Uma Revista que se pretende livre, tendo até a liberdade de o não ser. Livre na divisa, imprevisível na senha. Este "Estudo Geral", também virado à participação local, lembra a fundação do "Estudo Geral" em Portugal, lá longe no ido século XIII, por D. Dinis, "o plantador das naus a haver", como lhe chama Fernando Pessoa em "Mensagem". Coordenação de Edição: Luís Santos.
sexta-feira, 28 de outubro de 2022
Peregrinação à Índia
domingo, 16 de outubro de 2022
ENCONTRO DE ESCRITORES. Uma reunião inesquecível.
Ainda nos lembra os picos da Atlântida, de que os Açores são
parte. As conversas telepáticas, o brilho dos cristais, das viagens espaciais.
Rememorações ancestrais. Das asas, dos voos. Das pedras piramidais, dos enormes
templos. Dos sacerdotes e dos deuses das jornadas iniciáticas. Das
festividades, das homenagens, dos rituais.
Ainda nos lembra das árvores. Nossas casas. Das árvores e
dos frutos. Dos guinchos e das poças de água em que bebiam e chapinhavam, e às
vezes até lutavam, com paus, com ramos, que se foram tornando pontiagudos.
Grupos enormes, famílias extensas. Nómadas à procura de tempos quentes, e das
marés. Das fogueiras e das cavernas.
Do ferro e dos arados. Das cabanas em círculo de entre-ser e
dos centros das aldeias em que dançámos e se contavam estórias sobre estórias. De
tudo se falava e de nada se escrevia. Riscos e desenhos, pinturas no chão e nos
corpos. E se percutiam as danças onde se saltava bem alto em frente delas para
mostrarmos da imensa leveza, da elevação.
Matriarcais saudades de jovens amazonas que viviam nos
campos de escravizantes agriculturas. Quando se deixaram as deambulações, de
bichos à solta, e se fixaram os animais e as terras, e se construíram as cercas
para as crianças e as mulheres, das escolas e dos lares e das mamas, do leite.
Da carne.
Do peixe e daqueles pescadores da Judeia, de Belém, entre os
latins romanos do império que rendiam os gregos, mas só nas armas que não na
filosofia. Da democracia, mas não para mulheres e escravos e estrangeiros,
metecos aristotélicos e platónicas curtes, por sua vez, herdeiros de socráticos
devaneios. Da maiêutica, da arte de dar à luz, do mundo das ideias.
Afinal, o Amor. A universal fraternidade. O céu infinito. O
Amor... e a cruz. Jesus! Para tanto sofrimento que nos redima. Então e da
meditação, do Buda, que nos livra do sofrimento? Do possível transcendental
salto védico que nos livre daqui. Do
Deus no lugar do homem que, doravante, será parte de Deus. Da oração, do
silêncio, do deserto. De Ti!
Cadê a deusa-mãe, cadê os celtas. Cadê celtas e iberos,
endovélicos lusitanos. Dos bárbaros
godos e visigodos que depois voltaram. Os pagãos, as forças da natureza, as
mágicas alianças. Avalon. Os druidas, as poções, dos milagres, da cura e a
doença. A lógica analógica, a consciência cósmica. A totémica identidade. Todos
indo-europeus, todos cristãos virados pelo avesso, anunciada evangelização.
O crescente lunar e a arabesca astronomia. Das bússolas, do
astrolábio. Do Maomé e do Alcorão. De Meca, de Medina e da mesquita. Das deusas
encantadas, enamoradas. Dos cânticos de amor. Desgostos do Amor. Da “xaria”. Da
expansão e da desejada reconstrução do "mare nostrum". De Poitiers e
de Carlos Magno, Urbano VIII de joelhos, imperador da cristandade.
Da reconquista católica. Dos cruzados e das cruzadas.
Raimundo e Henrique, Teresa e Urraca. Afonso de Castela. Do Condado
Portucalense. Guimarães. São Mamede, 24 de junho de 1128. Um rei sonhado e a
sonhar com cristo-rei. Vai e funda o meu reino, vai Henriques. E ele foi.
E lá foi fazer o que Ele quis. Vai Dinis. Vem Santa Isabel.
Vinde Língua Portuguesa. Vinde todos os peregrinos, toda a ordem do templo,
ordem de cristo. Venha o espírito santo. O pai, o filho e a Jerusalém
Celeste. Vinde vendavais que rumorejam
nos pinhais, venham todas as naus. Todas as ilhas dos amores.
(in, AMORIM, Francisco Gomes de & FONSECA, Henrique Salles da (2022) Encontro de Escritores, uma reunião inesquecível. Lisboa: Edições Vírgula, pp.40-43)
domingo, 2 de outubro de 2022
"Graffitar a Literatura" (XXX)
Luís Souta
«A medida do
amor é amar sem medida.»
(Victor Hugo)
Tal não se veio a verificar; regressaria a Paris onde seria ainda deputado daAssembleia Nacional ( 1870) e senador (1876)… e ali morreu (de uma congestão cerebral) com 83 anos. «Chegam montanhas de flores de todos os cantos da França – e o povo, emocionado, acompanha o poeta à sua última morada, o Panteão.» (José Ramón Araña in Os Forjadores do Mundo Moderno, 1968:108).
Alma grande e generosa: «dou cinquenta mil francos aos pobres» (lê-se no seu testamento).
No romance Os Homens do Mar, dividido em três partes, destaco os episódios épicos em que o principal protagonista – Gilliatt – se debate, em plenomar, com “O monstro”, assim designado, pelo autor, no Livro IV da Segunda Parte:
«A pieuvre não tem massa muscular, nem grito ameaçador, nem couraça, nem chifre, nem dardo, nem pinças, nem cauda que prende ou contundente, nem azas com garras, nem espinhos, nem espada, nem descarga electrica, nem virus, nem veneno, nem garras, nem bico, nem dentes. A pieuvre é de todos os animaes o que está melhor armado.
O que é então a pieuvre? É a ventosa.
Nos cachopos do mar largo, nos sitios onde a agua ostenta e occulta todos os seus explendores, nas cavidades dos rochedos não visitados, nas covas desconhecidas, onde abundam as vegetações, os crustaceos e os mariscos, sobre os profundos porticos do Oceano, o nadador que ahi se aventure, enlevado pela belleza do sitio, corre o risco de se encontrar com ella. (II vol., pp. 102-3)
Este é um pormenor de um mural concebido em 2021 por Jacqueline De Montaigne, anglo-portuguesa, formada em ciências da saúde e a residir em Cascais; uma muralista tardia cujo primeiro trabalho surge só aos 36 anos de idade.
A capa de Os Homens do Mar, da autoria de Roberto Nobre (1935), define- a José-Augusto França como «uma pintura futuro-expressionista, à moda alemã, que o cinema (de que foi o maior crítico da sua geração em Portugal) lhe trazia» (citado em Rita Gomes Ferrão, Público, 05/05/2016, p. 47). Nesse artigo, a historiadora de arte remete «a cena representada, descritiva de um episódio da narrativa (…) a luta entre a figura humana e o polvo gigante» para um gramática Art Déco e as influências do cinema expressionista alemão dos anos 20.
«O monstro era o habitante d’aquella gruta. Era o genio medonho d’aquelle logar. Especie de sombrio demonio da agua. (…) Gilliatt mettera o braço pela fenda: a pieuvre agarrara-o.
Tinha-o seguro.
Gilliatt era a mosca d’aquella aranha. (…) Dos oito braços da pieuvre trez aderiam ao rochedo, e cinco a Gilliatt. D’este modo segura por um lado ao granito, e pelo outro ao homem prendia Gilliatt ao rochedo. Gilliatt tinha sobre si duzentos e cincoenta sugadores. Complicação d’angustia e de desgosto. Ser apertado por uma enorme mão, cujos dedos são elasticos, e quasi de um metro de comprimento, e interiormente cheios de pustulas vivas que penetram pela carne.
Já dissemos que não é possivel desprendermo-nos da pieuvre. Se o tentarmos, mais ligados nos sentimos ainda. Cada vez nos aperta mais. O seu esforço cresce na razão do nosso. Mais abalos produzem mais constrição.
Gilliatt tinha apenas um recurso, a navalha.» (II vol., pp. 108-9)
Gilliatt abate o monstro mas não ganha o amor de Déruchette, essa mulher que «usava todo o anno chapéus guarnecidos de flores; tinha a fronte altiva, o collo flexivel e tentador, os cabellos castanhos, a pelle alvissima, com algumas manchas de sardas no verão, a bocca espaçosa e sadia, e, sobre essa
bocca adoravel e perigosa, o explendor do sorriso.» (I vol., p. 43)
Déruchette que, num certo dia, ao escrever no gelo, ao lado da marca dos seus pequenos pés, a palavra “Gilliatt” viria a deflagrar, sem o querer, uma chama no coração do solitário (que vivia numa «especie de lazareto», a casa do fim da rua) e pouco estimado Gilliatt («os indígenas detestam os estrangeiros
enigmaticos», p. 15). Um amor nascido de um equívoco pelo qual lutou com a bravura de um autêntico herói. Venceu no mar, perdeu em terra.