sexta-feira, 30 de dezembro de 2022

CARTAS A GRAFITE


Acende umas páginas por mim.

Deixa que sinta
O calor, sim,
Rouba esse grandioso Universo das cartas perdidas.

Não aguardes mais cinzas.
Ateia!
Ilumina trevas
Porventura destilado alcatrão da hulha
Escolheram para mim.

Nesta noite mais escura
desinflama,
ou faz das palavras acendalhas
por fogueira...                                                                     há muito
perdida. 

Cerzido peito respita, assim como nódoa dissolvida na sombra,
liberta.

Às dez inflama!
Acende etérea volátil e dilacerante insta-habilidade,
mas não esqueças intensa e momentânea luz.

Sem o gravame da idade
deixa que arda!
E devolve penumbra ao sentimento,
por todas as palavras
jamais escritas,
jamias fotografadas,
(a)meia luz.


Paulo Landeck, 29-12-2022. Itinerâncias.
A todos, um melhor ano!

terça-feira, 27 de dezembro de 2022

PERCEPÇÃO ANIMAL

Este relato por ser real não podia ficar na gaveta. Um amigo meu, funcionário no hospital onde trabalhei, pensou arranjar maneira de poder ganhar mais uns tostões (ainda não havia euros) para juntar ao seu modesto vencimento.

Assim comprou uns bezerros pequenos e começou a alimentá-los numa fazenda, com o intuito de os vender mais tarde.

E lá ia ele, todas as manhãs, antes de ir para o emprego cuidar deles. O tempo foi decorrendo, e chegou a uma altura que os animais já conheciam a chegado do amigo F...

pelo ruído do motor da sua viatura, e corriam ao seu encontro. Entre eles foi então crescendo uma grande amizade.

Mas chegou o dia, o menos desejado, em que nessa manhã o amigo F... deslocou-se para a fazenda carregando em cima de si um pensamento demasiado pesado.

E pela primeira vez algo de inédito aconteceu,

os animais não correram ao seu encontro.

Aproximou-se dos animais e viu que havia lágrimas correndo pelos seus olhos.

Passado uma hora chegou à fazenda uma camioneta que levou os animais para o matadouro local. F... deu por terminada ali a sua experiência comercial, prometendo a si próprio que tal não se voltaria a repetir, é que a sensibilidade também faz parte dos seus alforges.

Amigo F... desculpa não te ter pedido autorização para esta publicação, mas os mais sensíveis não nos iam perdoar, se nós não a partilhássemos.

António do Carmo Alfacinha

24.12.2022

quarta-feira, 21 de dezembro de 2022

Introdução a Seminário IPS/UNESCO


O EcoCampus do Instituto Politécnico de Setúbal e a Rede de Escolas Associadas da UNESCO

Muitos dos fenómenos meteorológicos que se têm feito sentir um pouco por todo o mundo, como é o caso da intensa chuva que tem caído nos últimos dias no nosso país, têm sido frequentemente associados às alterações climáticas que, por sua vez, surgem interligadas às múltiplas causas da excessiva poluição do planeta como é o caso do uso excessivo dos combustíveis fósseis (petróleo e carvão) que têm sido largamente usados no funcionamento das indústrias, dos transportes, dos consumos energéticos das nossas casas.

Esta excessiva poluição que se faz sentir de forma muito significativa nos ares, nas águas dos rios e dos mares, entre outros efeitos muito nefastos, tem provocado o aumento da subida das temperaturas médias do planeta que neste momento se cifra nos 1.2ºC, o que em si é já um valor muito elevado, mas que continuará a subir se, a nível mundial, não forem tomado um conjunto de medidas que tendam a alterar alguns dos comportamentos humanos que estão por detrás destes fenómenos, a fim de que se possam evitar mudanças climáticas irreversíveis, cujas consequências podem aumentar ainda mais os níveis de pobreza, fome, doença e, no limite, pôr mesmo em risco as possibilidades de sobrevivência, pelo menos, de grande parte da espécie humana no planeta.

Neste sentido, aos frequentes alertas que têm sido proferidos pelo Secretário-Geral das Nações Unidas, António Guterres, a Organização das Nações Unidas, depois de outras, promoveu no mês passado mais uma Conferência Mundial que decorreu no Cairo, capital do Egipto, onde se tentaram encontrar compromissos concretos por parte de todas as nações do mundo que se traduzam numa alteração desses nefastos comportamentos que, por exemplo, levem ao degelo das calotes polares e o consequente aumento das catástrofes naturais que lhes surgem associadas.

Assim, desde 2015 que os 193 países que constituem as Nações Unidas (ONU), chegaram aquela que se designa atualmente como a “Agenda 2030”, constituída pelos 17 objetivos do desenvolvimento sustentável (ODS), e pela sua aplicação até final da década, que consigam inverter, ou pelo menos, estancar, para o bem comum, as múltiplas causas que têm conduzido à excessiva poluição do planeta e às alterações climáticas.

Entre os 17 ODS, a necessidade de promover uma “Educação de Qualidade” e, neste sentido, também de estabelecer um conjunto de parcerias com instituições afins, tem levado o nosso Instituto (IPS) a desenvolver um conjunto de ações como resposta aos compromissos assumidos por Portugal no âmbito das Nações Unidas. Por outro lado, a Comissão Nacional da UNESCO (Organização das Nações Unidas para a Ciência, Educação e Cultura que tem como objetivo primordial contribuir para a paz e segurança no mundo) tem vindo a participar no incremento de uma série de iniciativas como é o exemplo daquela que se designa como a “rede de escolas associadas da UNESCO”. E é justamente na tentativa de iniciar uma parceria que se quer duradoura entre o Instituto Politécnico de Setúbal e a Comissão Nacional da UNESCO que hoje temos connosco o Professor Carlos Mata, Vice-Presidente do IPS, e a responsável pelo setor da educação da CNU, Dra. Fátima Claudino, que, respetivamente, no âmbito dos princípios do desenvolvimento sustentável, nos irão dizer, porque é que o IPS é um EcoCampus e o que se pretende com essa “rede de escolas associadas da unesco”.

Luís Santos

19.12.2022

sábado, 17 de dezembro de 2022

Academia Agostinho da Silva

Nem tudo vale o mesmo. Há o que promove o pleno desenvolvimento humano, pessoal e comunitário, e o que apenas satisfaz os interesses e desejos de ilusão, preservação e engrandecimento dos egos individuais e colectivos. Há exemplos de vida virtuosa, posta ao serviço do bem dos humanos e de todos os seres, e exemplos de vida pequenina, serva do aumento do próprio umbigo, individual ou colectivo. Uma sociedade e civilização que entroniza e idolatra os heróis da competição e do sucesso exterior- seja empresarial, político, artístico, literário, académico ou desportivo - está em profunda decadência e arrasta consigo os mais jovens, a quem não oferece modelos de pleno florescimento humano, exemplos de sabedoria, amor e compaixão. É uma sociedade e uma civilização que se corrompe e dissolve, tornando-se na melhor das hipóteses o húmus do germinar de novas sementes de consciência e de Vida.

Paulo Borges

#irmânia

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domingo, 4 de dezembro de 2022

Graffitar a Literatura (VII)

 Faróis”

«Não consigo pensar em nenhum outro edifício construído pelo homem tão altruísta quanto um farol. Eles foram construídos apenas para servir.»

(Bernard Shaw)

 
Cascais, Travessa dos Navegantes 

Sempre me atraíram os faróis. Procuro-os para os observar, fotografar e visitar. Deslumbro-me naquele interior espaçoso… em altura; fico extasiado perante aquelas lentes descomunais. Mas sobretudo, admiro (o que nunca vejo) os faroleiros e a sua solidão profissional. Em dias de raios e coriscos e névoa densa, a luz e o som dos faróis (preventivos de catástrofes) orientam as embarcações e levam-nas a bom porto. Na nossa costa temos 50. Locais de encantamento e magia.

Em mim, esse interesse acentuou-se ainda mais com a leitura do romance Mentira do catalão Enrique de Hériz (2005). Uma das personagens, Serena, desenvolve uma pesquisa sistemática, nos faróis da Costa Brava de Espanha, para encontrar um eventual registo do temporal de 22/01/1922 que provocou o naufrágio do barco de pesca que havia zarpado de Malespina (Barcelona), com o seu avô Simón em fuga de um pai tirano (três dias depois seria resgatado pelo cargueiro Astor). Serena aos 37 anos «ainda anda por aí à procura de tempestades, a sonhar com um ciclone que a transporte no tempo, sempre para trás, e lhe permita salvar o avô e resgatar também o pai e salvar-se a si própria de não sei o quê» (p. 93, lê-se no diário da sua mãe antropóloga que a família julgava morta na Guatemala).

«Desde finais do século XIX até 1968, todos os faróis de Espanha conservavam um registo chamado “Livro de Registos de Estados das Tempestades”. Hoje, os correspondentes a todos os faróis da Costa Brava estão guardados no Arquivo Histórico de Girona. Cada ano, um livro de registo. Adoro aquele nome: estado das tempestades. Como se uma tempestade não fosse uma coisa que acontece de repente, uma coisa que vem e vai, mas sim uma presença acaçapada e permanente, uma fera cujo humor se vigia. Foi esse o tema da minha tese e tive a sorte de tocar com as minhas próprias mãos aqueles documentos: cadernos oblongos de capas vermelhas e papeis toscos, inchados pela humidade» (p. 86)

Nessa demanda documental, quase obsessiva, Serena perdia-se maravilhada nos manuscritos «daqueles faroleiros, que eram meteorologistas sem o saberem» onde, para além dos dados meteorológicos (hora do início e fim da tempestade, humidade, temperatura, direcção do vento e quantidade de água recolhida por metro cúbico), anotavam, no verso da mesma página,

«as suas impressões pessoais e, com o estilo altissonante próprio dos tempos, demorava-se em apreciações quase poéticas sobre trovões e relâmpagos, espessura das nuvens e violência do mar. Antes de assinar, despedia-se sempre com o mesmo comentário final: “Não há conhecimento de que tenha ocorrido qualquer novidade nas proximidades deste estabelecimento.» (p. 86)

Foi também esta faceta “literária” da actividade dos faroleiros, expressa num instrumento que partilham com os antropólogos – o “diário” – que me entusiasmou de forma acrescida. À sua maneira, também eles etnografavam… o céu e o mar.

Uma amiga, sabendo desse meu gosto e fascínio pelos faróis, ofereceu-me um quadro pintado por si com este mesmo, o de Santa Marta, igualmente em tons de azul. Tenho-o numa das paredes do meu quarto. Acordo, todas as manhãs, a olhar aquela peculiar torre quadrangular de 20 metros, revestida a azulejo, com faixas horizontais azuis e brancas. E a lanterna vermelha a indicar-me o rumo: levanta-te e faz-te à vida… que já são horas! 

Post scriptum:

Este mural de Exas (Muraliza, Cascais, 2014), estende-se por um muro convexo na Travessa dos Navegantes, entre o nº 2 e o 5, e nele se vê uma pequena placa metálica azul em que se pode ler: “É proibido afixar anúncios nesta propriedade”.

Já quando era miúdo não entendia bem o sentido desta placa afixada nas paredes exteriores de alguns edifícios, da minha vila suburbana. Por esses tempos (os da ditadura) não havia, praticamente, publicidade de rua (só me lembro do Licor Beirão), nem disputas eleitorais (o sistema era de partido único), nem graffitis (ainda eram desconhecidos, entre nós, como manifestações de contracultura).

Com a democracia, a parafernália de cartazes partidários tornou obsoleto o conteúdo de tais placas proibitivas, e lançou o caos naquelas paredes caiadas por um senhorio diligente e ávido do que é seu. Era o tirocínio da cidadania através de ínvios caminhos.

Nos dias de hoje, este aviso – resquício desse tempo em que tudo se proibia (até o viver em liberdade) – é digno de loja de antiguidades. Por isso o graffiter não o teve em conta e fez o que o seu impulso artístico e dever cívico lhe impunham – extravasar o que lhe ia na alma e dar vida e colorido ao velho e corroído muro daquela movimentada rua.

Agora, anos volvidos, a vegetação espontânea apossou-se da parede e quase esconde o belo mural. Os meus olhos desviavam-se, entristecidos pela incúria…


Texto e Imagens

Luís Souta