Luís Souta
Questionar a
escola
PERSPECTIVAS DA
ANTROPOLOGIA DA EDUCAÇÃO
«A escola parecia-lhe bastante
néscia, local onde geralmente insistiam no desinteressante,
escamoteando tudo o que pudesse ter
um brilho de fascínio ou utilidade.»
(“O companheiro sinistro” in Os
Sensos Incomuns, Maria Isabel Barreno, 1993:62)
Outras razões
se podem avançar como explicativas para o não cumprimento da escolaridade
obrigatória de 12 anos. Com a crescente massificação na entrada, coube ao insucesso
escolar a função de manter a selectividade do sistema. A escola continuava fiel
à sua génese: «criada para desnivelar as diferenças entre seres humanos»
(Iturra, 1995:99). A instituição escolar não deu mostras de adaptabilidade à
heterogeneidade dos novos públicos, portadores de culturas e estilos de vida
bem distintos dos há muito dominantes no ensino. Exigiu-se, pelo contrário, a
descaracterização cultural dessas crianças e jovens. A assimilação era o
objectivo. A escola massificadora pautava-se por uma matriz estandardizada, unificadora
e de rejeição das diferenças, fossem elas de género, classe social, étnicas, religiosas,
linguísticas ou outras. Aos alunos exigia-se a aceitação do intocável modus vivendi
escolar. Nesta perspectiva, os saberes de que os alunos eram portadores eram
ignorados e depreciados, pois desconsiderava-se toda essa vivência exterior ao
aprendizado escolar. As relações com o meio e, em particular, com as famílias
eram evitadas. A escola fechada e centrada sobre si, auto-suficiente, era um
“bunker” para a transferência livresca do saber letrado, abstracto e
descontextualizado. No essencial, mantinha os traços fundadores e, naturalmente,
continuava a “produzir” um tipo de aluno – o homo scholaris – que,
também ele, não se distinguia das gerações precedentes. Hábitos, comportamentos
e valores reproduzem-se, num processo de ensino e aprendizagem marcados pela
continuidade e conservadorismo. De facto, a escola pouco tem mudado. O discurso
político, dos líderes pedagógicos ou dos reformistas vai-se alterando (ainda
que ao ritmo do “pêndulo oscilante”), mas a retórica e o texto legal não se
podem confundir com a realidade das práticas escolares, que a observação
participante e a literatura revelam como estáveis.
É no quadro de
alargamento da escolaridade a populações que tradicionalmente dela estiveram
arredadas e dos problemas daí decorrentes – insucesso e abandono – que a Antropologia
da Educação emerge com um importante contributo para a compreensão destes fenómenos.
Historicamente, a Antropologia esteve próxima destes novos destinatários do “civilizacional
bem educativo”, fossem eles (e/i)migrantes, gente rural, piscatória ou de grupos
sociais mais ou menos marginalizados pelo desenvolvimento e pelo urbanismo. O conhecimento
dessas culturas tinha sido, em certa altura, a razão de ser da disciplina antropológica.
Foram o seu objecto de estudo privilegiado. As formas como adultos e crianças se
relacionam e partilham a vida, em contextos informais de aprendizagem quer as experiências
quer os saberes necessários à manutenção e reprodução da vida do grupo, foi dos
aspectos que mereceu particular interesse por parte dos professores. A escola
começava agora a questionar-se. Os seus ancestrais pilares eram postos em
causa. O problema não estava tanto na criança (e no seu grupo doméstico) a quem
era detectado um “défice cultural” mas na estrutura, organização e práticas
curriculares da própria escola.
«Lembro-me de
pensar: “Como é que é possível que crianças tão criativas, tão observadoras,
tão prontas a fazer perguntas e a defender as suas ideias tenham tão maus resultados
na escola” E lembro-me de chegar à conclusão que era a escola que estava errada
e não elas. Em muitos casos, aliás, ainda está.» (Elvira Leite e a sua
experiência com os miúdos do Bairro da Sé, no Porto, em 1976-77).
Reconhecer que
também estes jovens eram portadores de um «capital cultural» e de formas
próprias de entender e dar significado ao mundo real foi o princípio da mudança
que ao respeitar a iden tidade do “outro” lhe atribui capacidades para um
percurso de sucesso no seio escolar. Para tanto, a escola teria que repensar a
sua escala de valores, abandonar a sua «cultura social de discriminação»
(Afonso, 1998:272), legitimar um conjunto de saberes práticos que este tipo de
alunos eram detentores e diversificar os métodos de ensino no sentido de uma
maior individualização. Articular esses
dois mundos – o escolar e o de origem dos alunos – passou a ser um objectivo de
acção educativa, agora já numa lógica de «escolapara todos» a que, alguns, apelidam de «inclusiva». Os professores passam
então a percepcionar o «meio» como uma recurso potenciador de aprendizagens
significativas para os seus alunos e a ele recorrem como fonte de conhecimento,
“laboratório” social e terreno pedagógico. Já Rui Grácio (1963:120-1) propunha:
«Uma óptica que
alargasse o campo de visão, da aula até ao pátio da escola e ao lar do aluno, e
discernisse nestes três personagens que habitam uma só personalidade, repartida
entre as obrigações familiares, discentes e de camaradagem.»
E é neste novo
quadro, de contacto directo com o «meio social envolvente», onde a aproximação
às famílias ganha outro sentido para além da instrumental colaboração pedagógica,
que a Antropologia da Educação evidencia toda a sua utilidade científica e metodológica.
Tal como o
exprime Telmo Caria «a etnografia cria condições para entender a cultura do
outro» (1999:27). A abordagem directa, personalizada e continuada junto das
populações permite conhecer as culturas em presença, na sua globalidade. O
conhecimento desses saberes particulares
possibilita a compreensão daquilo a que Raúl Iturra (1990) designa como a «memória
cultural» dos jovens estudantes, marcada pela genealogia, pelo local e pelasexperiências
do agir quotidiano. Na “posse” de tal conhecimento (que as histórias de vida mais
facilmente possibilitam), o professor saberá então articulá-la com a «memória
nacional», de que a escola é depositária. E deste modo o aluno deixa de ser
esse ente anónimo para passar a ser visto pelos professores como pessoa,
portadora de uma cultura. O desencontro entre o que e o como se ensina e o que e o como
aprende tende assim a ser minimizado. Utopia? Apenas o caminho que a
Antropologia da Educação tem vindo a desbravar.
A
aprendizagem no lar
Qualquer grupo
social precisa de transmitir a sua experiência e o seu saber acumulados no
tempo às novas gerações. Nisso reside a condição básica da sua continuidade
histórica. A aquisição desses saberes fez-se, durante séculos, de uma forma
informal, no seio de um grupo doméstico
alargado, pela observação, acompanhamento e contacto directo, permanente e continuado,
dos mais jovens em todo o desenrolar das múltiplas actividades que os adultos(pais,
avós, irmãos,…) protagonizavam. Nas sociedades agrárias, de tradição oral, os
saberes pragmáticos do quotidiano agro-pastoril transmitem-se de forma directa
no trabalho compartido de adultos e crianças. «Ver fazer e ouvir dizer são a
base do seu envolvimento» (Iturra, 1990:121). Gradualmente, as crianças vão
sendo solicitadas à participação nos trabalhos caseiros, nas actividades de
produção, religiosas e de lazer. Num primeiro momento, fazem-se pequenos
serviços, simples ajudas, bastantes “recados”; aprende-se mais na rua com os
amigos e os companheiros, em jogos, brincadeiras, e num conversar constante.
Nestes grupos de crianças, apesar de as diferenças etárias não serem
acentuadas, há sempre os “mais velhos” que acabam por assumir papéis de
liderança e de “mestres”; a experiência do que já se fez, no cumprimento das
normas ou na sua transgressão, e do muito que se (ou)viu fazer aos adultos (em
público ou numa privacidade “violada”), são um capital reconhecido entre os pares.
Mas a brincadeira está sempre sujeita a ser interrompida, a qualquer momento,
pela intervenção do adulto. Basta que o chame, para um trabalho a que é preciso
dar cumprimento imediato. Vai, contrariado, mas vai. O adulto põe e dispõe,
marca o ritmo da vida da criança. Decide o que ela deve fazer e o que ela deve
aprender. Define o permitido e o interdito. A autoridade de quem deu a vida, dá
o pão e fornece o saber (agrícola ou artesanal), não é questionada. E de um tra
balho pontual, esporádico e ocasional, na infância, passa-se, com o avançar da
idade, ao cumprimento de tarefas específicas de que progressivamente se é responsável
(tratar do rebanho ou cuidar do irmão mais novo, por exemplo). No decorrer dessa
longa aprendizagem, o trabalho faz-se sempre sob tutoria; aprende-se vendo,
fazendo, errando… E logo no momento recebe-se feedback, é-se corrigido,
repreendido ou premiado. Neste processo de endoculturação, a finalidade última
é fazer da criança e do jovem um igual aos outros, torná-lo um do grupo, com os
mesmos princípios, crenças, valores, comportamentos e práticas. Numa educação
não formal que se confunde com a vida real e quotidiana do próprio grupo. Eles
são educados no grupo e para o grupo:
«Sou apenas o
produto/ Do meio em que fui criado» (Este Livro Que Vos Deixo…, António
Aleixo, 1975:49)
António Aleixo
Adquirem a
cultura com os seus «outros significativos» (Spiro, 1998:206). Assim se forma,
o que Spindler & Spindler (1993) designam como “enduring self” (o
sentido de continuidade, a ligação a um passado, a identidade social). Essa é a
herança oral que recebem dos seus progenitores e de toda uma comunidade que
funciona como uma rede de apoio e enquadramento. Quando adultos, autónomos e
independentes, num novo ciclo de vida, espera-se que dêem continuidade à
herança recebida e procedam de igual modo com os seus descendentes. Assim se
garante a continuidade e a coesão do grupo.
Nota
1. “Elvira
Leite. Tudo o que eles queriam era brincar na rua e uma sala para trabalhar”,
Ípsilon, 25/08/2023, p. 8.
Referências
AFONSO,
Almerindo Janela (1998) Políticas Educativas e Avaliação Educacional. Para
uma análise sociológica da Reforma Educativa em Portugal (1985-1995).
Universidade do Minho, Instituto de Educação e Psicologia, Centro de Estudos
Centro em Educação e Psicologia.
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GRÁCIO, Rui
(1963) Obra Completa I - Da Educação. Lisboa: FCG, 1995.
ITURRA, Raúl
(1990) Fugirás à Escola para trabalhar a terra: ensaios de Antropologia
Social sobre o insucesso escolar. Lisboa: Escher/ A aprendizagem para além
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ITURRA, Raúl
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Melford E. (1998) “Algumas reflexões sobre o determinismo e o relativismo
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