(texto e foto)
LITERATURA E COMPREENSÃO DA CONDIÇÃO SOCIAL E HUMANA
«Escrevo para compreender» di-lo José Saramago1.
O mesmo poderia dizer o investigador social. E aqui encontramos um ponto
fundamental de intersecção entre estes dois grupos de intelectuais. Conhecer o
mundo (o de hoje ou o do passado), compreender a riqueza e a complexidade do
ser humano nesse devir histórico, nas suas múltiplas dimensões, nos seus
variados contextos, são finalidades comuns que, afinal, ambos abraçam. De tal
modo, que o escritor Alçada Baptista, quando lhe perguntaram o motivo por que
escrevia, respondeu:
«A escrita é um meio de investigação»2.
Longe, portanto, de se oporem, os seus produtos –
literários e científicos – devem antes interligar-se, complementar-se,
ajudando-se mutuamente nessa tentativa, sempre inacabada, de reduzir as trevas
e iluminar as sombras da vida das sociedades e dos homens. Mesmo quando não se
quer ficar apenas pela “compreensão” dos fenómenos e se procura dar outra
“utilidade” social àquilo que se produz, o debate interno dentro de cada um dos
campos acaba por assumir contornos de alguma similitude: por exemplo, na
literatura, o romance como forma de intervenção social e cultural
(neo-realistas) vs a arte pela arte
(presencistas); na ciência, os adeptos da investigação pura vs os defensores de uma investigação
aplicada. Diferentes posicionamentos, que conduzem a clivagens dentro dos
respectivos campos. Não é só a questão da autonomia do desenvolvimento das
respectivas actividades, onde a liberdade é o valor supremo a preservar em
ambas, que se coloca. É a dimensão política dessa mesma actividade que ganha relevo.
E, como sabemos, a esfera do político é factor mais de divisão que de unidade.
Eduardo Prado Coelho, entre muitos outros críticos,
escritores e pensadores, considera que
«o romance é, como todas as formas de arte, um
meio de conhecimento do mundo»3.
José Saramago (1984:298) dirá, de «aqueles eternos
insatisfeitos», os poetas, que essa sua “insatisfação” é já «um particular
conhecimento do mundo» (1971:98). Desiderato intrínseco à poesia que Sophia de
Mello Breyner Andresen via como a perseguição do real. Urbano Tavares Rodrigues
cola-se nesta linha de pensamento e alarga essa finalidade (quantas vezes
apenas implícita) à esfera do conhecimento do próprio escritor:
«a literatura, muito em especial, é uma forma,
uma tentativa de chegar ao conhecimento e do enunciador se conhecer a si
próprio, e de procurar a sua relação com o mundo e as coisas»4.
Edgar Morin corrobora e vai mais longe:
«A literatura, a poesia e a grande arte do nosso
século, o cinema5, são escolas de vida, que nos mostram a
complexidade dos seres humanos e das suas relações. São escolas onde aprendemos
a conhecer o ser humano, não tanto do ângulo impessoal das ciências objectivas,
mas como indivíduos que, enquanto sujeito, vive, sofre, ama e odeia, num
turbilhão de relações humanas» (1998:4).
Mário Ventura, escritor e também muito ligado ao cinema (fundador
do «Festroia» e seu director durante anos), reconhece, no entanto, o papel
primordial da escrita:
«Para compreender [o mundo], a literatura
continua a ser muito mais eficaz»6.
Compreensão em sentido amplo, mas partindo do particular,
do caso concreto. Pois como nota Damon Galgut, vencedor do Man Booker Prize de
2012:
«Quanto mais confiamos no acto de ser local e específico
mais universais nos tornamos.»7
A literatura opera mais na esfera do privado do que na
esfera pública. Ela “entra” na vida íntima das famílias, descreve espaços e
pormenores, revela sentimentos e desejos profundos de cada um dos seus membros,
tira das memórias pessoais os registos que, tornados escrita, ficam e perduram.
Assim, arrancando das “trevas” do anonimato, do esquecimento, do quotidiano, se
recuperam modos de estar, fazer e sentir daqueles que não constam dos arquivos
nem aparecem na História, mas têm história e que na escrita criativa do
romancista (contista, poeta ou dramaturgo) se tornam “estórias”, que lemos,
partilhamos e com as quais nos identificamos. Daí, Honoré de Balzac ter
defendido, no prólogo de A Comédia Humana,
que o romance é a história privada (secreta) das nações. É essa enorme
diversidade de locais, pessoas, acontecimentos, pensamentos e acções, enredadas
na técnica inconfundível da narrativa, que faz de um grande romance uma escrita
sobre a vida, tal como o defendia o poeta francês Claude Roy. E faz da
literatura uma fonte inesgotável de informação e conhecimento, e de uma enorme
eficácia nos processos de aprendizagem.
Ora, se nos reportarmos ao mundo escolar, esta função da
literatura ganha todo o sentido e amplia, a uma escala imensa, esse universo de
descrição (quantas vezes etnográfica) da vida anónima de cada escola. Traz-nos
a dimensão do particular, do individual, do concreto vivido e experienciado.
Não na lógica de uma História da Educação, mais atraída pelos tombos, na
expectativa de aí encontrar o (ainda) desconhecido “documento oficial”, mas de
uma “história privada” das escolas, dos alunos, dos professores, das famílias…
O acesso aos textos literários constitui, assim, uma ajuda fundamental para a
compreensão do mundo académico e para um melhor entendimento da diversidade dos
seus agentes. A literatura, na sua especificidade de contar e de nos oferecer
saberes, permite uma outra leitura do real, sem deixar, no entanto, de evocar
ideias, sensibilidades e particularismos de uma época, em concreto. Devemos ter
presente, como nos relembra a escritora Teolinda Gersão, que
«a literatura está sempre marcada por uma
determinada época e tem sempre algo de datado»8.
Fernando Dacosta chama a atenção para os condicionalismo existentes
durante um período muito peculiar da nossa história – o Estado Novo, fortemente
condicionado pela falta de liberdade de expressão, designadamente da imprensa,
e como a literatura acaba por captar o real, desempenhando a função de
“espelho” social. Os escritores funcionariam assim como uma espécie de
“pintores” impiedosos da vida portuguesa:
«Amputados pela Censura Prévia, os jornais não
exprimiam as realidades profundas das populações. Eram os romances que o
faziam, com tiragens de dezenas de milhares de exemplares, levados, uns, pelas
bibliotecas itinerantes da Gulbenkian, outros pelas estruturas clandestinas da
oposição» (2001:186).
Para daí concluir que:
«A sina dos escritores é não calarem as
bofetadas que vêem ser dadas à sua volta» (id.:348).
A literatura, apesar dos seus detractores econocratas,
continua a ter um lugar insubstituível na sobremodernidade (Augé, 1992) e a ser
um tesouro inesgotável de prazer, deleite e sabedoria. O escritor Olivier Rolin
(1947-), autor de Porto-Sudão (Prémio
Femina, 1994), considera que
«só a Literatura pode dar conta da complexidade
humana, e não a História ou a Sociologia».
Também Stephan Ellenwood, presidente do departamento de
Currículo e Ensino da Universidade de Boston, encara a literatura como uma verdadeira
“escola” para o entendimento da condição humana e desde finais dos anos 80 tem
vindo a desenvolver um «projecto de educação do carácter» tendo a literatura
como instrumento básico; daí resultou a publicação, em 1993, da antologia The Art of Loving Well, um conjunto de textos clássicos e contemporâneos (mitologia,
ficção e biografia), com intuitos interdisciplinares e que permite aos alunos a
abordagem à complexidade humana, designadamente aos valores e à ética9.
Notas
1. Entrevista de José Saramago
ao DN, 18/11/2000, p. 45.
2.
Entrevista de António Alçada Baptista ao
DNA, nº 144, 28/08/1999, p. 20.
3.
Eduardo Prado Coelho, Público, 2001.
4. Entrevista
de Urbano Tavares Rodrigues ao Ensino
Magazine, nº 10, Dezembro 1998, p. 2.
5.
Augusto Abelaira dizia que «o grande romance, hoje, é escrito pelos grandes
cineastas» (intervenção no clube de leitura “Sei Apenas Soletrar”, 28/06/2003).
6.
Entrevista de Mário Ventura ao DN,
19/08/2001, p. 38.
7. Entrevista
de Damon Galgut ao Ípsilon,
07/01/2022, p. 5.
8. Entrevista
de Teolinda Gersão ao Ensino Magazine,
nº 14, Abril 1999, p. 15.
9.
“The Art of Teaching”, Update: Boston
University School of Education Newsletter, Fall, 2002, p. 3.
Referências
AUGÉ, Marc (1992) Não-lugares: Introdução a uma Antropologia
da Sobremodernidade. Venda Nova: Bertrand Editora, 1994.
BALZAC, Honoré de (1829) A Comédia Humana. Porto
Civilização, 1978.
DACOSTA,
Fernando (2001) Nascido no Estado Novo.
Lisboa: Editorial Notícias/ Obras de F.D.
MORIN,
Edgar (1998) “Rumo a um novo contrato social?”. Fontes UNESCO, nº 106, Novembro.
SARAMAGO, José (1971) Deste Mundo e do Outro. Lisboa:
Editorial Caminho/ O Campo da Palavra, 3ª edição, 1985.
SARAMAGO, José (1984) O Ano da Morte de Ricardo Reis. Lisboa: Editorial Caminho/
O Campo da Palavra, 4ª edição.
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