terça-feira, 18 de junho de 2019

O DIÁRIO DA MATILDE - O MEU PRIMEIRO ANO DE GUERRA

HISTÓRIAS DA TERRA ENCANTADA
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Foi pois o homem moderno, o homo sapiens sapiens que a partir de um grupo que abandonou África, há mais ou menos oitenta mil anos, acabou por se espalhar e colonizar, com a excepção da Antártida, as restantes superfícies continentais, com o rodar dos tempos e das deambulações, conseguindo adaptar-se a todos os ambientes climáticos terrestres. 
É natural que um tal movimento de dispersão que provocou o embranquecimento da pele em latitude, tenha igualmente produzido diversas expressões no modo de vida, o que é fácil de entender se tivermos em conta a diferencialidades de problemas que os diversos ecossistemas colocavam à subsistência e sobrevivência da Humanidade. Mas não é possível sabermos como é que esses primeiros homens viviam; é um facto arqueologicamente provado que a vida assenta nas actividades de recolecção e caça, na beira-rio e nas orlas costeiras terá, em alguns sítios, incorporado actos de pesca e predação de molúsculos e crustáceos, mas esse é um conhecimento genérico e não nos permite descrever com exactidão como é que isso se passou e muito menos como é que esses grupos se organizavam e os aspectos que tinham os resultados das suas maneiras de viver. Sobre uma instituição como a família, por exemplo, não temos qualquer prova que nos habilite a dizer como e quando surgiu e muito menos os diversos ordenamentos que possa ter experimentado. 
Seja como for, os grupos humanos estavam dependentes da existência de água em torno do que terão itinerado em busca de alimento e matérias-primas para as suas ferramentas que se foram sofisticando e diversificando com o passar das gerações e o acumular de experiências e conhecimentos. 
Não há factos arqueológicos que permitam sustentar como se repartiam as actividades de caça ou da recolecção, ou a quem e em que âmbitos caberia o papel de socialização e enculturação das crianças, muito menos como se estabeleceriam, se é que tal sucedeu, as hierarquias no interior dos bandos, bem como as situações em que aqueles se fariam valer. Estamos aqui no domínio das relações inter-pessoais e da estruturação da cultura e aquilo que temos são ossos, instrumentos nesse material e em pedra e outros materiais de origem vegetal, desenhos e pinturas rupestres, baixos-relevos, para além de toda a informação geo-climática que, paralelamente, os sedimentos contêm; nada que nos permita apoiar esta ou aquela afirmação sobre as formas de expressão do quotidiano. A este nível, tudo o que podemos fazer é observar as populações que ainda vivem dessa maneira e tentar traçar aí paralelismos de possibilidades para esses primeiros ancestrais. É certo que nos estamos a subtrair a um proceder científico mas não temos alternativa e resta-nos a imaginação para compormos, com os dados que possuímos, um quadro de plausibilidades que nos dê a ver o modo como se desenrolava a existência dessas pessoas. 
Bem, não teria havido sucesso demográfico se o princípio da partilha não fosse activamente praticado entre os membros daqueles agrupamentos. Se aqueles que caçavam partilhavam, a carne e as peles e o que mais fosse prestável, o mesmo faziam os que se dedicavam a catar as árvores e os arbustos e ervas e outras plantas que o meio tivesse para oferecer e para elas houvesse uma utilidade. 
É provável que as mulheres tivessem o hábito de, entre si, cuidarem das crianças de mais tenra idade, até que fossem capazes de acompanhar os mais velhos nas tarefas inerentes à aquisição do necessário para a sobrevivência. Tal como não deveria ser secundária a sua sabedoria sobre o meio envolvente e, por isso, a sua participação nas decisões que ao movimento do grupo diziam respeito. Mas terão coexistido matriliniaridades com patriliniaridades, assim como terão vivido bandos em que predominou uma ou outra forma de reconhecer a filiação e a diversidade deve ter sido a regra, o mesmo ocorrendo com a fixação das uniões entre indivíduos de sexos diferentes que podem ter variados entre forma de grupo ou a monogamia. 
Mas assim viveram durante mais de uma centena de milhares de anos os homens modernos, em conjuntos que nunca ultrapassariam em muito a centena de elementos e, por norma, não indo abaixo de um certo número que não desceria de uma mão cheia de figuras. Aqui e ali, um pouco dependendo da geografia, estas comunidades itinerantes terão competido com outras e até é possível que tenham ocorrido práticas de canibalismo baseado na luta violenta extra grupal.

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