domingo, 24 de julho de 2022

Graffitar a Literatura (XXIX)

"O Beijo"

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Foto: Eva Costa

 Lisboa, Rua do Conde de Redondo


«...um romancezinho, desses que nascem e morrem entre um beijo e um bocejo...»

(Eça de Queiroz)


«Contei-lhe que há muito a desejava e recordei-lhe as minhas breves tentativas de aproximação. Ela não teve dificuldade em compreender que se visitava Sonis tantas vezes era unicamente por ela. Não demorei a arrancar-lhe uma meia promessa de que um dia se encontraria comigo em Paris e que lhe poderia escrever com uma letra feminina, dado que nem o Papá nem a Mamã lhe vigiavam a correspondência se os sobrescritos parecessem enviados por uma mulher que podia ser uma cliente. Pedi-lhe o beijo prometido e expliquei-lhe que não desejava a estúpida e fraterna pressão dos lábios.

– Quero um verdadeiro beijo à francesa – disse-lhe.

Riu. Percebi que me compreendera. (pp. 18-9)

(…)

Na carruagem do comboio voltei apertar a minha Lilian nos braços e verifiquei encantado que ela me beijava naturalmente, inserindo-me a língua eternamente na boca. Os lábios dela davam a sensação se colarem aos meus e tenho a certeza de que o meu beijo suave e o toque da minha língua sobre a garganta, orelhas e olhos lhe devem ter dado o prazer que uma rapariguinha sente.

“Os teus beijos endoidecem-me!” ou “A tua boca enlouquece-me!” Eram duas das suas frases favoritas, quando se afastava do meu abraço tremendo de prazer para voltar a beijar-me uma e outra vez logo a seguir.

Era indubitável que não sentia repugnância física por mim porque acontece frequentemente uma mulher pensar que deseja um homem e quando este finalmente a abraça, haver qualquer coisa, um cheiro, a pele, a forma de abraçar, a respiração, a mais pequena insignificância capaz de destruir bruscamente todas as ilusões que albergava. Lilian gostava visivelmente que a abraçasse e os meus lábios agradavam-lhe tanto como os dela a mim.» (pp. 23-4)

Estes dois extractos foram retirados do livro Memórias Eróticas de um Burguês (Suburban Souls, na 1ª edição inglesa, de 1901), de autor anónimo (Lisboa: Edição Livros do Brasil, s/d, 458 p.), escrito entre Julho de 1899 e Janeiro de 1900. A obra assenta numa estrutura predominantemente epistolar (a correspondência define os limites temporais da história: entre 20 de Outubro de 1897 e 31 de Dezembro de 1899). Tempos de fim de século em que se começava a vulgarizar a máquina de escrever:

«Na minha encomenda (…) enviei um curioso recorte do Figaro e uma passagem do último romance de Zola que acabara de sair copiados à máquina, pois para mudar o curso aos meus tristes pensamentos comprara uma máquina e andava a praticar.» (p. 419)

«Vejo que está a recorrer à máquina de escrever. Tenho a certeza de que fará como eu e de que, depois de adquirir prática e embora por vezes bata mal uma tecla, achará tão fácil que não mais o conseguirão convencer a utilizar a caneta.» (p. 421)

«Só comecei a escrever à máquina no dia 26 depois de duas lições com uma jovem de dedos elegantes. Tinha um trabalho em que necessitava de o fazer. Resolvi tentar e aluguei uma “Nompareil” por um mês. Julguei que poupava algum dinheiro, mas estou a gastar uma fortuna em borrachas.» (p. 422) 

O narrador diz que «esta narrativa é verdadeira» (p. 436) e dedica «este romance de sórdida sensualidade» à sua heroína, «uma das mulheres mais depravadas do mundo». Nele desenvolve as suas teorias «de amor e afecto verdadeiro» (p. 434), analisando, principalmente, a complexa teia de relações entre Jacky e Lilian mas também o clima (algo incestuoso) da família desta (Eric Arvel, o Papá-padrasto, Adèle, a Mamã, e Raoul, o irmão), através de uma «escrita psicológica em que o autor tenta penetrar no mais íntimo das almas dos seus personagens sensuais e revelar os motivos, desejos, ciúmes, etc., que os impelem» (p. 431).

O quadro quotidiano de costumes é profícuo, ainda que pouco se diga sobre o contexto político-ideológico da época, apenas algumas referências ao processo Dreyfus e respectivo posicionamento de alguns dos protagonistas do romance. Mas, em contrapartida, são múltiplas as alusões à imprensa (com alguns excertos nos “Apêndices”, pp. 437-457) e ao campo literário: Émile Zola, Conan Doyle, Memórias de Casanova e esse mimo intitulado A Etnologia do Sexto Sentido, do qual são transcritas algumas passagens (sobre o hímen, a vulva e o buço) cuja ‘cientificidade’, hoje, nos fazem sorrir.

Aquilo que sexualmente chocou a moral vitoriana da altura e que acarretou o longo “esquecimento” da obra e o total olvido do seu autor, nos dias de hoje (quase) tudo nos parece banal (podendo-se ver cenas semelhantes num qualquer filme ou série televisiva a circular na nossa aldeia global). A grande diferença está no lugar da mulher na sociedade: como ela se vê e os outros a percepcionam. E não são apenas os olhos do “macho-burguês” Jacky (que não reconhece capacidades intelectuais igualitárias na sua amante: «As mulheres são astutas e espertas – não inteligentes, porque a malícia e astúcia não implicam inteligência» (p. 414), Lilian, por exemplo, remata algumas das cartas, dirigida ao seu amado, neste teor: «A sua inteiramente submissa escrava (p. 68), A sua escrava adora-o e anseia por o ver (p. 101). Por isso, creio que este man oriented book não deve ser muito atractivo para o hodierno mundo feminino. 

Este mural de MRDHEO (Porto, 1985) preenche toda a fachada lateral da residência de estudantes universitários na Rua do Conde de Redondo (no cruzamento com a Rua Luciano Cordeiro), em Lisboa.

«Nome de rua quieta

onde à noite ninguém passa.

Onde o ciúme é uma seta,

onde o amor é uma taça.

Nome de rua secreta

onde à noite ninguém passa.

Onde a sombra de um poeta

de repente nos abraça.» (p. 214)

 Fragmento de “Nome de Rua” (in Obra Poética, vol. I) de David Mourão-Ferreira (1927-1996), o nosso grande poeta do amor e da cidade de Lisboa. Um gentleman de cachimbo (num tempo em que tal era possível de enxergar nos ecrãs da televisão) muito empenhado na divulgação literária.

Será que o graffiter estaria a pensar noutro fumador inveterado – Humphrey Bogart –, aqui com Ingrid Bergman, no icónico filme Casablanca (1945)? Suposições de quem vê… já que a arte de rua prescinde título, legenda ou sinopse. 


Luís Souta

segunda-feira, 18 de julho de 2022

Daqui até Já - recensão

por Manuel João Croca

Euedito, 102 págs.

Terminei de ler a obra DAQUI ATÉ JÁ do Amigo e nosso conterrâneo Luís Carlos dos Santos.
Conheço o Autor há já bastantes anos (quase desde sempre), temos até partilhado várias coisas. Sobretudo ideias que sempre surgem nas conversas. Isto para dizer que o “universo” do Autor não me é de todo desconhecido mas, ainda assim, parti para a leitura do livro como quem vai de viagem. Não com o desassossego e a agitação que as viagens por vezes comportam – embora pessoalmente, e com o passar dos anos, tenha aprendido a domesticar esses estados de alma que se tornam cansativos por vezes - , antes pelo lado da sede de descoberta que as viagens quase sempre acalentam.
Embalado pelo título que considero muito feliz (e não fora a “abundância” de letras quase se poderia considerar um mantra) e pela capa atraente (de uma paisagem que conheço bem exceptuando a “chuva de luz” que em boa hora o Autor captou) larguei-me à descoberta.
E os caminhos foram muitos e as latitudes longínquas (mesmo que “cá dentro”), fartei-me de andar embora sempre com gosto e prazer.
De facto, partindo de Alhos Vedros – esta nossa “terra velha” que afinal parece que está mesmo ligada a algumas das mais notáveis realizações que a alma lusa engendrou – acabamos por chegar a Ceuta e até ao Oriente, fazendo escala em muitos lugares que acabaram por corporizar o “império” português do antigamente.
Acabamos também por perceber (ou talvez pressentir) que, afinal, esta propensão para a criação artística em várias áreas e domínios que caracteriza as gentes da nossa terra vem lá de muitro detrás. Se calhar, se calhar…
Se calhar Luís Vaz de Camões e a sua/nossa epopeia a cantar-lhe no peito, se calhar Gil Vicente e a arte multifacetada de variar as formas de contar e dizer, Álvaro Velho concerteza.
Está bom de ver que é um livro de história que nos conta histórias mesmo quando se aventura pelo território das religiões. Também as religiões têm histórias na sua história. E também têm filosofia, claro que sim. Do Ocidente ao Oriente.
Aproximando-nos do fim(?) somos surpreendidos por uma curiosa nota biográfica. Os caminhos de dentro, portanto. Mas, ainda assim e também aí, fartamo-nos de viajar.
Como dizia o amigo Vítor Ribeiro aquando da apresentação da obra , "é sem dúvida um livro de leitura agradável que nos transmite conhecimento, crescimento e boas vibrações."
Inteiramente de acordo. E a prova é que, apesar da mundividência dos caminhos percorridos, não cheguei cansado.
Cabe agora a cada um(a) aceitar o desafio de entrar por esses caminhos e depois contarem-nos como foi. Vão que vale bem a pena.

MJC
06 Julho, 2022

domingo, 17 de julho de 2022

O Valor da Liberdade

 por Luís Santos

Eu não quero ter poder, mas apenas liberdade, de falar aos do poder do que entenda ser verdade. (Agostinho da Silva)

e estávamos nós a pensar que,

não ter partido político não é o mesmo que dizer que não se exerce ação política, nem que não se saiba do materialismo histórico, ou da ética protestante e do espírito capitalista;
não ter pertença a determinada religião, não significa a inexistência de espiritualidade, ecumenismo, sem que se seja proselitista, nem que não se saiba da importància do sofrimento, ou daquele "nada que é tudo";
poder falar como os ingleses, não quer dizer que se seja inglês, não gostar destes russos ainda que se possa admirar a intercontinental Rússia, ou poder ir à Índia sem abandonar Portugal e a Língua Portuguesa, todas as línguas.
A Paz É o Caminho.




domingo, 3 de julho de 2022

Daqui até Já


49ª Feira do Livro de Alhos Vedros

Apresentação do livro "DAQUI até JÁ" de Luís Santos

por Vítor Ribeiro


 O livro é composto por três ensaios denominados, O Local, Portugal, Tudo,  tendo os dois últimos servido de base à tese de doutoramento do autor. Embora cada um dos ensaios verse temas diferentes e aparentemente díspares    entre si, estão na verdade relacionados de alguma forma, através de um fio condutor que liga os temas e subtemas de uma forma indireta ou até subliminar, traduzindo a sua preocupação com o crescimento interior, a identidade o desejo de nos compreendermos enquanto seres materiais e espirituais em evolução. Daqui até , é uma obra abrangente, substantiva, profunda e reflexiva, mística até, que se desmultiplica a várias escalas espaço-temporais com  uma incursão ao universo filosófico, íntimo e afetivo do autor. Por ser um estudo académico, poderíamos pensar à partida, que o livro estaria escrito     numa linguagem hermética, destinada a especialistas e apenas entendida por estes. Pelo contrário, o autor expressa-se através de uma escrita escorreita, acessível e simples sem ser simplista, que permite traduzir conhecimento e pensamento em   conceitos e ideias entendíveis por todos. É também, um livro generoso, de partilha, de história e estórias, com ênfase no conhecimento das origens e na preservação da nossa memória coletiva local e nacional.   Estabelece desta forma, uma relação íntima entre o passado e o presente,   uma vez que nos lembra através dos elementos construtores da nossa identidade (história e tradições) que partilhamos um passado comum.

No primeiro ensaio, Local, debruça-se sobre a história de Alhos Vedros e na forma como esta se cruzou e deixou marcas na história de Portugal. No  segundo, Portugal, foca-se na importância que os factos históricos, sociais, demográficos, étnicos e religiosos tiveram na construção da identidade nacional. No terceiro, Tudo, numa abordagem ecuménica, releva a importância das tradições filosóficas das principais religiões na procura da espiritualidade e na demanda das grandes verdades universais. É, neste sentido, um percursor e   difusor do retomar “do abraço universal no pensamento de Agostinho da Silva que subjaz à vocação messiânica e universalista de Portugal e do mito do V império que ainda perdura no arquétipo mental e cultural da nação como são os casos do culto popular do Espirito Santo e da Ilha dos Amores. A terminar, duas frases da nota autobiográfica do autor que nos remetem para o seu território afetivo, filosófico e espiritual, que justificam e explicam em grande parte os temas abordados no livro, introspeção, conceção e devir. O milagre do nascimento, o crescer enquanto corpo físico e alma, no seu caminho para a perfeição após sucessivas reencarnações.

É sem dúvida um livro de leitura agradável que nos transmite conhecimento, crescimento e boas vibrações.