quarta-feira, 26 de fevereiro de 2025

Do Diário de Vida de Raul Iturra

 

A minha família e eu, Diário Amigo...


"...Caralho...onde será que andam estes rapazes...José Luís! Luís Migueeel...! andem cá...! Venham caralho...! O “inri” disse-me que iam andar bem... que o Luís Miguel podia caminhar...puxa onde é que andam estas merdas... Luís Migueel!?! José Luíis!?! Joosé Luís..!! andem cá...! disse-me este senhor, o “inri” como a palavra de Jesus quando estava crucificado…, esse que se senta perto da porta de entrada… que vocês andam na vindima... será...? …talvez este corredor por onde ando me leve para o caminho... Luíis Migueel…!, José Luíis...!! tira-te daí puta... sai do meu caminho sua bêbada... esta é a minha rua...puta... sai...ai!, aí há uma porta...vejo um pátio que de certeza leva-me à estrada que me leva à vindima... José L…, L... Miguel...será que foram à casa da Ivonne... a minha filha ...Luíiis... não pode ser, ela dá aulas... ha! cá está a porta que me tira de aqui... mesmo...vai dar ao caminho onde me disse o senhor que era a vindima… é só um salto... é só andar e rápido porque faz-se noite e vejo mal... meninos!...  a comer pois... onde é que estão meninos?... paparoca!!... vejo pouco ...o sol entrou... caralho... olá, vem aí um carro... vou correr pró mato para não me atropelar... atão... vem aí uma senhora e um senhor... não queero…, não me agaarrem...! que eu não grite? como não vou gritar se me estão a agarrar para eu não ir à vindima ter com os meus rapazes! …o que vão eles cear? não vê que trabalham o dia inteiro e têm fome... largue sua puta bêbada... soltem-me... meus filhos são doentes e vou levá-los à casa... larguem-me digo!... não quero entrar no seu carro... ai caralho... está me a magoar... Luís...Zé Miguel...! …larguem-me os braços... não vou entrar... aí... aí... aí..."                            Foi o que disse a minha amiga magra do lar, enquanto empurrava portas e afastava velhos para fugir da casa de repouso. E foi o que fez com sucesso. Ela foi encontrada pelos funcionários que saíram de carro a correr à sua procura no entardecer, numa tarde de inverno, alarmados e assustados pela sua segurança. Por sorte foi que uma senhora a viu na estrada a andar sem tino e gritar o nome de pessoas, calculou que ela era do lar e avisou-nos. Não era a primeira vez que essa mulher de 94 anos que vivia no lar, sempre em procura dos seus filhos já adultos, mas com atraso mental… zangava-se com todos e fugia para tratar deles... a família colocou-a no lar, mas todos os dias a sua angústia crescia por não os ver. Ela batia nas pessoas todas porque não podia tratar desses adultos doentes, que eram crianças para ela…

Um dia meditava eu, com tristeza, nesta mãe frustrada que procurava os seus filhos, quando ouvi de repente pontapés e golpes na porta do refeitório e um pranto de agonia que interrompeu a minha meditação... "deixem-me entrar ... abrem a porta pois... tenho que ir trabalhar para lavar os pratos do jantar que cozinhei para os miúdos deste jardim de infância...abrem a porta... não sejam maus, devo acabar meu trabalho para esses pequeninos, por favor... se não trabalho como é que posso tomar conta do meu marido... e desses pequenos... abrem...!! por favor!..." dizia a pequena cozinheira de metro e meio de altura que, em desespero, temia não cumprir ao que estava obrigada no seu emprego. A senhora chorava com grande mágoa. Então eu tomei as suas mãos, beijei a sua cabeça e tentei acalmá-la porque sofria mais do que uma senhora idosa como ela podia suportar. Sua sobrinha veio visitá-la como fazia sempre todas as três semanas e desta vez contei-lhe a desventura da sua tia. Ela disse-me que mais nada podia fazer por ela, e já era muito, que a sua tia era uma viúva sem filhos que se tinha fartado de trabalhar para cuidar do seu marido doente e tinha adoecido quando ele morreu… regressando à infância... Por isso, essa pequena mulher ia a todos os quartos à procura de roupa para levar para a casa do seu marido...que a esperava para jantar. Um triste fim de vida para quem contribuiu para o bem estar dos filhos de outros, que na sua esterilidade não foi capaz de conceber. Por isso ela adotava emotivamente os filhos dos outros... que ia perdendo a cada ciclo, nessa elementar ação de os alimentar, o mais humano dos trabalhos… alimentar para manter crianças vivas e felizes! Ó Querido Diário uma luta sem fim, esse anseio desesperado de dar conforto às suas crianças agora imaginárias, esse manter vivo o homem que amava, uma louvável acção aprendida no seu duro lutar pelos outros.

" Anda Esmeralda - essa irmã defunta que ela ressuscitou, senta-te aqui comigo, querida irmã, aquece as minhas mãos pois eu não consigo, dá-me essa manta para me agasalhar antes que venha o nosso irmão João ma tirar e que eu fique com frio… ele vai dizer que já tenho manta nas pernas, para que quero mais... e quê... eu queria outra manta agora para as minhas costas... anda menina, dá já!… que morro de frio... essa manta não é de ninguém, digo-te é minha pois… anda… dá cá mulher... olha! ... repara abriu-se a porta da rua... vamos já fugir com este senhor que a abriu… carago…”. E dizia o velho que abriu a porta “abri a porta não sei como, consegui tirar o fecho de cima... vou correr para treinar à bola o meu plantel... assim continuo ativo para que os meus filhos se orgulhem de mim... dinheiro eles já têm…, trabalho também, falta-lhes ter o prazer de contar com um pai bem conhecido e muito aplaudido pelos outros... vamos minha senhora para o campo da bola?" "Vamos senhor sim com a minha irmã Esmeralda..." "… que bom sermos tantos... tem que me aplaudir muito!..." "aplaudimos Esmeralda?” "Que diz ela senhora..." "Diz que não entende a merda da bola, mas que como vamos fugir juntos vai bater palmas para agradecer..." "Bom então..." "Vamos depressa...?" "...vamos pois, vão gostar de me ver treinar, estou certo..."

Aí parou a aventura que vi e ouvi. Fui calmamente ao gabinete da direcção referir deste projeto de escapada e a aventura cessou... Tinham conseguido abrir a porta e sair para bem deles foram travados no seu intento, mas  desapontados na realidade por eles fabricada. 

Relatos de situações recriadas bem melhores que a que o lar ou as suas famílias fossem capazes de lhes inventar ou sugerir. Para familiares e funcionários do lar eram transgressões por mentes doentes, não uma elaboração feita por seres humanos agora isolados que antes tinham sido habituados a carícias, a ter responsabilidades, dar e receber amor, a ter uma família e que perderam desde o dia que entraram no lar e tiveram que inventar uma alternativa para acompanhar essas emoções vazias. Para a família era um congeminar de mentes doentes, não era entendido como algo que se procura, com essas elementares criações e assim encontrar um amor que já não têm. A pior das faltas num lar. Os velhos são pessoas que amam e tentam recuperar uma vida doméstica perdida com imaginária criação.

Querido Diário, tudo isso é uma atentado contra família, carinho, maturidade e passa a ser substituído com um grande investimento de ternura em seres com atividades inventadas. É difícil entender este comportamento mas parece-me que deveria ser respeitado como um direito de recriar uma família com o aconchego amoroso necessitado por todo o adulto maior... beijos e abraços Diário Querido...se não falo contigo, com quem falo então...?

Professor Doutor Raul Iturra, Catedrático Emérito do ISCTE-IUL

Texto Editado por Claire Smith, Antropóloga

Barra Mansa, Fevereiro 2025


sábado, 15 de fevereiro de 2025

UMA LÍNGUA DE FOGO

Arte de Rua
por Luís Santos


Agarro o pensamento
e paro, por um pequeno momento,
o tempo.

Dobro e redobro o papelinho,
guardo a ideia na carteira,
e espero que a inspiração
dure a semana inteira
Arte de rua em projeto, ou acrescentando palavras às árvores


No espírito da Street Art, relembrando uma fotografia nossa a belíssimo graffiti, feito a partir de fotografia de Augusto Cabrita, por Ricardo Tota

sábado, 1 de fevereiro de 2025

Do Diário de Vida de Raul Iturra

 

A Minha Gorda Amiga

Uma homenagem


É com alegria e sorrisos, meu Diário Querido, que vou-me lembrando dessas conversas de quase nove anos que tive no lar onde resido com a minha gorda amiga, já mencionada por mim nos capítulos anteriores. Gorda como metáfora de uma mulher linda, com cara de porcelana como boneca, lisa, sem nenhuma ruga nos seus 86 anos. Anos que eram celebrados por todos nós no 22 de Abril de cada ano. A senhora alta, esguia, apesar dos quilos a mais que tinha em certos anos, porque desde sempre tem adorado comer. Era bom dente, melhor garfo, eram abundantes as bolachas e chocolates... Uma senhora mesmo senhora, cativante, vestida com roupa que tem tido por hábito mudar todos os dias. Levava mais de uma hora no seu quarto para escolher o vestido que mais assentasse aos seus caprichos do momento. Roupa grossa no inverno, com casacos compridos adequados à cor do fato, sempre com vestidos porque: “as calças são para homens e eu não sou, sou mulher que gosta de atrapalhar homens bonitos com a minha roupa”, gostava ela de dizer e de pôr em prática. Daí as largas horas que gasta em se arranjar e para pentear os escassos cabelos sobreviventes da sua cabeça...ela os pintava...quase cor ruiva que gostava para parecer mais arrumada… Sugeri-lhe, um dia, deixar de pintar o cabelo, ela aceitou e passaram a ser de cor branca, parecendo-se  assim como mulher digna da alta sociedade, como ela gosta de ser classificada. Por norma, esta distinta mulher quer andar com pessoas bonitas e bem apresentadas e por isso mandava-me, ao longo destes anos todos, atar um lenço ao pescoço e colocá-lo dentro da camisa. Mandava-me comer, comer e muito "para que desapareçam as covas da sua cara, Sr. Doutor, para que fique assim mais bonito"...Gosta dessa elegância nos outros. Desde o primeiro dia que partilhamos o lar gostou do proprietário da casa de repouso, um homem jovem, bonito, bem vestido e perfumado. Odor que ela adora. Ela nunca  deixou de me oferecer água de colónia:  “caso o perfume tão bom que usa o Sr. Doutor e que eu gosto se esgote...". Sempre me chama Sr. Doutor e obriga os outros a usarem este adjectivo para falarem comigo. Um senhor Doutor quando não usava “Senhor Professor Doutor que escreve tantos livros”. Tem sido um bom garfo e melhor vestida ainda, mas a falar...fala todo o tempo...calmamente, lentamente, informada, especialmente de bispos e papas, santos e anjos, um saber litúrgico sem igual. Cansava-me tanta palavra, especialmente porque gosto de ler em silêncio. Parar aquilo era só com comédia: fecho o olho esquerdo que ela vê desde o seu sítio enquanto mantinha aberto o direito para ver televisão no tempo em que eu gostava de ver programas. "Está a dormir?.." dizia-me e eu respondo..."Estou a dormir profundamente...", mentia eu e ela aceitava e assim calava-se.  "Que dia é hoje querida amiga?"  “segunda..." "pense bem... ontem veio a sua filha que só aparece aos sábados..." "não me diga que é domingo.." "é..." "atão...há missa.." e eu punha o canal correspondente na liturgia do domingo dos católicos e ela ia orando ao longo do que o oficiante dizia...em profundo silêncio perante os outros ali sentados...e ai dos que falam...!! Recebem um grito de fúria "caluda...é a missa...não se fala...respeito". Ela católica devota, eu anticatólico frenético e militante, passei a respeitar profundamente a sua inabalável fé... ela quase uma santa na sua devoção...e o terço! ai, meu Deus...três ou quatro por dia...era eu o seu coro ou procurava-lhe outros acompanhantes, havia muitos, era só coordenar os que iam rezar com ela, eu organizava e ela gostava da minha iniciativa, contava com ela, era esperada. Aprendi muita geografia de Portugal com as suas histórias de viagens quando procurava velharias que vendia na sua loja na estrada de Sintra, o que sempre gostou de fazer nos trinta e cinco anos de atividade como também aprendi a geografia da sua terra: "Sou da aldeia com ovelhas que eu pastoreava enquanto lia os romances do Camilo (Castelo Branco) e a vida do Santo António, pertenço à freguesia do carvão, do distrito dos antigos escravos que os romanos não foram capaz de conquistar”, ensinou-me ela. Eu agradecia...um par de vezes disse-me que sonhava comigo, eu curioso, queria saber o que sonhava. Ela: "Aí não! É só comigo, tenho vergonha de lhe contar..."...outra vez desafiou-me "o Sr. Doutor comprimenta as senhoras com um beijo e a mim nada..." Lá fui eu, beijei sua bochecha e ela feliz com esse carinho, “...não vou lavar a cara nos próximos dias..."!! Num lar de idosos havia pessoas que morriam, eu sabia e vinha-lhe contar e a minha muito querida amiga rezava terços pelas suas almas durante três dias porque "ele está no julgamento divino e com o terço ajudo-o….". Com a passagem do tempo, a minha maravilhosa amiga emagreceu e passou de mulher forte a elegante, linda, bem vestida a uma senhora mais querida ainda na sua magreza. Ela adorava a minha mulher. Tinha sempre um presente para ela nas suas visitas com beijos sem fim. Cara de porcelana, uma beleza velha desperdiçada, querida por todos no lar: ela não grita, não se zanga, opina e tem sido ouvida como ninguém, com uma dignidade sem arrogância que a todos cativa. Não fosse eu casado e amante da minha mulher a teria namorado, essa dama que quando uma descendente minha retirou-me com maldade o uso do meu telefone ela deixou-me usar o dela sem pagamento. Minha mulher ofereceu-lhe uma cruz dourada com pedras de cores de fantasia e ela a todos dizia que era um presente de ouro com pedras preciosas, porque não podia ser por menos vindo de uma senhora que ela, essa minha antiga amiga gorda depois elegante e muito bonita, mas mesmo muito bonita, recebeu da sua amada amiga, minha mulher. Essa minha querida matrona elegante e calma entrou ontem na eternidade e hoje vai ser enterrada, eu a choro profundamente mas aceito a realidade com calma, não tenho outra opção, descansou...Querido Diário, vamos lembrá-la enquanto estivermos vivos e vamos nos encontrar na ressurreição em que ela acreditava.



Professor Doutor Raul Iturra, Catedrático Emérito do ISCTE-IUL

Texto Editado por Claire Smith, Antropóloga

Barra Mansa, Janeiro 2025