segunda-feira, 21 de julho de 2025

O Encantador de Patos

À minha esposa 
Claire Summers Smith



VOU ANDANDO AOS MEUS NOVENTA ANOS

A minha mulher e eu estávamos na fila para pagar as sandálias que tínhamos comprado para mim na loja, haviam duas senhoras também para pagar, tirei meu chapéu e disse 'depois das senhoras por favor, elas disseram de imediato 'não por favor, o senhor primeiro, insistimos', sorri e acrescentei com um sorriso, apoiado na minha bengala, 'quando chegarem à minha idade vão agradecer uma cortesia assim...!'. A mais velha, de certeza a mãe da outra, perguntou 'qual a sua idade se não é indiscrição? ' vou andando aos 90, como todos nós...' A minha mulher sorriu discretamente, as duas senhoras que me deram a vez disseram 'mas que bem está, fala de forma lógica, caminha, sabe agradecer, oxalá nós a sua idade sejamos assim também...!' O caixeiro apressou para fechar o negócio e acrescentou os seus parabéns e deu-me a mão quando acabou. Minha mulher disse-me ao sair  'mas de onde inventaste essa história se acabas de cumprir 84...?' ' 84 para 90 é apenas uma questão de tempo e de números, minha menina...não reparaste na alegria dessas pessoas por ver um velho frágil e magro como eu a estar tão bem nessa idade que dá prazer no futuro delas? E os piropos para mim em vez de dizer "coitadito, isso já vai passar? Eu sinto-me animado com essa alegria, é um apoio para esta porcaria de idade, sinto mais ânimo...!! '                                             

Os velhos somos um problema...para os outros, por isso que normalmente se oculta a idade e se retiram anos, há medo de dizer tenho 90,porque pensa-se que esquecemos, que não ouvimos, que inventamos à vida, que outra vez somos crianças e como tal nos tratam, há sorrisos cúmplices entre os mais novos falam entre eles a causa de nós, pensa-se que não entendemos a conversa, se digo 'quanto é ' para pagar, há um olhar de pergunta para minha mulher, mais nova que eu que assente com a cabeça como quando compro bilhetes para o cinema ou roupa ou livros. Pensa-se que não temos lógica, não entendemos a realidade do momento. É verdade que somos lentos e, como todo ser humano de qualquer idade, nos enganamos, mas um engano à minha idade soa de imediato como alarme de demência senil, um horror, somos corrigidos de imediato, após uma observação dura de 'não é assim... enganaste-te....' . Nasce o temor do medo ao ridículo, um medo constante a sermos corrigidos, uma atenção permanente para não errar....um trabalhão que cansa imenso, não é apenas esse afazer, é esse temor de fazer mal e enganado, a paciência dos outros acaba nos velhos, somos lentos, porém, tontos...outra vez crianças. É o medo da idade. Por isso gosto de ouvir esse '90? Mas que bem que está...!' Claro que estou a ser avaliado contra um modelo padrão que existe na sociedade e que meus colegas cientistas não querem estudar...o medo ao ridículo em mim dinamiza a minha atividade, não paro de mexer, ser socialmente útil e um desafio para não sofrer empurrões de interação. O mais duro é reparar essa opinião sobre nós, é difícil aceitar a menos valia entre esses outros para nós idosos. Ou uma simpatia exacerbada, como esse cuidar do velho quando se fala com um deles ou delas.                 

Claro que há motivos para esse modelo padrão, não é inventado, há factos que levam a esse padrão. Por exemplo, tenho praticamente perdida a visão do meu olho esquerdo por glaucoma, donde também a terceira dimensão, o sentido de profundidade quase o não tenho e sempre o tive, agora, tarde na vida, devo me reinventar para ver e não cair com um chão disparejo. Ou o frio, os velhos perdemos a adiposidade da pele e sentimos frio o que dá azo a comentários familiares com amigos como 'morria de calor só que este tremia de frio...' risada entre os que falavam de mim na minha presença, a pensarem que eu não entendia ou não ia entender ou não me ia defender. Normalmente não me defendo, era batalhar contra um credo social. Um impossível. Partimos pratos cai tudo das mãos às vezes sobre a nossa roupa, uso um avental para cozinhar e lavar loiça e não o tiro para comer, o que leva ao comentário das amigas da casa a dizer  'assim é que é, vás ficar limpo...'dito com a ironia e a arrogância de quem estima que nunca se suja.                                                                                          

Os velhos gostamos do silêncio, a calma, a falta de debate, não gostamos dos desencontros ou do ' muito bem...lembrou-se...!', porque esse vou andando para os 90... é uma corrida de obstáculos cheia de impedimentos e obstáculos que consigo perceber, mas que a maior parte dos adultos maiores resolvem com um imaginário fértil de invenções que os médicos chamam demência senil, alzheimer e não apenas 'à corrida aos 90..."..como observei em 9 anos de convívio com essas idades. Um poema que me acompanha a vida toda com esse imenso carinho que desenvolvi por eles, era amar-me a mim próprio, um sentido de família como quase nunca tinha tido. Era acompanhar a solidão, os velhos somos pessoas solitárias, o nosso mundial ativo desapareceu e, no nosso presente, as pessoas que conviviam connosco têm outras atividades, outros interesses, outros amores são poucos os que permanecem ao pé de nós, todos morrem antecipadamente, socialmente falando, já não temos utilidade e o carinho não é suficiente, o amor não é pedra social.                                                  

Um querido amigo visitou-me uma vez, apenas uma vez - pelo menos uma vez, normalmente ninguém me visita ou a mim ou a outros velhos - e queria saber se nós, anciãos tínhamos desejo sexual e orgasmo e ao saber que sim, não acreditava. O Muro de Berlim construído historicamente entre sexo e idade era mais forte que a reação por mim apresentada, nem entendeu que havia, a minha idade, uma grande relação entre amar e desejar, porque na minha idade desejamos só a quem amamos. Gosto de ver gente bonita e ativa, fêmea ou macho, mas desejo só a quem amo.                  

Isto, e mais, é para mim ir andando aos 90... só que quem me ouviu reduziu tudo ao socialmente conveniente e não ao prazer que um velhinho tem de amar e ser amado... vou andar tanto como eu amar e eu ser amado.... Vivam meus inventados 90 anos...! Besos y abrazos ...e, se nada do que digo é verdade... bom é porque já tenho os 90 anos do modelo social dum velho...

Raul Iturra
O Encantador de Patos
Barra Mansa, 14 de julho de 2025

2 comentários:

MOATASSIM Mohamed disse...

Bravo, bravíssimo! Só este breve artigo é um resumo de um estudo antropológico sobre a 3ra. ou a 4a. idade. Cheio de sabedoria, amor e carinho. É verdade que, frente a idosos, as pessoas querem ser cuidadosas, porque só vêm (imaginam) fraqueza e incoerência; e não deixam (às vezes) de os infantilizar. Ao agirem assim, tornam-se ridículos, mas o tipo de "ridículo sensato". Ao lê-lo não parei de me rir!!

MOATASSIM Mohamed disse...

Bravo, bravíssimo! Só este breve artigo é um resumo de um estudo antropológico sobre a 3ra. ou a 4a. idade. Cheio de sabedoria, amor e carinho. É verdade que, frente a idosos, as pessoas querem ser cuidadosas, porque só vêm (imaginam) fraqueza e incoerência; e não deixam (às vezes) de os infantilizar. Ao agirem assim, tornam-se ridículos, mas o tipo de "ridículo sensato". Ao lê-lo não parei de me rir!!