quarta-feira, 21 de fevereiro de 2024

DO DIÁRIO DE VIDA DE RAUL ITURRA


Sobre o livro “Misericórdia” de Lídia Jorge


Em Janeiro passado fiz 83 anos, meu querido diário de vida. A minha filha mais nova veio visitar-me desde a nossa linda cidade de Cambridge, Inglaterra, e me ofereceu um William Boyle; três das minhas amigas almoçaram conosco e encheram-me de Ken Follets; a minha mulher, de forma mais concreta, ofereceu-me um Lídia Jorge, era o seu mais recente romance “Misericórdia” que me impactou profundamente. Ela contraria a lenda sobre os lares de idosos ao falar da vida da sua recente falecida mãe num lar da Misericórdia. Construiu uma teia de relações sociais entre a dona Alberti e as suas amigas do lar o que a ajudam a manter a sua mente activa. 

A sua personagem central, essa Dona Alberti, escreve tudo o que vê e faz no seu diário de vida e em notas de papel que guarda e esconde e que a romancista recolhe, lê e elabora. Há um mistérioso facto de uma morte de um velho que namora com outra idosa do lar e que falece no meio da noite no quarto desta mesma senhora. Eles namoravam, contrariando as histórias que existem da falta de sentimentos amorosos entre anciões. A romancista desmonta a ideia de que os adultos maiores não teriam libido, engano de muita  gente. As pessoas mesmo atacadas de senilidade como nos mostra Lídia Jorge, são capazes de estabelecer amizades, simpatias, empatias e amores secretos. Ela salienta o que a sua mãe diz no seu diário, a existência de uma luta incrível entre utentes do lar que vivem segundo a sua lógica senil bem primária que devia ser respeitada, ser tratada com dignidade e os funcionários que aí trabalham que a querem ignorar. Os anciões tem a sua vontade de viver e sua vontade de ser. O desejo de ser pessoa digna existe profundamente nos velhos como salienta Lídia Jorge ao longo do seu livro e como reparo no lar onde moro. Ela também desfaz o mito da alegria que é a vida numa casa de repouso em que tudo estaria feito à medida de proporcionar esta alegria entre os utentes aí residentes. 

Na realidade os funcionários agem como se os anciões fossem parasitas inadequados para vida em sociedade, pensem que de nada se lembram, pensam que não sentem frio, pensam que são entes sem objetivos de vida. Este livro parece ter sido feito à minha medida. 

Identifico-me em tudo o que Lídia Jorge diz fruto da minha experiência de oito longos anos da minha permanência numa chamada casa de repouso, cheia dos gritos dos trabalhadores e dos utentes, das raivas entre eles e do mau entendimento das suas lógicas. 

Também é possível observar como trabalham mais estrangeiros do que nacionais entre as paredes quer da Misericórdia do livro quer na casa de repouso onde eu moro. Estes imigrantes procuram seu primeiro emprego em Portugal mas quando conseguem uma alternativa, fogem do cansaço de mudar fraldas, vestir roupas limpas todos os dias, de lavar as mãos usadas para comer. Essa falta de urbanidade não desejada pelo anciões mas que deve ser tolerada por ser a lógica que reina na vida senil. Lógica estudada mas nunca estruturada para ser ensinada aos trabalhadores sobre o entendimento que devem ter os funcionários acerca do pensamento dos velhos nem para melhorar as suas condições de trabalho. Este livro é o emblema do que deve ser reformulado na atenção das pessoas idosas e das condições de trabalho dos funcionários e de vida dos utentes. Meu querido diário, mais tarde vou referir outros assuntos. O livro de que falo é “Misericórdia”, Lídia Jorge, Dom Quixote, 2022.


Professor Doutor Raúl Iturra, Catedrático Emérito do ISCTE-IUL

Texto editado por Claire Smith, antropóloga.

Barra Mansa, 20 de Fevereiro de 2024.


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