicos) e, portanto, fonte de conhecimento e (in)formação. Isso o reconhece o antropólogo francês Jean Copans: «O romance realista do século XIX, não obstante as suas intenções psicológicas e estéticas, desempenha objectivamente um papel de conhecimento» (1971:50).
A utilidade educativa da literatura vai muito além da sua estrita «função pedagógica», a que lhe está reservada no currículo. Há quem reclame que «é urgente escutar a voz das obras literárias» (Reis, 2000:9) o que, no seu entender, seria nelas encontrar «o suplemento de alma e de sentido, que falta ao homem de hoje». Não quero discutir o alcance de tão elevado propósito. Num estudo anterior (Souta, 2002) procurei colocar-me num terreno mais pragmático, o do possível: propus-me então encontrar «a voz» dos escritores para um melhor conhecimento da diversidade da instituição escola e do processo educativo; entendido este como «o comportamento que mais marca o quotidiano das nossas vidas, e o mais quotidiano dos processos que orienta o nosso agir» (Iturra, 1994:35).
«A Literatura como a Antropologia das Antropologias», que Fernando Cristóvão (1996) preconizava, na linha do que Italo Calvino designa como o «dispositivo antropológico que a literatura perpetua» (1990:42), é uma enunciação que parte do entendimento, clássico e totalizante, da antropologia como «ciência do homem». Um projecto a que poucos ainda têm dado substantividade. A tal terceira etapa, a de síntese, de que falava Claude Lévi-Strauss em Antropologia Estrutural, a da ciência de convergência e unidade (depois de passar pelas etapas da etnografia, a do contacto directo com a realidade, com observação, descrição, e recolha de dados; e pela etnologia, ciência da diversidade e do particularismo).
O processo de escrita literária, implica um trabalho intelectual reflexivo, que vai muito para lá do “dom”, do espontaneismo, ou da componente artesanal que pode estar associada àquilo a que se costuma designar como “oficina da escrita”. Irene Lisboa, na seu livro póstumo Solidão II, o reconhece e explicita: «Tudo em literatura é composto, organizado, arquitectado, conformado, mesmo que como a água pareça correr» (1974:144). O escritor João Aguiar vai mais além e introduz um outro elemento no processo de produção literária: «na escrita de um livro existe uma componente obviamente racional, portanto lógica, e depois uma outra componente que é justamente o oposto, e que se não é irracional é inconsciente»3.
A literatura tem três características singulares: «de tudo faz motivo e ocasião» (no dizer de Saramago4), é «universal» (de acordo com Calvino) e «eterna» (segundo Aquilino Ribeiro5). E quase estamos tentados, a acrescentar mais uma, tendo em conta as palavras da crítica literária Suzana Ramos, a propósito do futuro da literatura, que Italo Calvino questionava nas suas Seis Propostas para o Próximo Milénio (Lições Americanas): «há coisas que só a literatura nos pode dar, porque dispõe de meios específicos para o fazer, perante a possibilidade de dizer tudo, de todos os modos possíveis, tendo no entanto que dizer alguma coisa de um modo particular»6. Essa capacidade, quase infinita, da literatura possibilitar a expressão livre, em especial dos sentimentos, sem os óbices, por exemplo, de uma certa formatação própria dos trabalhos científicos, pode ser ilustrada com a decisão do Decano, personagem do romance de Gonzalo T. Ballester, quando anuncia a mudança no seu rumo académico: «Renuncio à história pela Literatura (…) e renuncio porque encontrei um caminho melhor para expressar o que tenho dentro de mim. Vou-me dedicar ao romance» (1993:33).
Há escritores, parece que mais os poetas que os prosadores, como Teixeira de Pascoaes ou Natália Correia, que chegam a defender a “tese” que a poesia é que permite chegar à «alma das coisas». A essência da dita seria, deste modo, de natureza poética e não científica. A ciência, associada à positividade e materialidade das fenómenos (naturais ou sociais), não o conseguiria, ficando-se, muitas das vezes, pelo exterior, pelo invólucro, pela aparência, em suma, pela visibilidade. Pascoaes, na sua Arte de Ser Português, e Natália, na tentativa de operacionalização do conceito de Mátria, procuram na articulação da história e da literatura dar contornos à «alma portuguesa». Projecto ambicioso onde se podem encontrar caminhos convergentes com o de vários antropólogos (Jorge Dias, José Gabriel Pereira Bastos, entre outros), ainda que com outras metodologias, mas com desideratos similares. Uma outra ideia, compartilhada no seio dos poetas, esses «fidedignos sismógrafos do humano»7, tem a ver com a capacidade de estar para lá das amarras do tempo conjuntural presente, das peias que nos tolhem o pensamento de projectar o futuro, e inibem de encontrar saídas para os constrangimentos em que estamos mergulhados. A poesia devolve-nos essa possibilidade do sonho, com outros projectos, outras maneiras de conceber as relações humanas e sociais; isso nos transmite Maria Teresa Horta, numa entrevista ao DN8, quando da publicação do seu livro Só de Amor: «os poetas andam à frente da sua época, são uma espécie de alquimistas; aqueles que conseguem ir ao fundo da mina buscar claridade.» Na esteira de Régio, quando décadas antes sustentara: «como a vida se encarregasse de fazer do poeta um profeta (…) Tornava presente um inegável futuro» (1971:182).
«Desde que a ciência desconfia das explicações gerais e das soluções que não sejam sectoriais e especializadas, o grande desafio para a literatura é o de saber tecer conjuntamente os diferentes saberes e os diferentes códigos numa visão plural e multifacetada do mundo» (Calvino, 1990:134). Ora é esse olhar plural (porque de vários escritores, de diferentes épocas, de diferentes géneros e movimentos) que nos possibilitou uma visão multifacetada do mundo escolar, quando recorremos às fontes literárias para melhor o entender na sua extensão, complexidade e heterogeneidade (Souta, 2002).
Esta convergência de campos (tradicionalmente) apartados, é bem ilustrada no livro de Ballester, quando o Decano da Universidade de Compostela, num diálogo com D. Enrique, seu discípulo9, sintetiza: «São dois modos de expressão diferentes, o científico e o poético, mas levam ambos ao mesmo fim» (1992:35).
Notas
Referências
BALLESTER, Gonzalo Torrente (1992) A Morte do Decano. Lisboa: Caminho/ Uma Terra Sem Amos, nº 65, 2ª edição, 1993.
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