terça-feira, 14 de fevereiro de 2023

SAÚDE E CLARIDADE

 Risoleta Pinto Pedro

chi-kung-canoas

Tenho o maior respeito por todos os que trabalham a favor da saúde. E aqui englobo todas as formas de vida no planeta, cujo bem-estar faz parte das nossas preocupações.

Trago aqui um tema que não tem sido suficientemente tratado, ainda que seja bastante falado. Mas não necessariamente aprofundado sem preconceitos.

Tem vigorado, ao longo de séculos, um sistema mental de tudo avaliar em termos de bem e de mal. Separadamente. Usamos apenas duas gavetas do mundo. Aquela onde guardamos o que é bom e a outra onde escondemos o que é mau. Segundo os nossos valores. Nós próprios estamos numa dessas gavetas. Na do bem, quando nos queremos ver, uns como cowboys, e outros como índios, consoante o nosso sistema de crenças; e na do mal, quando o nosso amor próprio ou a falta dele nos atira para a gaveta dos índios… ou dos cowboys. E onde quer que estejamos, estamos sempre mal arrumados. Porque também as etiquetas “cowboys” e “índios”, estão equivocadas. O simples facto de haver etiquetas, o simples facto de haver gavetas, é o princípio do equívoco. Porque as coisas não funcionam assim. Comecemos por nós, que temos dentro o cowboy e o índio, sendo que o cowboy tem dentro de si o índio e o índio tem dentro de si o cowboy, e a coisa chega a um ponto em que já não é possível apontar o dedo a nada nem a ninguém, pois tudo contém tudo, como um sistema de bonecas russas. Não estou com isto a minimizar o quão devastador foi e continua a ser o efeito da ocupação do território nativo pelos que chegaram de fora. Esse é outro assunto. Não podemos é ficar eternamente plasmados nos arquétipos de vítima e vilão, pois desse modo só conseguimos perpetuar o que aconteceu. Agora há que olhar o que existe, o estado a que se chegou, aprender com o passado e recriar, pela imaginação e com a acção, o futuro. Muitos discursos acusatórios só atrasam. Vejamos um exemplo: a escravatura. As tribos que vieram a ser escravas da civilização branca tinham muitas vezes dentro delas, entre si, a prática da mesma. É evidente que numa sociedade organizada tem de haver regras, precisa de prevalecer a ética da defesa dos mais fracos. A nível individual e a nível colectivo. Mas não nos deixemos cegar pelo senso comum, ainda que devamos cultivá-lo, embora sem fanatismo.

Vem todo este arrazoado a propósito da questão da saúde. Em pequenina, no Alentejo perdido no meio da planície, andei ao colo de uma menina curandeira que teria mais uns dez ou doze anos do que eu e que sempre me tratou, como fazia a toda a gente da aldeia, gratuitamente. Depois, já noutras terras, ainda na infância, pelas doenças, a chegada do médico à beira da minha cama com sua bata branca, era sentida como a presença de um anjo. Tenho médicos na família, tenho médicos entre os meus queridos amigos e um profundo respeito pela profissão, assim como a atenção às dificuldades com que hoje trabalham, e não apenas no público. Vejo os médicos nos hospitais, nos centros de saúde, como verdadeiros heróis. Se no público é a falta de meios que impera, no privado observa-se uma enorme pressão sobre os médicos, relativamente ao “rendimento”. Estamos conversados. Poderia aqui contar casos de família e de amigos que num hospital privado foram dados como gravíssimos para intervenção urgente, e uma vez no público os médicos não encontraram nem um pequeno sinal dessa urgência, tendo tratado o caso com normalidade e eficácia. Toda a gente percebe do que se trata. Algo que não tem nada a ver com os médicos, interesses que os ultrapassam. Ainda há pouco tempo uma criança pequenina foi salva de uma intervenção urgente de que não necessitava, aos adenoides, necessitando, sim, dos adenoides de que iria ser privada. Salva por um médico do sistema público, no sistema público. Com isto, e porque não quero tratar este assunto com as ditas gavetas, não pretendo afirmar que sempre assim ocorra; há respeitáveis médicos no privado, conheço alguns. Conseguem manter-se dentro da ética e furtar-se corajosamente a essa pressão, e também no público encontramos falhas médicas, como em todas as profissões. Falo de médicos, falo de enfermeiros, falo de assistentes.

Avancemos um pouco mais. Sabemos de casos que se arrastam pelo público, pelo privado, em tratamentos infindos com medicamentos que umas vezes salvam e outras constituem enorme perigo, e que por fim, acabam por ir parar às chamadas medicinas paralelas. Com sucesso. Nem sempre isso acontece. Também aqui não quero criar gavetas, mas gostaria que começássemos a encarar as enormes possibilidades, com vantagens para a saúde pública, de uma aliança, a nível do sistema, entre as várias práticas. Como existe em alguns países. Mesmo na Europa. Mas o caso da China é o mais patente. Após os tempos da revolução maoista com perseguição às práticas da sua medicina tradicional, principalmente do Chi-Kung, o poder acabou por se render à evidência e tem hoje hospitais e laboratórios onde se faz investigação na vertente natural, onde a medicina tradicional chinesa com as suas acções terapêuticas milenares como a acupunctura, a massagem tuina, a fitoterapia, a dietética e o Chi-Kung, coexiste e colabora com a medicina moderna com tudo aquilo que nós conhecemos, nomeadamente a extraordinária evolução técnica, que traz, contudo, uma perversão, que é o risco de o médico, na sua tradicional observação, na relação com o doente, ficar apagado e esmagado pelas máquinas. O que não acontece nestes hospitais mistos de que falo. Há ainda, na China, outros hospitais, os do fim da linha, para onde vão os casos “perdidos” de todas estas tentativas, ali submetidos quase exclusivamente a práticas de Chi Kung energético puro e duro, e os resultados são qualitativa e numericamente surpreendentes, com percentagem grande de curas e nos outros, melhoria significativa da qualidade de vida. Milagres? Não! A ciência já explica. O problema é que também a ciência ainda está metida em gavetas e com dificuldade em abri-las. Mas vão sendo muitos os médicos no ocidente a frequentar cursos de medicinas paralelas e a usá-las na sua prática, médicos desenganados da sua própria medicina a irem tratar-se nas medicinas não convencionais, escolas de medicinas paralelas, como é o caso que conheço, a ESMTC, a incluir médicos e outro pessoal de saúde entre os seus formandos e entre os seus professores e entre os seus especialistas de medicina tradicional chinesa. De facto, as coisas estão a mudar. Claro que, no interesse dos doentes, terá de haver um reforço da regulamentação pioneira existente no nosso país, regulamentação essa que não pode passar pelo desvirtuamento das práticas tradicionais, pois isso seria retirar-lhes força e eficácia, mas porquê tanta resistência, tanto medo da parte das corporações? É só uma questão de tempo… É claro que algum mérito podemos encontrar nesta resistência, é ela que de algum modo ajuda a alertar para oportunismos. Nesse aspecto, há que agradecer. Mas oportunismos há em todo o lado e não pode ser esse medo a impedir a evolução que só pode beneficiar a saúde pública. A alternativa positiva ao medo e à força da resistência é foi a regulamentação.

Tive, recentemente, um problema nos olhos para que procurei ajuda médica pública e privada. Estava cada vez pior e cada vez mais agressivos os medicamentos. Evito recorrer aos familiares e amigos médicos por saber da sobrecarga a que estão sujeitos. Fui, como paciente, à Escola de Medicina Tradicional Chinesa, onde perceberam, pelos métodos de observação, teoria e diagnóstico da medicina tradicional chinesa, que se tratava do fígado. Uma vez iniciado o tratamento do fígado, passou o problema dos olhos, sem tratamento local aos olhos.

Uma amiga que há dez anos sofria com dores num dos ombros, com imobilização quase total e passagem por muitas tentativas de tratamento convencional, após uma sessão reduziu drasticamente as dores e ao fim de três levanta o braço acima da cabeça exactamente como o outro, e movimenta-o quase sem dores. Faz, agora, uma vida normal, fica a escrever até de madrugada (é escritora), e já não sofre.

Uma outra que aguarda intervenção cirúrgica no excelente serviço do Curry Cabral, mas já não aguentava com dores de meses, braço imobilizado, incapaz da mais pequena tarefa pessoal, dependente para tudo, embora continue a aguardar a intervenção, pois é um caso onde não há a mínima dúvida de que a medicina convencional tem de actuar, passou, contudo, a ter uma qualidade de vida incomparavelmente melhor, com a diminuição drástica da dor através da aplicação das agulhas e outros procedimentos da medicina tradicional chinesa. 

Eu própria, com uma tendinite semelhante a outras anteriores, de há uns anos, que tratei com fisioterapia, do que me sinto muito grata, mas com tratamento de meses, desta vez com a massagem e a acupunctura na mesma escola acima referida, quando saí já estava um pouco melhor, no dia seguinte já fazia tudo, à segunda sessão fiquei bem.

Não sendo especialista, poderia aqui tentar uma explicação à medida do meu fraco saber, acerca do funcionamento deste método tradicional, mas qualquer um pode fazer uma pesquisa. Já há muitos médicos e cientistas falando disto e usando-o em si e nos seus doentes.

Recomendo vivamente a seguinte e excelente reportagem da SIC de há 10 anos atrás:

https://www.youtube.com/watch?v=ElW9-m8AtYI&t=15s

E o seguinte vídeo do Biólogo Bruce Lipton, investigador e professor em Faculdades de Medicina:

https://www.youtube.com/watch?v=O7sf18GCB_U

A Escola de Medicina Chinesa, ali à Estefânia é um pequeno império de saúde no sentido mais nobre do termo, pela autoridade que vem ganhando com os reflexos do seu trabalho e o poder que confere aos alunos e pacientes persuadindo-os e ensinando-os como cada um pode e deve ser responsável pela sua saúde. Pequeno, porque tudo se passa dentro de um belo edifício excelentemente aproveitado, ali a meio da Rua D. Estefânia, que já foi museu dos CTT e Casa do Teatro dos Dias da Água, todo forrado a madeiras nobres, com seu jardim intimista e pequeno lago tranquilizador no centro; mas também império, porque o seu poder se estende a todos os lugares onde chegam os seus alunos, futuros e actuais especialistas  de mtc, e os ex-doentes com os seus testemunhos, como agora senti o impulso de fazer.

Tive recentemente uma lesão da coluna cervical devido a um violento puxão de três trelas, que me fez cair de forma impactante, o que me deixou algumas sequelas, sendo a mais duradoura tonturas quase incapacitantes com certos movimentos da cabeça. No dia seguinte ao tratamento, que é o dia de hoje, antes de escrever esta crónica já mudei o caixote das gatas, lavei o terraço, reguei o jardim, dei de comer aos cães, fiz a cama, apanhei a roupa, tomei banho, vesti-me, tomei o pequeno-almoço, etc, depois de uma noite bem dormida, sem tonturas, quando ontem, até o tratamento tive de receber sentada, porque não suportava a posição deitada, pela sensação de abismo.

Mas recordo, e volto lá, as tantas vezes que o médico de família me aliviou e tratou, a mim e à minha família, e o exemplo do meu dentista que trabalha, não por necessidade, mas pelo prazer que tem em tratar, e isso vê-se na sua prática, no cuidado, na competência, na seriedade, na boa disposição, a ponto de eu quase adormecer na sua cadeira, algo de inacreditável e inexplicável para quem tenha medo de dentistas, e tantos, tantos outros casos, que todos temos para contar. E outros que tenho na família, médicos exemplares de valor e dedicação.

Assim, o que tentei fazer aqui foi abrir gavetas, arejar conceitos, trazer experiências e criar canais de comunicação, como nos casos citados na reportagem acima.

Aos dois anos, a minha filha, com uma anemia séria, não assimilando o ferro, depois de vista por mais do que um excelente pediatra e já encaminhada para transfusões, que não iniciou, teve, ao fim de duas semanas de tratamento homeopático, os seus valores de sangue normais.

Foi a ida com ela, mais tarde, por outras razões, a uma consulta da ESMTC (Escola de Medicina Tradicional Chinesa), que me pôs em contacto com esta medicina e a sua prática de Chi-Kung, que nunca mais abandonei. Por isso, a minha relação com a Escola de Medicina Tradicional Chinesa é antiga e cheia de afectos.

Foi também através de indicação desta Escola, também formadora de veterinários nos princípios da medicina Tradicional Chinesa, que a minha cadela resolveu, há uns anos, um problema de pele que não passava com tratamento nenhum.

Iniciada em 92, hoje possui um centro de consultas individuais de manhã e de equipas à tarde, havendo em cada dia uma equipa diferente e cada equipa liderada por um professor ou professora diferentes, tendo com eles assistentes e estagiários, e alunos em final de curso que dura cinco anos, mais estágio em hospital chinês. Além desta vertente terapêutica, oferece cursos temporários de vários tipos de massagens e outras terapêuticas, aulas de Tai-chi e Chi-Kung, e, como centro e coração de tudo, a Escola, onde os alunos aprendem desde anatomia e fisiologia com médicos, às técnicas específicas da medicina tradicional chinesa, como dietética, meridianos, plantas, massagem energética, Chi-Kung, técnicas de diagnóstico…

Volto aos milagres: as pessoas que aí são tratadas quando ali aparecem já em estado de desânimo e começam a melhorar e muitas vezes se curam, usam frequentemente a palavra milagre. Mas não se trata disso. Para além da competência e do profissionalismo e dedicação que também podemos encontrar na medicina convencional, esta medicina vai à causa do distúrbio e é aí que vai agir. Não se pode tratar uma árvore com raízes doentes cortando-lhe as folhas. Tem de se ir às raízes. É claro que casos há que requerem intervenção hospitalar, tratamento convencional, onde a lesão já não é tratável de outra maneira, ainda que numa segunda fase possam recorrer à MTC para equilíbrio do sistema, pois sabemos como a medicina convencional ainda é, tantas vezes, invasiva e localizada. Segundo a medicina tradicional chinesa, é necessário harmonizar energeticamente o corpo, através de desbloqueamento e da comunicação entre meridianos. Bruce Lipton, o cientista acima referido, fala em cooperação. Somos saudáveis e íntegros porque todas as nossas células cooperam umas com as outras. O problema é que nós não cooperamos com elas e por vezes a nossa própria medicina, já em desespero de causa, porque a medicina ocidental é uma medicina do desespero, é a luta que traz como tratamento, por aquilo que retira, por aquilo que introduz. E por vezes também salva. Apesar de nós, que somos, normalmente, o grande obstáculo. A medicina convencional será assim enquanto o ser humano transportar a luta dentro de si. Tudo é uma projeção da humanidade. Daí a importância da medicina tradicional chinesa: o apontar de caminhos para o equilíbrio, a autonomia e o bem-estar integral, que inclui o corpo, mas não se fica por aí. Não é por acaso que a medicina convencional já começa a dar alguma importância aos aspectos psicológicos, ao paciente como um todo animado, isto é, com alma, e não como um puzzle inerte composto de peças a tratar uma de cada vez. As coisas estão a alterar-se, lentamente. Que este texto possa contribuir, de alguma forma, para trazer algum esclarecimento, ou seja, alguma réstia, por pequena que seja, de luz. Sendo, também, uma forma comovida de agradecimento a todos os que, onde quer que estejam, labutam pela saúde integral da humanidade e do planeta.

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domingo, 12 de fevereiro de 2023

Agostinho da Silva, Um pensamento tão cheio de vida

No dia 13 de fevereiro assinalam-se os 117 anos de nascimento do Professor Agostinho da Silva


Naquela Ilha dos Amores

que sonhou Camões outrora

só entra e fica liberto

quem lá viva desde agora 

(Agostinho da Silva, Quadras Inéditas, p.72)












 

Travessa do Abarracamento de Peniche, Nº7, onde Agostinho da Silva morou nos últimos anos de vida

Agostinho da Silva é um dos precursores da conceção de um Projeto Lusófono que junte países e comunidades, ideia que, de alguma forma, acabou por se materializar em 1996, com a criação da “Comunidade dos Países de Língua Portuguesa” (CPLP). O Professor, porém, não se fica exclusivamente pela língua portuguesa, e como a considera irmã do castelhano, tal como das outras línguas ibéricas, sugere que se parta para a construção de uma confederação ibérica que partilhe objetivos comuns dando, assim, maiores possibilidades ao Projeto.

Para Agostinho, esse referido espírito peninsular medieval ter-se-á reaberto de novo em Portugal no século XX, centrado em dois movimentos simultaneamente complementares e opostos, como terão sido a “Renascença Portuguesa” e a “Seara Nova”, nas suas palavras, “o primeiro, sobre o signo da saudade, o segundo, sobre o signo da ação”.

Por outro lado, segundo ele, a ideia de “sacralização” do mundo que se amplia a partir da Península Ibérica com a Expansão Ultramarina, está bem marcada nalguns autores portugueses, como são, particularmente, os casos de Luís de Camões nos “Lusíadas” e do Padre António Vieira com a sua ideia de “Quinto Império”, ideia esta que é retomada por Fernando Pessoa com renovados contornos.

Como diz Fernando Pessoa, um Império que será o “quinto”, porque fundirá os outros quatro que anteriormente existiram (grego, romano, cristão e europeu), de dimensão mundial e universal, com uma nova religião que sairá do cristianismo, mas que o transcenderá, e que o poeta designa de “Paganismo Superior” ou, para utilizar expressão de Agostinho, de “Politeísmo Supremo”.

Eis, então, a proposta essencial a que Agostinho chega que vai defender e desenvolver vida fora: O Império enaltecido na “Ilha dos Amores” dos Lusíadas, prosseguido por Vieira e por Pessoa, será um império verdadeiramente “católico”, quer dizer, de acordo com a etimologia da palavra, universal, e caracteriza-se pelo advento da Idade do Espírito Santo, o consolador da esperança humana, tal como profetizara o evangelista S. João e idealizou o abade italiano Joaquim di Fiore. Em síntese, o “quinto império”, o império do Espírito Santo, um império de amor e de serviço.

Este Deus consolador que se refere é aquele que Cristo revela, a quem Agostinho reza na igreja, mas que não é o Deus das igrejas, antes o Deus que as une e paira acima de todas. É um Deus a que podemos chegar se atingida a verdade. Um Deus íntegro, total, paradoxal, tudo e nada, imanência e transcendência, que junta tempo e eternidade, sem separação de bem e mal, de homens e animais, de tudo o que existe. Um Deus que é, antes de mais, inefável, e é silêncio, que é alogos e não logos, onde ciência e filosofia, “saudades disfarçadas em raciocínio”, devem ajudar a atingir, mas não podem definir.

Numa fase de maior amadurecimento filosófico Agostinho da Silva, ao “catolicismo” de Vieira e ao “paganismo superior” de Pessoa, vai acrescentar uma dimensão orientalista a que se juntam, de maneira mais evidente, taoismo e budismo que passam a constituir os princípios filosóficos orientadores da desejável fusão ecuménica, sincrética, que dê, de novo, “novos mundos ao mundo”. 

Em síntese, uma ideia de religião onde caibam todas as religiões, mas também ateus e agnósticos, desde que à partida saibam aceitar todos os outros como se de si próprios se tratasse; uma ideia de país e de mundo, onde através da educação se possa propor e ajudar a construir na terra um “reino do divino”, ou seja, uma organização social que se caracterize por uma dimensão de serviço do bem comum, onde todos os homens possam velar por todos os homens e não pelo desenrasca de só alguns; afinal, uma ecuménica fraternidade espiritual em templo de paz global que é, ao mesmo tempo, um templo iluminado no interior de cada um.

Luís Santos

(breve síntese do livro Agostinho da Silva: Filosofia e Espiritualidade, Educação e Pedagogia. V. N. de Gaia: Euedito, 2016)

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2023

“Literatura: o pão nosso de cada dia” (XI)

Luís Souta

A ANTROPOLOGIA QUESTIONA-SE

No nosso anterior artigo, nesta rubrica, a propósito da relação oralitura vs literatura / cultura popular vs cultura erudita, iniciámos o questionamento de três “ortodoxias” fundadoras da Antropologia que andam em torno (i) do objecto, (ii) do trabalho de campo (iii) da sincronia. Depois de abordamos as referentes ao “objecto”, hoje, centramo-nos nas outras duas.

(ii) Quanto ao trabalho de campo: segundo Maurice Godelier «a nossa disciplina foi construída em torno de um método, a observação participante, que postula a imersão mais ou menos longa de um observador (normalmente um estranho) no grupo observado.» (1992:104). A reputação e prestígio da Antropologia advém-lhe muito da originalidade e eficácia desse método – o trabalho de campo através da observação participante e, como corolário, a comparação das formas culturais (semelhanças e diferenças entre grupos). Como relembra Robert Rowland, a Antropologia, no conjunto das ciências sociais, é aquela «que mais directamente levanta problemas relacionados com a possibilidade e com as implicações da comparação» sendo que «a comparação, explícita ou implícita, desempenha ela própria um papel determinante na constituição do seu campo analítico» (1998:103).

O trabalho de campo implica a partida para um «terreno», onde se privilegia o contacto com a realidade, em que se procede à observação directa de práticas e comportamentos humanos, se fazem entrevistas (os anciãos foram, durante largos anos, os preferidos), se recolhem documentos, se procura viver com (e como) o grupo, procurando reduzir, o mais possível, a distância e o carácter alienígeno de que vem de fora, em regra, de outro continente. O distanciamento na observação e análise e o olhar exterior, face a uma realidade estranha, fazem da distância «a condição por excelência do conhecimento etnográfico». O método antropológico decorre igualmente de dois outros factores caracterizadores das sociedades tradicionais: a ausência de documentos escritos e a sua dimensão, o que obriga, por um lado, a um contacto directo com as populações e, por outro, permite o seu estudo global. Daqui decorrem as grandes mais-valias antropológicas: a experiência cross-cultural, a perspectiva holística, e um conhecimento mais “subjectivo”1 por uma entrada mais personalizada dentro do universo estudado.

O projecto de construção de uma «etnologia europeia», por que se tem batido o antropólogo francês Isac Chiva, coloca novas questões metodológicas pois «o terreno europeu é muito mais complicado que o terreno dito exótico, pela dimensão e pela sua história»2. 

Marc Augé

No entanto, uma ciência não é o método, e hoje, com o primado do ecletismo e da multi/inter/trans/ disciplinaridade, ainda menos. Marc Augé considera mesmo que a «questão das condições de realização de uma antropologia da contemporaneidade deve ser deslocada do método para o objecto» (1992:47).

No seio na nossa comunidade científica, é conhecida a linha divisória entre quem é ou não antropólogo, de facto, essa linha é a «experiência iniciática» (Rowland, 1998) da prática do trabalho de campo (e quanto mais prolongada a estadia, e maior o afastamento geográfico, mais estatuto se aufere). Os outros, os excluídos por esta tirana “espada de Dâmocles”, chamam em sua defesa a autoridade de Edmund Leach e da sua célebre frase «a antropologia é o que fazem os antropólogos».

No processo de “ocidentalização” disciplinar, acima referido, a Antropologia optou naturalmente pelas comunidades «acústicas», onde a ausência de documentos escritos era um dos seus traços distintivos (o analfabetismo secular, entre nós, era propício a essa démarche). Nessa aventura «romântica», pelo interior do país, descobre-se o folclore, recolhem-se os artefactos, compilam-se lendas, costumes e tradições. Ficámos com a «literatura oral»: os mitos, os provérbios, as adivinhas, os contos, as cantigas e lengalengas (sempre adjectivadas de popular), aquilo a que Bernard Mouralis (1975) chama As ContraLiteraturas ou que Arnaldo Saraiva (1975, 1980) designa de Literatura Marginalizada. E assim, lá estava o capítulo obrigatório em qualquer monografia funcionalista dedicado à oralitura. Também aqui, estamos numa área que deu o que tinha a dar. O analfabetismo é residual, ainda que baixando a um ritmo lento, circunscrito a nichos etários e reduzido à escala da “extinção”; a sociedade do conhecimento e da informação avança, pelo que a escrita é incontornável para os antropólogos (como Jack Goody o demonstrou).

(iii) Quanto à sincronia: os antropólogos têm privilegiado a dimensão sincrónica e recorrido à dimensão diacrónica de forma pontual, esporádica e acessória, quer pelas genealogias e histórias de vida (Raúl Iturra, Ricardo Vieira) quer pelos que ensaiaram uma História Antropológica (Randles, Wachtel, Rowland…).

Em suma, temos andado mais pelo “local” (comunitário, de preferência), o nível micro, o estudo de caso, o tempo presente. Ora o alargamento temporal das análises é um ganho considerável na compreensão de realidades culturais dinâmicas. Não podemos continuar a ser só “fotógrafos” sociais na era do multimedia.

O trabalho que temos vindo a desenvolver – em torno da escola e de uma minoria étnica –, tendo por centro as obras literárias de escritores portugueses, procura ultrapassar alguns dos limites que estas três “ortodoxias”3 estabelecem. Não partilhamos a ideia de que o texto literário é “propriedade” intelectual exclusiva dos da Literatura. Não há, na procura do conhecimento e na compreensão aprofundada dos fenómenos, “quintais” de exclusividade. Nada do que é produto do Homem nos deve ser alheio, e muito menos a literatura por se tratar de uma das mais importantes (e constantes) realizações do ser humano.

Por exemplo, o estudo sobre a diversidade da escola e dos processos de aprendizagem, a partir da literatura portuguesa dos séculos XIX e XX, inscreve-se numa vertente da Antropologia da Educação. Necessariamente que a “deslocamos” do campo tradicional, físico, concreto, real, observável, para uma outra materialidade, de contornos mais diluídos, de realidades mais difusas – o campo ficcional. Quer por uma via quer por outra estamos perante “representações”, produtos historicamente construídos, onde a marca do autor (seja ele o antropólogo ou o escritor) se faz sentir. As culturas não são “objectos” científicos, isolados, neutros, verdades em si.

Por outro lado, não se pode dizer, com rigor, que haja nesta investigação em particular (em que a escola está no seu centro) ausência de trabalho de campo. A minha vida no terreno da educação é bem longa: 16 anos como estudante e 43 como professor (em diferentes níveis de ensino); o que equivale a 59 anos! Ou seja, desde que entrei na 1ª classe que, praticamente, nunca mais saí da escola… até ao dia da minha aposentação. Trata-se de uma “modalidade” de trabalho de campo com algumas especificidades – auto-etnografia (Menely & Young, 2005) –, num sector onde tenho vivido intensamente e sobre o qual tenho reflectido, investigado e publicado. Creio, que essa continuada permanência no “campo”, me dá um capital de conhecimento e experiência valiosos para a compreensão, descodificação e análise das obras literárias com temas de ensino e cuja pesquisa se iniciou há umas três décadas. Mais tardia foi a entrada no “terreno” literário, o dos escritores (1998). No seu conjunto, são muitos anos próximo dos “objectos” de estudo… Como diz Pierre Erny, a fechar o seu livro Ethnologie de l’éducation: «A chacun son style e sa méthode, et en dernière analyse on juge les arbes aux fruits qu’ils portent» (1981:196).

Pierre Bourdieu

Um trabalho deste tipo lança a Antropologia nos trilhos da cultura erudita e da diacronia. Ambas menos acarinhadas, ou mesmo evitadas, pelos antropólogos, porque, em certa medida, “alheias” à especificidade fundadora da disciplina. Não se pretende, de modo algum, pôr em causa um percurso e uma história de uma disciplina científica – frágil, cultivada em nichos académicos, com dificuldades em impor a sua utilidade social – mas que, e talvez por tudo isto, tem as suas âncoras, as suas seguranças, os seus “clássicos”, que deram provas de eficácia e reconhecimento. Correm-se riscos quando se opta por desbravar veredas em vez de ir por caminhos conhecidos e seguros mas Bourdieu já alertara para esses riscos: «A ruptura que é preciso operar para fundar uma ciência rigorosa das obras culturais (…) implica uma verdadeira conversão da maneira mais comum de pensar e de viver a vida intelectual, uma espécie de épochè da crença comummente concedida às coisas da cultura e às maneiras legítimas de as abordar» (1992:216).

O material literário tem essa dupla potencialidade, o de conjugar o racional e o afectivo numa escrita reflexiva que encoraja os investigadores sociais a alargar e aprofundar o conhecimento e o saber, sem tabus de fontes ou de métodos. Por isso, reclamamos uma heterogeneidade nos métodos, técnicas, fontes, e suportes… Queremos uma antropologia ousada na procura de novas fronteiras, novas temáticas, novas abordagens. 

Notas

1. Lévi-Strauss considera a antropologia social como, provavelmente, a única ciência, «a fazer da subjectividade mais íntima um meio de demonstração objectiva» (1973:23).

2. “O património etnológico é uma noção inovadora”, entrevista de Isac Chiva ao Expresso, 11/05/1996, p. 120.

3. Temos bem presente o pensamento de Miguel Torga: «Não existem heterodoxos fora das ortodoxias» (1976:74).

Referências

AUGÉ, Marc (1992) Não-lugares: Introdução a uma Antropologia da Sobremodernidade. Venda Nova: Bertrand Editora, 1994.

BOURDIEU, Pierre (1992) As Regras da Arte: Génese e Estrutura do Campo Literário. Lisboa: Editorial Presença, 1996.

ERNY, Pierre (1981) Ethnologie de l’éducation. Paris: PUF/ l’éducateur, nº 73.

GEERTZ, Clifford (1988) “Estar lá, escrever aqui”. Diálogo, nº 58, vol. 22, nº 3, 1989, pp. 58-63.

GODELIER, Maurice (1992) «“Espelho meu, espelho meu…” O papel da Antropologia no passado e no futuro: uma avaliação provisória». Ler História, nº 23, pp. 101-116.

MENELEY, Anne & YOUNG, Donna J. (2005) Auto-Ethnographies. The Anthropology of the Academic Practices. University of Toronto Press / Anthropological Theory and Methods.

MOURALIS, Bernard (1975) As ContraLiteraturas. Coimbra: Livraria Almedina/ C. Novalmedina, nº 31, 1982.

ROWLAND, Robert (1998) “Além da diferença”. Leituras – revista da Biblioteca Nacional, nº 3, Outubro, pp. 103-8.

SARAIVA, Arnaldo (1975) Literatura Marginalizada. Porto.

SARAIVA, Arnaldo (1980) Literatura Marginalizada: novos ensaios. Porto: Edições Árvore.