terça-feira, 23 de agosto de 2022

Literatura: o pão nosso de cada dia (VI)

 Luís Souta
(texto e foto)

À memória de Ana Luísa Amaral (1956-2022).
Que saudades já tenho do programa
“O Som Que os Versos Fazem ao Abrir”,
conversas semanais da poeta-professora com Luís Caetano, na Antena 2!


LITERATURA E COMPREENSÃO DA CONDIÇÃO SOCIAL E HUMANA 

«porque viver é decifrar o mundo» 
(“Largos os dias”, António Salvado)
 

«Escrevo para compreender» di-lo José Saramago1. O mesmo poderia dizer o investigador social. E aqui encontramos um ponto fundamental de intersecção entre estes dois grupos de intelectuais. Conhecer o mundo (o de hoje ou o do passado), compreender a riqueza e a complexidade do ser humano nesse devir histórico, nas suas múltiplas dimensões, nos seus variados contextos, são finalidades comuns que, afinal, ambos abraçam. De tal modo, que o escritor Alçada Baptista, quando lhe perguntaram o motivo por que escrevia, respondeu:

«A escrita é um meio de investigação»2.

Longe, portanto, de se oporem, os seus produtos – literários e científicos – devem antes interligar-se, complementar-se, ajudando-se mutuamente nessa tentativa, sempre inacabada, de reduzir as trevas e iluminar as sombras da vida das sociedades e dos homens. Mesmo quando não se quer ficar apenas pela “compreensão” dos fenómenos e se procura dar outra “utilidade” social àquilo que se produz, o debate interno dentro de cada um dos campos acaba por assumir contornos de alguma similitude: por exemplo, na literatura, o romance como forma de intervenção social e cultural (neo-realistas) vs a arte pela arte (presencistas); na ciência, os adeptos da investigação pura vs os defensores de uma investigação aplicada. Diferentes posicionamentos, que conduzem a clivagens dentro dos respectivos campos. Não é só a questão da autonomia do desenvolvimento das respectivas actividades, onde a liberdade é o valor supremo a preservar em ambas, que se coloca. É a dimensão política dessa mesma actividade que ganha relevo. E, como sabemos, a esfera do político é factor mais de divisão que de unidade.

Eduardo Prado Coelho, entre muitos outros críticos, escritores e pensadores, considera que

«o romance é, como todas as formas de arte, um meio de conhecimento do mundo»3.

José Saramago (1984:298) dirá, de «aqueles eternos insatisfeitos», os poetas, que essa sua “insatisfação” é já «um particular conhecimento do mundo» (1971:98). Desiderato intrínseco à poesia que Sophia de Mello Breyner Andresen via como a perseguição do real. Urbano Tavares Rodrigues cola-se nesta linha de pensamento e alarga essa finalidade (quantas vezes apenas implícita) à esfera do conhecimento do próprio escritor:

«a literatura, muito em especial, é uma forma, uma tentativa de chegar ao conhecimento e do enunciador se conhecer a si próprio, e de procurar a sua relação com o mundo e as coisas»4.

Edgar Morin corrobora e vai mais longe:

«A literatura, a poesia e a grande arte do nosso século, o cinema5, são escolas de vida, que nos mostram a complexidade dos seres humanos e das suas relações. São escolas onde aprendemos a conhecer o ser humano, não tanto do ângulo impessoal das ciências objectivas, mas como indivíduos que, enquanto sujeito, vive, sofre, ama e odeia, num turbilhão de relações humanas» (1998:4).

Mário Ventura, escritor e também muito ligado ao cinema (fundador do «Festroia» e seu director durante anos), reconhece, no entanto, o papel primordial da escrita:

«Para compreender [o mundo], a literatura continua a ser muito mais eficaz»6.

Compreensão em sentido amplo, mas partindo do particular, do caso concreto. Pois como nota Damon Galgut, vencedor do Man Booker Prize de 2012:

«Quanto mais confiamos no acto de ser local e específico mais universais nos tornamos.»7

A literatura opera mais na esfera do privado do que na esfera pública. Ela “entra” na vida íntima das famílias, descreve espaços e pormenores, revela sentimentos e desejos profundos de cada um dos seus membros, tira das memórias pessoais os registos que, tornados escrita, ficam e perduram. Assim, arrancando das “trevas” do anonimato, do esquecimento, do quotidiano, se recuperam modos de estar, fazer e sentir daqueles que não constam dos arquivos nem aparecem na História, mas têm história e que na escrita criativa do romancista (contista, poeta ou dramaturgo) se tornam “estórias”, que lemos, partilhamos e com as quais nos identificamos. Daí, Honoré de Balzac ter defendido, no prólogo de A Comédia Humana, que o romance é a história privada (secreta) das nações. É essa enorme diversidade de locais, pessoas, acontecimentos, pensamentos e acções, enredadas na técnica inconfundível da narrativa, que faz de um grande romance uma escrita sobre a vida, tal como o defendia o poeta francês Claude Roy. E faz da literatura uma fonte inesgotável de informação e conhecimento, e de uma enorme eficácia nos processos de aprendizagem.

Ora, se nos reportarmos ao mundo escolar, esta função da literatura ganha todo o sentido e amplia, a uma escala imensa, esse universo de descrição (quantas vezes etnográfica) da vida anónima de cada escola. Traz-nos a dimensão do particular, do individual, do concreto vivido e experienciado. Não na lógica de uma História da Educação, mais atraída pelos tombos, na expectativa de aí encontrar o (ainda) desconhecido “documento oficial”, mas de uma “história privada” das escolas, dos alunos, dos professores, das famílias… O acesso aos textos literários constitui, assim, uma ajuda fundamental para a compreensão do mundo académico e para um melhor entendimento da diversidade dos seus agentes. A literatura, na sua especificidade de contar e de nos oferecer saberes, permite uma outra leitura do real, sem deixar, no entanto, de evocar ideias, sensibilidades e particularismos de uma época, em concreto. Devemos ter presente, como nos relembra a escritora Teolinda Gersão, que

«a literatura está sempre marcada por uma determinada época e tem sempre algo de datado»8.

Fernando Dacosta chama a atenção para os condicionalismo existentes durante um período muito peculiar da nossa história – o Estado Novo, fortemente condicionado pela falta de liberdade de expressão, designadamente da imprensa, e como a literatura acaba por captar o real, desempenhando a função de “espelho” social. Os escritores funcionariam assim como uma espécie de “pintores” impiedosos da vida portuguesa:

«Amputados pela Censura Prévia, os jornais não exprimiam as realidades profundas das populações. Eram os romances que o faziam, com tiragens de dezenas de milhares de exemplares, levados, uns, pelas bibliotecas itinerantes da Gulbenkian, outros pelas estruturas clandestinas da oposição» (2001:186).

Para daí concluir que:

«A sina dos escritores é não calarem as bofetadas que vêem ser dadas à sua volta» (id.:348).

A literatura, apesar dos seus detractores econocratas, continua a ter um lugar insubstituível na sobremodernidade (Augé, 1992) e a ser um tesouro inesgotável de prazer, deleite e sabedoria. O escritor Olivier Rolin (1947-), autor de Porto-Sudão (Prémio Femina, 1994), considera que

«só a Literatura pode dar conta da complexidade humana, e não a História ou a Sociologia».

Também Stephan Ellenwood, presidente do departamento de Currículo e Ensino da Universidade de Boston, encara a literatura como uma verdadeira “escola” para o entendimento da condição humana e desde finais dos anos 80 tem vindo a desenvolver um «projecto de educação do carácter» tendo a literatura como instrumento básico; daí resultou a publicação, em 1993, da antologia The Art of Loving Well, um conjunto de textos clássicos e contemporâneos (mitologia, ficção e biografia), com intuitos interdisciplinares e que permite aos alunos a abordagem à complexidade humana, designadamente aos valores e à ética9.

 

Notas

1. Entrevista de José Saramago ao DN, 18/11/2000, p. 45.

2. Entrevista de António Alçada Baptista ao DNA, nº 144, 28/08/1999, p. 20.

3. Eduardo Prado Coelho, Público, 2001.

4. Entrevista de Urbano Tavares Rodrigues ao Ensino Magazine, nº 10, Dezembro 1998, p. 2.

5. Augusto Abelaira dizia que «o grande romance, hoje, é escrito pelos grandes cineastas» (intervenção no clube de leitura “Sei Apenas Soletrar”, 28/06/2003).

6. Entrevista de Mário Ventura ao DN, 19/08/2001, p. 38.

7. Entrevista de Damon Galgut ao Ípsilon, 07/01/2022, p. 5.

8. Entrevista de Teolinda Gersão ao Ensino Magazine, nº 14, Abril 1999, p. 15.

9. “The Art of Teaching”, Update: Boston University School of Education Newsletter, Fall, 2002, p. 3.

 

Referências

AUGÉ, Marc (1992) Não-lugares: Introdução a uma Antropologia da Sobremodernidade. Venda Nova: Bertrand Editora, 1994.

BALZAC, Honoré de (1829) A Comédia Humana. Porto Civilização, 1978.

DACOSTA, Fernando (2001) Nascido no Estado Novo. Lisboa: Editorial Notícias/ Obras de F.D.

MORIN, Edgar (1998) “Rumo a um novo contrato social?”. Fontes UNESCO, nº 106, Novembro.

SARAMAGO, José (1971) Deste Mundo e do Outro. Lisboa: Editorial Caminho/ O Campo da Palavra, 3ª edição, 1985.

SARAMAGO, José (1984) O Ano da Morte de Ricardo Reis. Lisboa: Editorial Caminho/ O Campo da Palavra, 4ª edição.

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