domingo, 18 de fevereiro de 2024

"Literatura: o pão nosso de cada dia" (XXIII)

Luís Souta

 LITERATURA NO ENSINO

     «A ingente tarefa de ensinar literatura é a de dar a conhecer por meio da leitura 
o conteúdo e o sentido daquilo que chamamos existência humana» 
(Salvato Telles Menezes, Literatura, 1993:42)

No território escolar, a crise parece também instalar-se. “Acabar de vez com a literatura”[1] e “A literatura morre na escola?”[2] são títulos sugestivos de artigos que prenunciam um certo mal estar, ou pelo menos, o reconhecimento de um domínio que está longe da consensualidade. Tal foi evidente nos dois processos de revisão curricular do ensino secundário, entre 2001 e 2003. Em causa estava o fim da obrigatoriedade d’Os Lusíadas (no10º e 11º anos)[3] sendo a leitura (de excertos!) passada para o 12º, a substituição da disciplina de «Português» pela de «Língua Portuguesa» nos cursos gerais, e o entrincheirar da «Literatura Portuguesa» ao Curso Geral de Línguas e Literaturas[4]. Estas opções tinham como base três pressupostos, ainda que não explicitados: (i) a generalidade dos alunos termina o ensino básico sem o domínio da língua materna; (ii) uma certa desvalorização da literaturacomo propiciadora, por excelência, da formação linguística dos alunos; (iii) restringir a utilidade da literatura apenas àqueles que prosseguem estudos superiores nessa área; (iv) «o ensino se deve aproximar cada vez mais da preparação do estudante para o mundo do trabalho (o chamado mundo das realidades), libertando-o das disciplinas que representam o queaparentemente é inútil (as disciplinas de humanidades)»[5], ou «disciplinas simplesmente toleradas», como as classificava Rui Grácio (1959:122).

Muitos escritores contestaram esta revisão curricular[6] em que a literatura (que já era pouco importante) passava a marginal.

Manuel Gusmão

Manuel Gusmão (2003) alertava para o facto de o «ensino da língua materna, expurgada da sua literatura, reduz a língua a uma função veicular, empobrece-a e pode aproximar-se perigosamente das técnicas específicas do ensino de uma língua estrangeira.» Carlos Ceia chegava a considerar estas decisões curriculares com uma «sentença de morte que é passada ao património literário português» (2001:8), onde o ensino da língua e o ensino da literatura deviam em caso algum ser separados. Nesta mesma linha se posicionava a escritora e jornalista, Alexandra Lucas Coelho (2001) que, em artigo de opinião, considerava que «a rasura da literatura dos programas de língua portuguesa só fará menos pela leitura e pelo amor aos livros.»

Alexandra Lucas Coelho

Por sua vez, António Guerreiro (2003) sintetizava: «A separação entre língua e literatura prevista na proposta leva às últimas consequências uma concepção do estudo da língua materna que a reduz a uma dimensão meramente instrumental, e para a qual a literatura não passa de um empecilho.» Já uma outra voz, muito respeitada nos meios académicos, Vítor Aguiar e Silva (2001), ainda que defendendo, no essencial, as opções curriculares anunciadas pelo ME, sempre ia dizendo: «Sou dos que pensam que a componente literária dos programas devia ser mais densa e mais rica, porque é nos textos literários que as línguas históricas manifestam toda a sua riqueza, toda a sua criatividade, toda a sua beleza, e porque os textos literários, exactamente por serem construídos na língua e com a língua, proporcionam uma modelização e um conhecimento insubstituíveis do homem, da vida e do mundo». A literatura seria, deste modo, o veículo por excelência para a aquisição da «cidadania culta».

Claro que o debate assumiu muitas outras vertentes, onde se esgrimiram argumentos do mais variado teor: desde o tradicional corporativismo por quem toma as deliberações (linguistas vs culturalistas), às opções programáticas (abandono da orientação historicista do programa de literatura e “exclusão” dos clássicos[7]), às abordagens pedagógicas (muito centradas, ainda, em manuais escolares), às potencialidades de leituras complementares ao cânone das obras e autores obrigatórios e que as actividades extra-curriculares (agora designadas de «enriquecimento») podem possibilitar, à inevitável questão da formação dos professores e do perfil específico daqueles a quem cabe, o dever primeiro, de ensinar a língua e a literatura[8], até à falência da eficácia do ensino básico (incapaz de cumprir uma das suas finalidades centrais numa disciplina com um lugar charneira no currículo).

Esta última merece algum desenvolvimento: o Português, a par com a Matemática, tem vindo a ganhar um lugar de destaque no currículo, sendo agora evidente a hierarquização disciplinar. O que até aqui não passava de um currículo oculto – em que as práticas concretas nos estabelecimentos de ensino revelavam a existência de disciplinas de 1ª e de 2ª – é agora, de forma inequívoca, assumido como currículo oficial. Essas duas mega-disciplinas têm presença em todos os anos de escolaridade, com uma alta carga horária, e foram até há pouco as únicas a serem testadas a nível nacional, quer através das «provas de aferição» (no 4º e 6º anos) quer dos exames reintroduzidos (no 9ª ano). Acresce ainda que desde a Lei de Bases do Sistema Educativo (1986)[9] e que agora se reforçou com as «formaçõestransdisciplinares»[10], se passou a responsabilizar todos os professores, e todas ascomponentes curriculares, pela valorização da língua portuguesa. Os resultados, no entanto, são, até agora, no mínimo, insatisfatórios.

Mas este subestimar da literatura, é também uma preocupação sentida ao nível pós- secundário. Carlos Azevedo, ao analisar o lugar da literatura nas sociedades modernas, onde o critério custo/benefício, numa lógica neoliberal de rentabilização e eficácia económica dos “produtos”, coloca a literatura e, muito em especial a poesia, no domínio do “inútil”; consequentemente, «o professor de literatura ou de humanidades corre o risco de ser olhado como o sem-abrigo das universidades, ou até da própria sociedade» (1999:14). O viver quotidiano e pragmático nas nossas sociedades complexas e globalizadas, é muito marcado quer pelo utilitarismo (imediato de preferência) quer pelo totalitarismo científico-tecnológico que tem, pretensamente, as soluções para os mais variados problemas dos indivíduos, dos grupos e das comunidades, numa sociedade que pensa que «se faz a si mesma através da ciência» (Cabral, 2002:1211). E se a isto, acrescentarmos o “reino todo poderoso” do audiovisual, o primado da imagem, e da internet, em simultâneo com uma frequência crescentemente massificada do ensino superior (procurado mais como rampa de lançamento para um emprego e uma carreira do que para se adquirir saber), temos um quadro padronizado, no qual à literatura dificilmente se reconhece algum valor de uso social e muito menos de acesso ao mercado de trabalho.

A versão definitiva – “Documento Orientador da Revisão Curricular do Ensino Secundário” – datada de 10/04/2003, acabou por acolher algumas das críticas então formuladas pelo campo literário: vingou a designação «Português» para a disciplina obrigatória da formação geral; surgiu a disciplina de opção anual «Clássicos da Literatura» nos cursos de “Ciências e Tecnologia” e “Artes Visuais” (mas curiosamente o “Curso de Ciências Sociais e Humanas” não ficou com nenhuma disciplina ligada à Literatura!); e a oferta da disciplina «Literaturas de Língua Portuguesa» (embora só fazendo parte do curso de “Línguas e Literaturas”) deixou de estar dependente do projecto educativo das escolas.

Entretanto, as reformas sucedem-se… E presentemente[11], qual a situação? Temos a disciplina de “Literatura Portuguesa”, na formação específica (10º e 11º anos) do Curso de Línguas e Humanidades [e já não “Literaturas”], e uma disciplina de opção “Clássicos da Literatura” (numa lista de 11 disciplinas e «dependente do projecto educativo de escola») nos restantes três Cursos Científico-Humanísticos. Nada sobre literaturas lusófonas e/ou internacionais! Fechamento completo sobre a realidade literária nacional.

Maria Adresen S. Tavares

Já Maria Adresen Sousa Tavares, em 1986, defendia (para o ensino nas ESE) o oposto: «creio que no âmbito de um corpus literário para a infância não devem caber apenas, nem exclusivamente, obras de autores nacionais – as grandes obras e os grandes autores para crianças são, como se sabe, universais, o mesmo se podendo dizer de certos motivos e temas – nem exclusivamente as obras escritas expressamente para crianças.» Salvato Telles Menezes (1993:119-120), ex-docente da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, situa-se nessa mesma linha: «Embora a literatura não seja uma disciplina específica no ensino primário, a verdade é que constitui (ou deveria constituir) o espírito da aprendizagem da leitura. Todos aqueles que frequentaram o ensino primário e secundário deveriam possuir uma boa orientação literária. Boa orientação: nada mais, nada menos.» É nesse sentido que se aponta em Espanha (Junta da Andalucía), onde a minha neta frequenta o 1º ano da Educação Primária, ano lectivo 2023-24 (Mijas Costa - Málaga): na sua ficha de avaliação de 1º período, uma das sete áreas de aprendizagem designa-se “Lengua Castellana y Literatura”. Por cá, esse 2 em 1, nem no Secundário![12]

Um dos grandes problemas do sistema educativo nacional, sempre residiu num certo autismo dos responsáveis do respectivo Ministério. E não é de agora. Recordemos Os Maias (1888):
«– Ó Ega, quem é aquele homem, aquele Sousa Neto, que quis saber se em Inglaterra havia também literatura?
Ega olhou-o com espanto:
– Pois não adivinhaste? Não deduziste logo? Não viste imediatamente quem neste país é capaz de fazer essa pergunta?
– Não sei… Há tanta gente capaz…
E o Ega radiante:
– Oficial superior de uma grande repartição do Estado!
– De qual?
– Ora de qual! De qual há-de ser?… Da Instrução Pública!» (p. 402)

Já Rui Grácio, num texto de Abril de 1959 em que criticava o lugar da literatura portuguesa contemporânea no ensino secundário, constatava «o carácter ainda sumptuário das letras e das artes [e] a feição estreitamente pragmatista do ensino» onde domina(va) «a inflação da análise gramatical e a dominância de critérios historicistas na articulação dos programas de Português e de Literatura Portuguesa».

Notas

1. Carlos Ceia “Reforma curricular no ensino secundário: acabar de vez com a Literatura”, JL/Educação,16/05/2001, pp. 8-9.
2. Leonel Cosme “A literatura morre na escola?”, a Página da Educação, Julho 2001, p. 30.
3. Esta proposta parece assentar nas conclusões do estudo realizado pelo Observatório das Actividades Culturais: «ao prescrever obras de leitura obrigatória», fecha-se aos jovens estudantes «todo um universo a descobrir».
4. O documento “Linhas orientadoras da revisão curricular”, apresentado pelo ministro David Justino, em 21/11/2002 e que esteve em discussão pública até Janeiro de 2003, (i) manteve a «Língua Portuguesa» como disciplina da componente de formação geral obrigatória em todos os cursos do secundário, e (ii) acentuou ainda mais o “apagamento” da Literatura: a disciplina (bienal) de «Literatura Portuguesa» passou a opcional, na componente de formação específica, mesmo no curso de “Línguas e Literaturas” e a leccionação da disciplina «Literaturas de Língua Portuguesa», para além de ser também uma opção (em 4 cursos do 12º ano), fica dependente da disponibilidade das escolas. Cf. JL/Educação, 05/09/2001, pp. 1-6 “A revisão curricular do Secundário”.
5. Nelson de Matos “A literatura e o ensino da língua”, DNA, nº 344, 05/07/2003, p. 41.
6. Público, 25/01/2003, p. 30 “Escritores Contestam Revisão do Secundário”.
7. O debate centrou-se, naturalmente, sobre o ícone literário nacional – Camões e o ensino/aprendizagem d’Os Lusíadas. Rui Grácio falava-nos do «rancor juvenil pelos clássicos».
8. Cf. de Carlos Ceia: “O ensino do Português: o papel dos professores”, JL/Educação, 26/12/2001, p. 8 e “A má fortuna da língua e da literatura portuguesas”, Público, 09/11/2003, p. 34.
9. Artº 47º nº 7 da Lei nº 46/86 de 14 de Outubro. D.R. nº 237, I Série.
10. Artº 6º dos Decretos-Lei nº 6/2001 e nº 7/2001 de 18 Janeiro, D.R. nº 15, I Série-A. Reorganização curricular do ensino básico e do ensino secundário.
11. Decreto-Lei nº 139/2012, de 5 de Julho, alterado pelo Decreto-Lei nº 91/2013, de 10 de Julho e pelo Decreto-Lei nº 176/2014, de 12 de Dezembro.
12. No programa de Português do 5º ano do ensino básico, na «operacionalização das aprendizagens essenciais», domínio da Educação Literária, prescreve-se «Ler integralmente textos literários de natureza narrativa, lírica e dramática (no mínimo, um livro infanto-juvenil, quatro poemas, duas lendas, três contos de autor e um texto dramático – seleccionados da literatura para a infância, de adaptações de clássicos e da tradição popular)» [sublinhados nossos].


Referências

AZEVEDO, Carlos (1999) “O Lugar da Literatura”. Línguas e Literaturas, revista da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, II Série, vol. XVI, pp. 9-22.
CABRAL, João Pina (2002) “Novas articulações universitárias – pós-graduação, investigação e massificação do ensino superior”. Análise Social, vol. XXXVI, nº 161, pp. 1209-1217.
GRÁCIO, Rui (1959) “A literatura portuguesa contemporânea e o ensino secundário” in Educação e Educadores. Lisboa: Livros Horizonte/ Biblioteca do Educador Profissional, nº 4, pp. 121-7.
GUERREIRO, António (2003) “A literatura exclusa”, Actual-Expresso, nº 1583, 01/03/03, p. 46-7.
GUSMÃO, Manuel (2003) “A literatura atrapalha o ensino da língua?”, Actual-Expresso, nº 1583, 01/03/03, p. 48.
COELHO, Alexandra Lucas (2001) “Além da esquerda e da direita”, Público, 27/08/2001, p. 10.
MENEZES, Salvato Telles (1993) Literatura. Lisboa: Difusão Cultural/ O que é, nº 4.
QUEIROZ, Eça de (1888) Os Maias. Lisboa: Livros do Brasil/ Obras de E.Q., nº 5, s/d.
SILVA, Vítor Aguiar e (2001) “O ‘naufrágio’ de Os Lusíadas no ensino secundário”, Público, 01/09/2001, p. 7.
TAVARES, Maria Andresen de Sousa (1986) “Porquê o ensino da literatura nas Escolas Superiores de Educação?”, comunicação apresentada ao Encontro sobre o ensino e a aprendizagem da literatura portuguesa, Braga 30-31/10/1986.

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