sexta-feira, 30 de agosto de 2024

Do Diário de Vida de Raul Iturra

 

A PERDA DE IDENTIDADE NO LAR


Nem tudo o que acontece no lar, querido diário, é resultado do eterno debate entre funcionários e utentes ao qual me tenho referido nas páginas anteriores. Entramos no lar já velhos, cansados, com uma história de vida marcada pelas nossas relações sociais construídas na interação com os outros. Somos pessoas resultado da nossa vida social, vivemos em nichos definidos pela dita interacção. Nascemos, somos filhos, um primeiro nicho social; se temos pila entramos na categoria de homem, se não, mulher. Desenvolvemos o nosso comportamento imitando os adultos que nos criam, que nos rodeiam, que acompanham o nosso crescimento, sejam eles familiares ou instituições que tomam conta de crianças. Em breve somos estudantes, somos enviados para instituições chamadas escolas para sermos introduzidos à cultura, à mente cultural do estado em que vivemos: somos preparados para sermos cidadãos do país em que nascemos e incutem-nos sabedoria de letras, sabedoria de história, sabedoria sobre o universo em que moramos; incutem-nos também a crença numa divindade e um comportamento religioso que define como agirmos com outros seres humanos; incutem-no sermos pessoas.


Os anos passam, cada época da nossa vida é diferente da etapa anterior: somos aprendizes, somos estudantes, chegamos à idade de amar e sermos amados, à idade de trabalhar e colaborar com a economia social, passamos a ser profissionais. Uma profissão seja letras, ciência ou trabalho direto, que nos introduz à economia, que nos dá salário, casa, emprego. Normalmente encontramos o nosso par, juntamo-nos, acasalamos, passamos ao estatuto de pais, criamos, educamos, orientamos. A nossa atividade muda de etapa em etapa e vamos ganhando uma identidade pela qual somos conhecidos no país de que somos parte. Somos cidadãos com responsabilidade ética, estética e afetiva. É principalmente o nosso papel de pais que define o nosso comportamento como um elo importante do nosso objectivo de vida: não apenas reproduzimos seres humanos, também reproduzimos saber para introduzir os seres humanos que criamos na vida social, como nós também fomos igualmente introduzidos. Sermos pais é o mais importante da nossa vida de interação. O nosso objetivo não é apenas educar, é também amar e ser amado pela geração de pessoas que temos estado a criar. Crescemos, envelhecemos, cansamo-nos. A geração que criamos devia tomar conta de nós e velar por um fim adequado de vida, calmo, tranquilo e economicamente funcional. No entanto, a vida social moderna tem organizado uma interação que retira os mais velhos da responsabilidade social directa e entrega-os a lares que os alimentam, os cuidam, os vestem, definem os seus parâmetros quotidianos.


A nossa identidade muda de sermos adultos responsáveis para sermos outra vez crianças que obedecem a um plano definido de comportamento individual. A nossa vida social muda, deixamos de ser entidades, passamos a sermos indivíduos obedientes.


Já não vou referir o que acontece com os outros colegas utentes do lar em que vivo como tenho feito nos outros capítulos do meu diário mas vou  passar a vasculhar apenas na minha própria vida. Um dia não consegui andar, colocaram nas minhas mãos um andarilho para me apoiar e continuar meu quotidiano como sempre tinha sido. Esta etapa não durou muito tempo: caía na rua, enganava-me nas compras, a minha gestão económica era-me difícil com o pouco dinheiro que me era pago cada mês pela minha reforma, pela mudança das formas do acontecer no quotidiano; entrou na nossa vida pessoal  a internet, os bancos passaram a serem geridos pelo computador, as compras eram feitas em linha, enfim um descalabro que me acontecia após 70 anos de uma construção histórica social liderada por mim próprio e a partir do meu entendimento. As formas de vida mudaram de tal maneira que era necessário uma nova educação para viver de forma autónoma como o tinha feito antes. Confiei que a minha descendência ajudar-me-ia, confiei que a minha descendência explicar-me-ia as novas formas de ação em função da minha nova etapa de vida. Não tive esta sorte. A minha descendência resolveu fechar-me num lar e referir que eu não entendia a realidade, que eu estava doente e não valia a pena explicar-me a nova vida social, e isolar-me do mundo que eu tinha ajudado a construir foi a solução encontrada. Eu próprio acreditei que era incapaz de perceber o mundo atual causado por doença progressiva, seria parkinson e demência vascular tal como me era explicado que doravante era a minha realidade. Felizmente uma médica do lar disse-me: Doutor Raul vamos parar com estas queixas e doenças, vamos diminuir a medicação que toma ao pequeno almoço, almoço, e jantar e a pouco e pouco vai se confrontar com a vida como ela é e não como a sua filha mais velha, a quem foi confiada a sua tutoria, lhe quer fabricar. Perguntei-lhe como iria eu fazer? Com paciência, com calma e boa disposição, respondeu-me a médica, e  quando precisar venha falar comigo para contar-me o que pensa, o que sonha e o que sente.

 

A partir deste momento foi uma progressiva viragem.

 

Assim no lar eu tinha todo o tempo para mim, estava isolado, não tinha passeios, não tinha visita dos meus amigos e colegas excepto o convívio com duas antigas estudantes de doutoramento que não pararam de me acompanhar, alguns passeios com uma antiga amiga de longa data e pelo convívio da minha filha mais nova que me visitava desde do estrangeiro um par de vezes ao ano. Visitas escassas devido à distância do lar do meu antigo local de vida e dominadas pela falta de partilha da vida social ativa.


Como disse antes tinha todo o tempo para mim e pensando como redefinir um convívio com os meus colegas de lar resolvi apoiar quem precisasse cada vez que fosse necessário, andar, ajudar os meus colegas a jogar ao bingo com a animadora cultural, ler livros sem fim o dia todo, escrever o meu diário de vida na sofá que uso, inventar conversas com funcionários amigos que me relatavam o que acontecia no mundo exterior. Raramente ouvia notícias, normalmente nunca aceitei sentar-me a ver televisão. Conseguir ler e escrever foi o meu objectivo de vida. Era difícil convencer as diversas diretoras do lar de como eu queria organizar a minha vida. Fiz-me amigo profundo de uma senhora com quem almoçava, conversava e ria. Esta senhora foi retirada da minha mesa e fui colocado com outras pessoas sendo assim o meu convívio organizado pela direcção do lar, por ordem de quem neste tempo, conforme a lei, era a minha tutora. Tive que lutar e com ajuda de poucos amigos e da minha filha mais nova, mandei o meu grito de ipiranga  recorremos ao tribunal de família e tempo mais tarde fui libertado da minha submissão a uma tutoria que me ia matando. A minha identidade foi recuperada pelo grande esforço e disciplina de vida que organizei no meu dia a dia: acordar às 5 da manhã, tomar banho, escrever e viver o dia entre comidas, conversas, reflexões e música. Tive sorte, e a pouco e pouco tornei a ser o Raul Iturra que eu tinha sido. Comecei a interagir em mensagens e telefonemas com algumas pessoas que quiseram responder às minhas mensagens e chamadas.

 

No lar é mais fácil perder identidade e submeter-se ao que define a direção por ordem da família. Falei com o proprietário do lar e pedi para ser tratado como um velho que não tinha para onde ir e aí morava por falta de acolhimento noutro sítio. O lar submete. O lar manda. O lar ouve a família e não o utente. O utente normalmente tem pouco para dizer e passa a ser como criança como falei nos capítulos anteriores. No meu caso infelizmente entendia o que acontecia e bati-me contra a disciplina e organização do meu tempo por outros. Aceitei horário de comida do lar, mas o meu tempo quotidiano foi por mim organizado: assim me entretive e os nove anos passaram sem eu reparar.

Somos pessoas. Somos adultos, somos pais, somos cidadãos. Tudo isso parece acabar quando se quer manter uma  disciplina no seio de um grupo de adultos que passa o dia a conversar e ver televisão, eventualmente a se entreter com as atividades de animação cultural. Há eleições nacionais, ninguém sabe e ninguém vota, ninguém vai às urnas. Apenas dois de nós temos seguido à risca a planificação política do país. Ninguém sabe o que se passa nem qual será o futuro. O nosso país prescinde das pessoas que moram em lares apenas orientados pelas suas famílias nas quais cada utente confia com profundidade e nos quais tem esperança de os ver outra vez numa próxima visita.


O lar faz perder a identidade de ser pessoa que a sociedade nos incute antes de sermos velhos entrando assim no fim da sua vida sem que saibamos para onde vamos, nem com quem, nem como. Eu gritei, pedi acesso ao tribunal de família e libertei-me do autoritarismo com que a lei manda tratar os velhos do país. Tentei recuperar a minha identidade mas choro pela solidão dos meus colegas que ainda estão fechados no lar sem saber para onde vão até um dia dele sair no seu próprio funeral.



Professor Doutor Raul Iturra, Catedrático Emérito do ISCTE-IUL

Texto Editado por Claire Smith, Antropóloga

Barra Mansa, Agosto de 2024


sábado, 17 de agosto de 2024

Crónicas de Paulo Landeck


EM ÓRBITA

Desejou ter barba de raspar fósforos, e guardar no bolso universal uma pedra de isqueiro para desconsertar improvisado céu em noite escura, quando fugisse novamente de casa para viver nas dunas à beira mar.

Nessa altura, em que tudo se podia e quase nada era ainda permitido pelos pais, - nem mesmo fugir de casa, - sonhou desentortar um dos olhos com o garfo e cuspi-lo até à lua! 

Com um pouco de sorte, deixaria a sua marca em solo lunar. 

Mas...tinha uma dúvida, só uma dúvida: 

não saberia como piscar o olho mais tarde, ciente de que perderia o globo e a dúvida surgiria.

Tinha só esse problema com o olho, o seu olho, uma dúvida, sem o resto do corpo em redor para o chatear...imaginem se fossem duas, problemas a dobrar!

Lá bem ao alto, a singular dúvida persistiria, na direção do berlinde terrestre que reflectia vivo azul e deflectia algo que talvez nem sequer pudesse um dia voltar a vislumbrar; por seu deleite, e por todos os oceanos que o seu olho jamais derramaria, seguro no garfo ou longe de si, admitiu o fracasso da ideia.

Procurou renovar sofrimentos, queria agora polir o fosco iluminado pelo farol. 

Se esquerdo ou direito, não sabia precisar...e ao centro, sobejava o nariz.  

Das três, uma certa, libertou-se da armação devido à condicionada ilusão.

Tanto sonhou e sonhou para não deixar de quebrar óculos...e assim, possíveis fragmentos de janelas e mais janelas perdidas no espaço!

Ainda como consequência, o lume jamais se apagou das páginas bruxuleantes dos muitos livros lidos fora de horas. - Palavra de narrador. - Estava mais do que certo, destinado para toda a vida a sonhar acordado. - E talvez depois da morte fosse uma espécie de sonho ao contrário, quem sabe, livre de pesadelos. Não sei...sonhos e pesadelos sempre andaram de mão dada, pelo menos, na vida real de quem sonha acordado. - 

De nada lhe valeria fugir de casa...ainda que encontrasse seguramente conforto nas dunas de verão à beira-mar.

Naquele tempo, dificilmente existiria céu igual. 

Despertou. 

Pensou então em aprimorar nova técnica de olho posto na ambição. Quem sabe o que dali resultaria, se resolvesse explorar uma outra órbita à procura de familiar globo ocular, desta feita, de faca e garfo. - Nada como a boa educação, nunca sabemos quem pode estar à espreita numa qualquer janela indiscreta. -

Deu por si abraçado a um enorme sobreiro despido, inequivocamente envergonhado. 

Seria por causa do coração da menina gravado à navalhada pelo futuro marinheiro!? 

Faltava-lhe o garfo, afinal. 

Não sabia ainda, se o coração dela palpitaria sequer por tão notável entrega e delicadeza. 

Desconhecidas as contas, não passava de um sonhador preso no espaço, ansioso por regressar à Terra, tremendamente nervoso por avaliar todas as possibilidades de regresso. - 

Tinha visto uma vez em vários documentários, como as impressionantes expedições às florestas virginais, podiam bem começar nos despenteados vasos das varandas, algures pela vizinhança. 

Avencas e fetos até o ajudavam a pensar, mas ali, na zona nascente da serra, só tinha um enorme sobreiro corado, e uma navalha de algibeira para cortar os cotos no lugar das côdeas...-

sem um pé-terra sequer para afogar ansiedade em sumo; e quando assim é, o melhor é aguardar que chova. -

Procurou então novos sinais, de pés bem assentes na terra...para dar com marca pintada cor da neve. Quedou-se incrédulo: próximo encontro marcado com a desgraçada que lhe dera a volta ao miolo, só dali a nove anos!

Como pôde ser tão cruel...não podia ser...

Tinha quase a certeza de estar bem perto das nove da noite, por issso, resolveu esperar mais um pouco.

quinta-feira, 15 de agosto de 2024

TOMAR

 por Luís Santos

CRÓNICAS DE VIAGEM


Convento de Cristo


Uma escapadinha até TOMAR, com paragem na Golegã para descansar.

Em Tomar, coube-nos um quarto com nome inscrito em letras grandes, Ordem do Templo, mais figura impressa na parede do chão até ao teto de Hugo de Payns, um dos 8 fundadores dos “Cavaleiros do Templo ou Pobres Cavaleiros de Cristo e do Templo de Salomão”, como inicialmente se chamaram.

Depois desses primeiros tempos passou a Ordem do Templo e, mais tarde, Ordem de Cristo, com toda a história exposta, bem resumida, na sala de refeições.

Tomar respira Templários por todos os poros, e lá está a demonstrá-lo Gualdim Pais em pedestal, na praça central da cidade. A sua transformação histórica na Ordem de Cristo, D. Dinis, e mais à frente com destaque para administração do Infante D. Henrique, que outra vez foi ao mundo, são flagrantes episódios para uma breve crónica boa de se desenvolver.

Amiúde, pelas ruas, a referência à famosa Festa dos Tabuleiros, que saem à rua de 4 em 4 anos, algures encimados por enorme, significativa, pomba branca.

Por fim, lá no alto, para mais ampliar a consciência, paredes meias com o Castelo, o Convento de Cristo, geometria sagrada, cujas palavras são sempre poucas para o descrever. O melhor é ir ver. Mesmo!

E como foi bom de palmilhar, passo a passo, as ruas de Tomar.