Deixa que sinta
O calor, sim,
Uma Revista que se pretende livre, tendo até a liberdade de o não ser. Livre na divisa, imprevisível na senha. Este "Estudo Geral", também virado à participação local, lembra a fundação do "Estudo Geral" em Portugal, lá longe no ido século XIII, por D. Dinis, "o plantador das naus a haver", como lhe chama Fernando Pessoa em "Mensagem". Coordenação de Edição: Luís Santos.
Este relato por ser real não
podia ficar na gaveta. Um amigo meu, funcionário no hospital onde trabalhei,
pensou arranjar maneira de poder ganhar mais uns tostões (ainda não havia euros)
para juntar ao seu modesto vencimento.
Assim comprou uns bezerros
pequenos e começou a alimentá-los numa fazenda, com o intuito de os vender mais
tarde.
E lá ia ele, todas as manhãs,
antes de ir para o emprego cuidar deles. O tempo foi decorrendo, e chegou a uma
altura que os animais já conheciam a chegado do amigo F...
pelo ruído do motor da sua
viatura, e corriam ao seu encontro. Entre eles foi então crescendo uma grande
amizade.
Mas chegou o dia, o menos
desejado, em que nessa manhã o amigo F... deslocou-se para a fazenda carregando
em cima de si um pensamento demasiado pesado.
E pela primeira vez algo de
inédito aconteceu,
os animais não correram ao seu
encontro.
Aproximou-se dos animais e viu
que havia lágrimas correndo pelos seus olhos.
Passado uma hora chegou à fazenda
uma camioneta que levou os animais para o matadouro local. F... deu por
terminada ali a sua experiência comercial, prometendo a si próprio que tal não
se voltaria a repetir, é que a sensibilidade também faz parte dos seus
alforges.
Amigo F... desculpa não te ter
pedido autorização para esta publicação, mas os mais sensíveis não nos iam
perdoar, se nós não a partilhássemos.
António do Carmo Alfacinha
24.12.2022
O EcoCampus do Instituto Politécnico de Setúbal e a Rede de Escolas Associadas da UNESCO
Muitos dos fenómenos meteorológicos que se têm feito
sentir um pouco por todo o mundo, como é o caso da intensa chuva que tem caído
nos últimos dias no nosso país, têm sido frequentemente associados às
alterações climáticas que, por sua vez, surgem interligadas às múltiplas causas
da excessiva poluição do planeta como é o caso do uso excessivo dos
combustíveis fósseis (petróleo e carvão) que têm sido largamente usados no
funcionamento das indústrias, dos transportes, dos consumos energéticos das
nossas casas.
Esta excessiva poluição que se faz sentir de forma
muito significativa nos ares, nas águas dos rios e dos mares, entre outros
efeitos muito nefastos, tem provocado o aumento da subida das temperaturas
médias do planeta que neste momento se cifra nos 1.2ºC, o que em si é já um
valor muito elevado, mas que continuará a subir se, a nível mundial, não forem
tomado um conjunto de medidas que tendam a alterar alguns dos comportamentos
humanos que estão por detrás destes fenómenos, a fim de que se possam evitar
mudanças climáticas irreversíveis, cujas consequências podem aumentar ainda
mais os níveis de pobreza, fome, doença e, no limite, pôr mesmo em risco as
possibilidades de sobrevivência, pelo menos, de grande parte da espécie humana
no planeta.
Neste sentido, aos frequentes alertas que têm sido
proferidos pelo Secretário-Geral das Nações Unidas, António Guterres, a
Organização das Nações Unidas, depois de outras, promoveu no mês passado mais
uma Conferência Mundial que decorreu no Cairo, capital do Egipto, onde se
tentaram encontrar compromissos concretos por parte de todas as nações do mundo
que se traduzam numa alteração desses nefastos comportamentos que, por exemplo,
levem ao degelo das calotes polares e o consequente aumento das catástrofes
naturais que lhes surgem associadas.
Assim, desde 2015 que os 193 países que constituem
as Nações Unidas (ONU), chegaram aquela que se designa atualmente como a
“Agenda 2030”, constituída pelos 17 objetivos do desenvolvimento sustentável
(ODS), e pela sua aplicação até final da década, que consigam inverter, ou pelo
menos, estancar, para o bem comum, as múltiplas causas que têm conduzido à
excessiva poluição do planeta e às alterações climáticas.
Entre os 17 ODS, a necessidade de promover uma
“Educação de Qualidade” e, neste sentido, também de estabelecer um conjunto de
parcerias com instituições afins, tem levado o nosso Instituto (IPS) a
desenvolver um conjunto de ações como resposta aos compromissos assumidos por
Portugal no âmbito das Nações Unidas. Por outro lado, a Comissão Nacional da
UNESCO (Organização das Nações Unidas para a Ciência, Educação e Cultura que
tem como objetivo primordial contribuir para a paz e segurança no mundo) tem
vindo a participar no incremento de uma série de iniciativas como é o exemplo
daquela que se designa como a “rede de escolas associadas da UNESCO”. E é
justamente na tentativa de iniciar uma parceria que se quer duradoura entre o
Instituto Politécnico de Setúbal e a Comissão Nacional da UNESCO que hoje temos
connosco o Professor Carlos Mata, Vice-Presidente do IPS, e a responsável pelo
setor da educação da CNU, Dra. Fátima Claudino, que, respetivamente, no âmbito
dos princípios do desenvolvimento sustentável, nos irão dizer, porque é que o
IPS é um EcoCampus e o que se pretende com essa “rede de escolas associadas da
unesco”.
Luís Santos
19.12.2022
Nem tudo vale o mesmo. Há o que
promove o pleno desenvolvimento humano, pessoal e comunitário, e o que apenas
satisfaz os interesses e desejos de ilusão, preservação e engrandecimento dos
egos individuais e colectivos. Há exemplos de vida virtuosa, posta ao serviço
do bem dos humanos e de todos os seres, e exemplos de vida pequenina, serva do
aumento do próprio umbigo, individual ou colectivo. Uma sociedade e civilização
que entroniza e idolatra os heróis da competição e do sucesso exterior- seja
empresarial, político, artístico, literário, académico ou desportivo - está em
profunda decadência e arrasta consigo os mais jovens, a quem não oferece
modelos de pleno florescimento humano, exemplos de sabedoria, amor e compaixão.
É uma sociedade e uma civilização que se corrompe e dissolve, tornando-se na
melhor das hipóteses o húmus do germinar de novas sementes de consciência e de
Vida.
Paulo Borges
#irmânia
https://www.facebook.com/hashtag/irm%C3%A2nia
“Faróis”
«Não consigo pensar em nenhum outro edifício construído pelo homem tão altruísta quanto um farol. Eles foram construídos apenas para servir.»
(Bernard Shaw)
Sempre me atraíram os faróis. Procuro-os para os
observar, fotografar e visitar. Deslumbro-me naquele interior espaçoso… em
altura; fico extasiado perante aquelas lentes descomunais. Mas sobretudo,
admiro (o que nunca vejo) os faroleiros e a sua solidão profissional. Em dias
de raios e coriscos e névoa densa, a luz e o som dos faróis (preventivos de
catástrofes) orientam as embarcações e levam-nas a bom porto. Na nossa costa
temos 50. Locais de encantamento e magia.
Em mim, esse interesse acentuou-se ainda mais com a
leitura do romance Mentira do catalão
Enrique de Hériz (2005). Uma das personagens, Serena, desenvolve uma pesquisa
sistemática, nos faróis da Costa Brava de Espanha, para encontrar um eventual
registo do temporal de 22/01/1922 que provocou o naufrágio do barco de pesca
que havia zarpado de Malespina (Barcelona), com o seu avô Simón em fuga de um
pai tirano (três dias depois seria resgatado pelo cargueiro Astor). Serena aos
37 anos «ainda anda por aí à procura de tempestades, a sonhar com um ciclone
que a transporte no tempo, sempre para trás, e lhe permita salvar o avô e
resgatar também o pai e salvar-se a si própria de não sei o quê» (p. 93, lê-se
no diário da sua mãe antropóloga que a família julgava morta na Guatemala).
«Desde finais do século XIX até 1968,
todos os faróis de Espanha conservavam um registo chamado “Livro de Registos de
Estados das Tempestades”. Hoje, os correspondentes a todos os faróis da Costa
Brava estão guardados no Arquivo Histórico de Girona. Cada ano, um livro de
registo. Adoro aquele nome: estado das tempestades. Como se uma tempestade não
fosse uma coisa que acontece de repente, uma coisa que vem e vai, mas sim uma
presença acaçapada e permanente, uma fera cujo humor se vigia. Foi esse o tema
da minha tese e tive a sorte de tocar com as minhas próprias mãos aqueles
documentos: cadernos oblongos de capas vermelhas e papeis toscos, inchados pela
humidade» (p. 86)
Nessa demanda documental, quase obsessiva, Serena
perdia-se maravilhada nos manuscritos «daqueles faroleiros, que eram
meteorologistas sem o saberem» onde, para além dos dados meteorológicos (hora
do início e fim da tempestade, humidade, temperatura, direcção do vento e
quantidade de água recolhida por metro cúbico), anotavam, no verso da mesma
página,
«as suas impressões pessoais e, com o
estilo altissonante próprio dos tempos, demorava-se em apreciações quase
poéticas sobre trovões e relâmpagos, espessura das nuvens e violência do mar.
Antes de assinar, despedia-se sempre com o mesmo comentário final: “Não há
conhecimento de que tenha ocorrido qualquer novidade nas proximidades deste
estabelecimento.» (p. 86)
Foi também esta faceta “literária” da actividade dos
faroleiros, expressa num instrumento que partilham com os antropólogos – o
“diário” – que me entusiasmou de forma acrescida. À sua maneira, também eles
etnografavam… o céu e o mar.
Uma amiga, sabendo desse meu gosto e fascínio pelos faróis, ofereceu-me um quadro pintado por si com este mesmo, o de Santa Marta, igualmente em tons de azul. Tenho-o numa das paredes do meu quarto. Acordo, todas as manhãs, a olhar aquela peculiar torre quadrangular de 20 metros, revestida a azulejo, com faixas horizontais azuis e brancas. E a lanterna vermelha a indicar-me o rumo: levanta-te e faz-te à vida… que já são horas!
Post scriptum:
Este
mural de Exas (Muraliza, Cascais, 2014), estende-se por um muro convexo
na Travessa dos Navegantes, entre o nº 2
e o 5, e nele se vê uma pequena placa metálica azul em que se pode ler: “É
proibido afixar anúncios nesta propriedade”.
Já quando era miúdo não entendia bem o sentido desta
placa afixada nas paredes exteriores de alguns edifícios, da minha vila
suburbana. Por esses tempos (os da ditadura) não havia, praticamente,
publicidade de rua (só me lembro do Licor Beirão), nem disputas eleitorais (o
sistema era de partido único), nem graffitis
(ainda eram desconhecidos, entre nós, como manifestações de contracultura).
Com a democracia, a parafernália de cartazes
partidários tornou obsoleto o conteúdo de tais placas proibitivas, e lançou o
caos naquelas paredes caiadas por um senhorio diligente e ávido do que é seu.
Era o tirocínio da cidadania através de ínvios caminhos.
Nos dias de hoje, este aviso – resquício desse tempo
em que tudo se proibia (até o viver em liberdade) – é digno de loja de
antiguidades. Por isso o graffiter
não o teve em conta e fez o que o seu impulso artístico e dever cívico lhe
impunham – extravasar o que lhe ia na alma e dar vida e colorido ao velho e
corroído muro daquela movimentada rua.
Agora, anos volvidos, a vegetação espontânea
apossou-se da parede e quase esconde o belo mural. Os meus olhos desviavam-se,
entristecidos pela incúria…
Texto e Imagens
Luís Souta