Luís Souta
O LIVRO: do papel
ao digital
«Está
acabada a cultura baseada em livros que era partilhada
pelas
«pessoas intelectuais» de todo o Ocidente e das suas colónias»
(Passos
Perdidos, Paulo Varela Gomes, 2016:58)
Muito se tem discutido sobre o futuro
do livro na sociedade da informação (ou «educativa», como Carneiro a
classificou em 2001). Debate algo estranho e aparentemente deslocado no tempo,
pois seria natural que, num macro contexto deste tipo, o livro ganhasse um
estatuto e uma divulgação como nunca conhecera no passado. Só que outros
fenómenos emergiram pujantes, designadamente o multimédia. Concorrente
fortíssimo o audiovisual – «civilização videológica» – onde a imagem não exige
o esforço de concentração e descodificação que a leitura implica (Sartori,
2000). Num tempo de fugacidade, de que o spot e o vídeoclip são o paradigma, a
leitura de um livro, que exige tempo e continuidade, corre sérias ameaças.
1. A perenidade do livro
No romance Para Sempre, Vergílio
Ferreira remete o livro para um passado de que hoje só nos restam imagens,
memórias ou artefactos de museu: «O tempo do livro é o tempo do artesanato.
Coisa destinada a um indivíduo, fabricada com vagares, consumida com vagares.
(…) O tempo do livro é o do candeeiro de petróleo, o das meias de algodão
feitas em casa à agulha, o das papas de linhaça e do óleo de fígado de
bacalhau. O das ceroulas compridas com atilhos. É o tempo dos botins e das
cuias, dos palitos para palitar os dentes depois da sobremesa. O tempo das
perucas, das lamparinas e dos penicos. (…) O tempo do livro é o do carro de
bois» (1983:106,107,108).
Numa posição mais confiante na
durabilidade do livro, independentemente dos novos aparatos comunicativos,
Miguel de Sousa Tavares, numa entrevista concedida à revista semanal Pública
(04/03/2001, pp. 28-32), aquando da edição do seu livro Não te deixarei morrer
David Crockett, defende «que os grandes leitores têm uma relação física com os
livros (…) o livro objecto é aquilo que desperta a vontade, o verdadeiro prazer
de ler. Acho que as pessoas que lêem a internet nem sequer são leitores. Um
leitor é uma pessoa que adormece com o livro ao colo, acorda, escreve no livro
ou não escreve, marca as páginas (…). Eu não acredito numa civilização que não lê.»
Mais peremptório ainda é António
Barreto quando afirma, com convicção: «O livro é eterno» (2002:343).
Muitos são aqueles que questionam
a prática generalizada da leitura de um livro (e em especial de um romance) num
ecrã de computador. Hoje, o acesso ao livro electrónico (e-book) 1 é
extremamente facilitado (em termos técnicos, operacionais e até financeiros).
Mas a relação física e afectiva (o toque, o cheiro, a memória de uma oferta…)
que o leitor estabelece com o livro enquanto objecto não é substituível pelos
meios informáticos, que remetem o texto para o campo da virtualização. As
potencialidades que são reconhecidas ao «hiperlivro» (por exemplo, a rapidez na
pesquisa de um elemento do texto, seja uma frase, uma expressão, o nome de um
personagem ou de um lugar, os links possíveis com outros textos e autores),
dirigem-no mais para uma utilização pragmática e parcelar, ligada a actividades
de análise e estudo, do que ao processo normal de uma leitura sequenciada,
capítulo a capítulo.
A leitura em livro tem a vantagem
de ser feita em casa, na rua, nos transportes, praticamente em qualquer lugar;
ainda que a miniaturização dos computadores aproxime o portátil, o tablet ou o
iphone dessas virtualidades atribuídas ao livro, há limites e obstáculos a
superar (por enquanto?) como a autonomia energética, o acesso à rede wireless
ou a dimensão reduzida da mancha gráfica (ainda que atenuada com os ecrãs
suaves que não cansam a vista). Coisas menores, poder-se-ia dizer, preconceitos
de uma geração que, tem dificuldades de adaptação na passagem do táctil para o
digital (do palpável ao virtual). Uma geração que entrou em contacto com todos
estes equipamentos numa fase muito adiantada da sua formação, com uma
maturidade já definida e estilos de vida pessoal e de aprendizagem
consolidados. Seriam então os jovens, já socializados com a informática desde
muito cedo, os “coveiros” do livro.
Mas tal parece ser contrariado,
entre nós, pelos dados divulgados por diversos estudos e sondagens. Livreiros e
bibliotecas públicas mostram como a compra e a leitura de livros, entre os
estratos mais jovens, é das mais florescentes. O Observatório das Actividades
Culturais constata, em 2001, a manutenção da «centralidade simbólica» do livro,
ainda colocado pelos jovens no topo hierárquico dos bens culturais, apesar de
no dia a dia privilegiarem os meios audiovisuais.
Estamos numa nova fase de
transição, onde as certezas são abaladas e as dúvidas mais que muitas. Algo de
semelhante deve ter ocorrido em outros momentos da História, por exemplo,
quando o pergaminho foi substituído pelo papel (Vallejo, 2019). E o livro
continuou, ainda com maior vigor. Agora, «o mundo digital não é o inimigo maior
dos livros, mas o modo de vida», como defende Zivkovic (2016).
2. Escritores sem caneta
Mas as consequências do
desenvolvimento informático não se colocam apenas no patamar do consumo. A
própria literatura, na área da produção, enfrenta fortes desafios decorrentes
da escrita cibernética. Num tempo de «aceleração» (Hartmut Rosa, 2005), quando
se potencializa a “imaterialização de conteúdos”, se expande a interactividade,
se alargam as redes a limites inimagináveis,
e quando a regra é “falta de tempo”, novos horizontes se rasgam à gente da
escrita (que a tem como profissão ou como hobby). Uma nova geração de escritores
irá irromper em definitivo, a que já não usa a “caneta” pois funciona
permanentemente no teclado (o que se vai tornando vulgar mesmo para os
escritores ‘clássicos’) e desconhece o ‘papel’ uma vez que a escrita entra de imediato
nos circuitos electrónicos e fica disponível on-line. Em regra, os autores
electrónicos criam o seu site pessoal e nele disponibilizam as suas obras, criam
mailing lists, newsletters, fóruns de discussão o que lhes permite um contacto
constante com os seus leitores. Este tipo de escritor dispensa assim as tradicionais
estruturas intermédias: ele não só anula os círculos editoriais de impressão,
como se livra de editoras e distribuidoras, com a vantagem de encurtar, de
forma vertiginosa, os circuitos de divulgação, alargando imensamente o acesso à
sua obra. Deste modo, temos reunidas numa só pessoa as tarefas e funções que se
encontravam pulverizadas numa teia empresarial a jusante do acto da escrita. Em
regra, essa cadeia de produção e prestação de serviços escapava ao controlo do
escritor, ficando excessivamente dependente dela. E no fim, era ele o que menos
beneficiava (financeiramente) com a venda dos seus próprios livros. A expansão
vertiginosa da internet, do print-on-demand, e do e-business abrem enormes
perspectivas neste campo, em especial, no que respeita à democratização
editorial (dando outra visibilidade aos “escritores de segunda linha”). Nesta
área, ainda em profundas e rápidas mutações, muito está por definir,
designadamente os direitos autorais (copyright). Será que as contrapartidas
para o escritor (mormente as económicas) vão consolidar esta dinâmica? Ou
estamos apenas perante formas mais simplificadas e alargadas de acesso e/ou
divulgação à obra literária?
A comunidade académica, mais do
que a literária, tem utilizado intensamente a internet e disponibilizado muitos
dos seus produtos científicos (artigos, relatórios, monografias) no suporte
virtual. Muitos livros e revistas científicos, em papel, têm vindo a ser
substituído, progressivamente, pelo ciberlivro (o uso generalizado do inglês,
como língua franca das diferentes comunidades científicas, tem facilitado este
processo de expansão).
3. Antropólogos nas tribos
electrónicas
O campo virtual tem vindo
igualmente a interessar os antropólogos. Esse movimento faz-se em dois
sentidos: (i) no conhecimento das novas «tribos electrónicas» (Ramos, 1999),
com os cibernautas, numa partilha de intensa comunicação, “habitando” uma
“sociedade virtual” onde floresce uma cultura específica, a cultura
cibernética, também ela com os seus rituais, jargões, valores, códigos e
marginalidades (hackers); (ii) no recurso sistemático à internet para a
condução da pesquisa etnográfica.
Ambas as situações colocam
problemas metodológicos novos, nomeadamente no que respeita ao trabalho de
campo e à observação participante, e até quanto ao próprio objecto da
disciplina. Neste caso, poderíamos configurar semelhanças e diferenças com o
histórico percurso desta nossa ciência social. Se estes grupos – os internautas
– podem incorporar as categorias do “exótico” e do “minoritário” (todavia, com
tendência para se esbater à medida que se vai massificando o acesso à net), já
se distanciariam quanto ao carácter “primitivo”; aqui, bem pelo contrário,
está-se perante elites (knowledge workers), numa área de ponta e de vanguarda
(high tech) nesta modernidade centrada num bem que elas dominam – a informação
e o conhecimento (sofisticado e tecnológico). Sabendo que as clivagens e desigualdades
passam, nas nossas sociedades pós-industriais, por estar on-line ou off-line
(German, 2000), estes seriam grupos bem posicionados nesse contexto de
acentuada globalização. Um outro problema, que se cola ao seu estudo, prende-se
com o facto de estarmos perante grupos altamente dispersos, ao nível do planeta,
sem um território nem fronteiras e em permanente mobilidade demográfica.
Portanto, na ausência plena de um “lugar antropológico”, entendido como espaço
delimitado, relacional, identitário e histórico que, como sabemos, é um dos
elementos centrais na caracterização de qualquer grupo social. Por outro lado,
os cibernautas, enquanto ‘grupo’, revelam uma elevada transitoriedade no tempo:
fazem-se e desfazem-se a todo o momento. Este seria um exemplo extremo de
desterritorialização, um dos fenómenos caracterizadores da sociedade
globalizada. Por tudo isto, a entrada da antropologia nestes domínios do
“virtual”, traz novos argumentos para a reconfiguração conceptual de base com
que temos operado até agora. Ela ilustra, de forma paradigmática, a questão das
«novas escalas na abordagem antropológica» de que falava Silvano (1998). Sendo
assim, importa reelaborar conceitos como cultura, campo, território, etc. E
rever os procedimentos associados à interacção entre investigador e sujeito
(que aqui se faz num quadro de uma certa invisibilidade, onde o face-to-face é,
quanto muito, mediado por uma câmara e um monitor, e portanto a entrada do
investigador no ‘grupo’ e a sua aceitação, são encarados numa outra dimensão).
Neste domínio, é particularmente
interessante a experiência de pesquisa realizada pela antropóloga brasileira
Rita Amaral (2001), conducente à sua tese de doutoramento sobre a “Festa à
Brasileira” em cinco regiões do país. Ela utilizou a internet não só como fonte
de dados complementares à pesquisa tradicional, como principalmente, pelo uso
que deu às conversas e entrevistas efectuadas em chats. O antropólogo que faz
do contacto directo e personalizado com os sujeitos de estudo, num território
concreto (onde permanece de forma continuada durante um certo período de
tempo), uma das suas especificidades metodológicas, já a sua “inserção” num
campo virtual, de intermitência temporal, levanta enormes desafios à forma
tradicional de conduzir a pesquisa.
O futuro é mesmo amanhã.
Nota
Quando o livro de Stephen King –
Riding the Bullet, em 2000, ficou disponível apenas na internet, a procura foi
tal que os servidores de duas grandes livrarias (Amazon e Barnes & Nobles)
ficaram bloqueados.
Referências
AMARAL, Rita (2001) “Antropologia
e Internet. Pesquisa e campo no meio virtual”. Trabalhos de Antropologia e
Etnologia, vol. 41, nº 3-4, pp. 31-44.
BARRETO, António (2002) Tempo de
Incerteza. Lisboa: Relógio d’Água/ Antropos.
CARNEIRO, Roberto (coord.) (2001)
“O Futuro da Educação em Portugal. Tendências e Oportunidades – Um Estudo de
Reflexão e prospectiva”.
FERREIRA, Vergílio (1983) Para
Sempre. Venda Nova: Bertrand Editora/ Obras de V. F., 10ª edição, 1996.
GERMAN, Christiano (2000)
“On-line off-line: internet e democracia na sociedade de informação”.
Sociologia – Problemas e Práticas, nº 323, pp. 101-116.
RAMOS, José Luís (1999)
“Computadores, Internet e Aprendizagens. Novas Sociabilidades e Tribos
Electrónicas”. Economia e Sociologia, Universidade de Évora, nº 68, pp. 97-119.
ROSA, Hartmut (2005) Aceleração:
a transformação das estruturas temporais na Modernidade. Editora Unesp, 2019.
SARTORI, Giovanni (1997) Homo
videns: Televisão e pós-pensamento. Lisboa: Terramar, 2000.
SILVANO, Filomena (1998) “As
novas escalas na abordagem antropológica”. Revista da Faculdade de Ciências
Sociais e Humanas, nº 11, pp. 59-71.
ZIVKOVIC, Zoran (2016) entrevista
ao Ípsilon, 24/06/16, pp. 22-23.