domingo, 8 de maio de 2022

Graffitar a Literatura (II)


 «O desenho é a única maneira de fixar a atenção.» (livro do século XVIII) 

«Todo o artista faz realismo social.» (Almada Negreiros, 1953) 


 
Paredão, Monte Estoril, Fevereiro 2012

Eis a explicação para a (tradicional ?) quietude nacional. O país continua vazio de utopias. Falta-lhe um (novo) grande sobressalto cívico. Ideias mobilizadoras (que nos orientem o futuro) precisam-se!

Recordei Almada Negreiros por oposição à mensagem deste graffiti. Vazio e quieto, dois estados que em nada se aplicam a um homem de acção como ele foi, cheio de ideias e projectos, a transbordar energia e criatividade. Em Ensaios I (5º volume das Obras Completas de José de Almada Negreiros, Editorial Estampa, 1971), no primeiro texto, intitulado “O Desenho”, conferência-performance proferida em 1927 aquando da sua estadia em Madrid, defende a ideia desta arte enquanto síntese, uma espécie de via rápida para expressar o entendimento:

«O desenho não é, como pode julgar-se, simplesmente um conjunto de linhas ou traços, um gráfico representando qualquer coisa existente.

O desenho é o nosso entendimento a fixar o instante.

A célebre frase de Napoleão, dizendo: “vale mais um pequeno croquis do que um longo relatório” contém todo o sentido do desenho.

Ao contrário do trabalho, da construção que exige tempo, composição e volume, o nosso entendimento é rápido, claro e simples. A perfeição do entendimento é momentânea e, por consequência, há que fixá-la.

Por isso o desenho é o melhor amigo do entendimento.

É corrente, quando alguém não percebe o que se lhe diz, acrescentar: precisas que te faça um desenho?» (p. 13)

 

Alcabideche, Avenida de Alcoitão

Este mural (um triptíco), da autoria do jovem oats.ink (numa iniciativa da Junta de Freguesia de Alcabideche) pretende celebrar dois grandes artistas lusófonos, nascidos em África, um em São Tomé e Príncipe e outro em Moçambique – Almada e Malangatana. Almada Negreiros, figura incontornável do modernismo português, foi um «vanguardista por excelência», um homem dos sete instrumentos:

«“Almada foi poeta, romancista, dramaturgo, cronista, pensador e polemista; foi também desenhador, caricaturista, pintor, retratista, vitralista, muralista, azulejista, figurinista, tapeceiro, gravador e geómetra”. E, deve acrescentar-se, bailarino e conferencista. No todo, a arte do espectáculo, a unidade do actor.»

(Fernando Cabral Martins “Almada Negreiros” in O Cânone, 2020:67) 

As mais de 400 obras da Exposição “José de Almada Negreiros: Uma maneira de ser moderno”, que esteve no Museu Calouste Gulbenkian entre Fevereiro de 2017 e Junho de 2018, atestam bem esse «artista-omnívoro (…) o homem que quis comer todas as artes», como é definido no Ípsilon (03/02/2017, pp. 5-9). Não é coisa pouca, para um autodidacta que não fez as Belas-Artes nem frequentou qualquer escola de desenho.

Post scriptum: O serviço camarário (in)competente optou, entretanto, pela limpeza da obra não assinada no Paredão de Cascais. Apagou-o! E aquele espaço ficou branco durante anos. Agora, está por lá um mural institucional sobre o voluntariado; colorido… mas pindérico.

Luís Souta (texto e fotos)

1 comentário:

Lufa-lufa disse...

É uma pena que quem toma decisões políticas não tenha um sentido estético apurado, não se deixe inspirar por frases ou por pensamentos metafísicos.
Aparentemente a liberdade de pensamento e de expressão continua a ser censurada. Valham-nos aqueles que continuam a repetir a sua arte mesmo sendo a mesma apagada.