À minha esposa
Claire Summers Smith
A minha mulher e eu estávamos na fila para pagar as
sandálias que tínhamos comprado para mim na loja, haviam duas senhoras também
para pagar, tirei meu chapéu e disse 'depois das senhoras por favor, elas
disseram de imediato 'não por favor, o senhor primeiro, insistimos', sorri e
acrescentei com um sorriso, apoiado na minha bengala, 'quando chegarem à minha
idade vão agradecer uma cortesia assim...!'. A mais velha, de certeza a mãe da
outra, perguntou 'qual a sua idade se não é indiscrição? ' vou andando aos 90, como
todos nós...' A minha mulher sorriu discretamente, as duas senhoras que me
deram a vez disseram 'mas que bem está, fala de forma lógica, caminha, sabe
agradecer, oxalá nós a sua idade sejamos assim também...!' O caixeiro apressou
para fechar o negócio e acrescentou os seus parabéns e deu-me a mão quando
acabou. Minha mulher disse-me ao sair 'mas de onde inventaste essa
história se acabas de cumprir 84...?' ' 84 para 90 é apenas uma questão de
tempo e de números, minha menina...não reparaste na alegria dessas pessoas por
ver um velho frágil e magro como eu a estar tão bem nessa idade que dá prazer
no futuro delas? E os piropos para mim em vez de dizer "coitadito, isso já
vai passar? Eu sinto-me animado com essa alegria, é um apoio para esta porcaria
de idade, sinto mais ânimo...!!
'
Os velhos somos um problema...para os outros, por isso que
normalmente se oculta a idade e se retiram anos, há medo de dizer tenho
90,porque pensa-se que esquecemos, que não ouvimos, que inventamos à vida, que
outra vez somos crianças e como tal nos tratam, há sorrisos cúmplices entre os
mais novos falam entre eles a causa de nós, pensa-se que não entendemos a
conversa, se digo 'quanto é ' para pagar, há um olhar de pergunta para minha
mulher, mais nova que eu que assente com a cabeça como quando compro bilhetes
para o cinema ou roupa ou livros. Pensa-se que não temos lógica, não entendemos
a realidade do momento. É verdade que somos lentos e, como todo ser humano de
qualquer idade, nos enganamos, mas um engano à minha idade soa de imediato como
alarme de demência senil, um horror, somos corrigidos de imediato, após uma
observação dura de 'não é assim... enganaste-te....' . Nasce o temor do
medo ao ridículo, um medo constante a sermos corrigidos, uma atenção permanente
para não errar....um trabalhão que cansa imenso, não é apenas esse afazer, é
esse temor de fazer mal e enganado, a paciência dos outros acaba nos velhos,
somos lentos, porém, tontos...outra vez crianças. É o medo da idade. Por isso
gosto de ouvir esse '90? Mas que bem que está...!' Claro que estou a ser
avaliado contra um modelo padrão que existe na sociedade e que meus colegas
cientistas não querem estudar...o medo ao ridículo em mim dinamiza a minha
atividade, não paro de mexer, ser socialmente útil e um desafio para não sofrer
empurrões de interação. O mais duro é reparar essa opinião sobre nós, é difícil
aceitar a menos valia entre esses outros para nós idosos. Ou uma simpatia
exacerbada, como esse cuidar do velho quando se fala com um deles ou delas.
Claro que há motivos para esse modelo padrão, não é
inventado, há factos que levam a esse padrão. Por exemplo, tenho praticamente
perdida a visão do meu olho esquerdo por glaucoma, donde também a terceira
dimensão, o sentido de profundidade quase o não tenho e sempre o tive, agora, tarde
na vida, devo me reinventar para ver e não cair com um chão disparejo. Ou
o frio, os velhos perdemos a adiposidade da pele e sentimos frio o que dá azo a
comentários familiares com amigos como 'morria de calor só que este tremia de
frio...' risada entre os que falavam de mim na minha presença, a pensarem que
eu não entendia ou não ia entender ou não me ia defender. Normalmente não me
defendo, era batalhar contra um credo social. Um impossível. Partimos
pratos cai tudo das mãos às vezes sobre a nossa roupa, uso um avental para
cozinhar e lavar loiça e não o tiro para comer, o que leva ao comentário das
amigas da casa a dizer 'assim é que é, vás ficar limpo...'dito com a
ironia e a arrogância de quem estima que nunca se
suja.
Os velhos gostamos do silêncio, a calma, a falta de debate, não
gostamos dos desencontros ou do ' muito bem...lembrou-se...!', porque esse vou
andando para os 90... é uma corrida de obstáculos cheia de impedimentos e
obstáculos que consigo perceber, mas que a maior parte dos adultos maiores
resolvem com um imaginário fértil de invenções que os médicos chamam demência
senil, alzheimer e não apenas 'à corrida aos 90..."..como observei em 9
anos de convívio com essas idades. Um poema que me acompanha a vida toda com
esse imenso carinho que desenvolvi por eles, era amar-me a mim próprio, um
sentido de família como quase nunca tinha tido. Era acompanhar a solidão, os
velhos somos pessoas solitárias, o nosso mundial ativo desapareceu e, no nosso
presente, as pessoas que conviviam connosco têm outras atividades, outros
interesses, outros amores são poucos os que permanecem ao pé de nós, todos
morrem antecipadamente, socialmente falando, já não temos utilidade e o carinho
não é suficiente, o amor não é pedra
social.
Um querido amigo visitou-me uma vez, apenas uma vez - pelo
menos uma vez, normalmente ninguém me visita ou a mim ou a outros velhos -
e queria saber se nós, anciãos tínhamos desejo sexual e orgasmo e ao saber que
sim, não acreditava. O Muro de Berlim construído historicamente entre sexo e
idade era mais forte que a reação por mim apresentada, nem entendeu que havia,
a minha idade, uma grande relação entre amar e desejar, porque na minha idade
desejamos só a quem amamos. Gosto de ver gente bonita e ativa, fêmea ou
macho, mas desejo só a quem amo.
Isto, e mais, é para mim ir andando aos 90... só que quem me
ouviu reduziu tudo ao socialmente conveniente e não ao prazer que um velhinho
tem de amar e ser amado... vou andar tanto como eu amar e eu ser amado.... Vivam
meus inventados 90 anos...! Besos y abrazos ...e, se nada do que digo é
verdade... bom é porque já tenho os 90 anos do modelo social dum velho...
2 comentários:
Bravo, bravíssimo! Só este breve artigo é um resumo de um estudo antropológico sobre a 3ra. ou a 4a. idade. Cheio de sabedoria, amor e carinho. É verdade que, frente a idosos, as pessoas querem ser cuidadosas, porque só vêm (imaginam) fraqueza e incoerência; e não deixam (às vezes) de os infantilizar. Ao agirem assim, tornam-se ridículos, mas o tipo de "ridículo sensato". Ao lê-lo não parei de me rir!!
Bravo, bravíssimo! Só este breve artigo é um resumo de um estudo antropológico sobre a 3ra. ou a 4a. idade. Cheio de sabedoria, amor e carinho. É verdade que, frente a idosos, as pessoas querem ser cuidadosas, porque só vêm (imaginam) fraqueza e incoerência; e não deixam (às vezes) de os infantilizar. Ao agirem assim, tornam-se ridículos, mas o tipo de "ridículo sensato". Ao lê-lo não parei de me rir!!
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