Paulo Borges
Uma Revista que se pretende livre, tendo até a liberdade de o não ser. Livre na divisa, imprevisível na senha. Este "Estudo Geral", também virado à participação local, lembra a fundação do "Estudo Geral" em Portugal, lá longe no ido século XIII, por D. Dinis, "o plantador das naus a haver", como lhe chama Fernando Pessoa em "Mensagem". Coordenação de Edição: Luís Santos.
quarta-feira, 31 de agosto de 2022
RETIRO
domingo, 28 de agosto de 2022
O TRABALHO SOCIAL E A LIBERDADE
Luís Santos
Hoje, estive à conversa com um dos seniores da terra,
amigo, oitenta e tal anos, pessoa de incrível jovialidade física e invejável
lucidez. Escorreitamente dizia ele: "Em meados da década de 50 do século
passado, com dezoito anos, trabalhava na CUF (Companhia União Fabril), e depois
de alguns estudos e formação, fui aumentado para 4 escudos (2 cêntimos). Na
altura, alguns tinham um dia de folga ao domingo. Depois, apareceu a semana
inglesa, onde se começou a descansar também ao sábado à tarde...".
E dizemos nós, a folga ao domingo foi um luxo que as
sociedades industriais pariram, porque no seu início a regra era os operários
começarem a trabalhar aos 6,7,8 anos de idade, 12 horas por dia, muitas vezes
sempre de pé, sem folgas, sem segurança social, apoio na saúde ou licença de
maternidade…
Hoje, entre apoios
sociais vários, vamos nas 35/40 horas de trabalho por semana e começamos a
experimentar a semana de 4 dias, o que será uma realidade para breve e,
certamente, que o tempo do “fim de semana” não vai parar de aumentar, mesmo
que, neste processo de emancipação do trabalho, às vezes, seja preciso que a
orquestra faça uma pausa para, depois, continuar a tocar. Por isso, fundamental
mesmo, cada vez mais, é aprender a assobiar com as mãos nas algibeiras, porque,
embora estejamos a meio do caminho, a libertação e a aproximação da humanidade
de um mundo com cada vez menor dependência do trabalho está para continuar.
terça-feira, 23 de agosto de 2022
Literatura: o pão nosso de cada dia (VI)
(texto e foto)
LITERATURA E COMPREENSÃO DA CONDIÇÃO SOCIAL E HUMANA
«Escrevo para compreender» di-lo José Saramago1.
O mesmo poderia dizer o investigador social. E aqui encontramos um ponto
fundamental de intersecção entre estes dois grupos de intelectuais. Conhecer o
mundo (o de hoje ou o do passado), compreender a riqueza e a complexidade do
ser humano nesse devir histórico, nas suas múltiplas dimensões, nos seus
variados contextos, são finalidades comuns que, afinal, ambos abraçam. De tal
modo, que o escritor Alçada Baptista, quando lhe perguntaram o motivo por que
escrevia, respondeu:
«A escrita é um meio de investigação»2.
Longe, portanto, de se oporem, os seus produtos –
literários e científicos – devem antes interligar-se, complementar-se,
ajudando-se mutuamente nessa tentativa, sempre inacabada, de reduzir as trevas
e iluminar as sombras da vida das sociedades e dos homens. Mesmo quando não se
quer ficar apenas pela “compreensão” dos fenómenos e se procura dar outra
“utilidade” social àquilo que se produz, o debate interno dentro de cada um dos
campos acaba por assumir contornos de alguma similitude: por exemplo, na
literatura, o romance como forma de intervenção social e cultural
(neo-realistas) vs a arte pela arte
(presencistas); na ciência, os adeptos da investigação pura vs os defensores de uma investigação
aplicada. Diferentes posicionamentos, que conduzem a clivagens dentro dos
respectivos campos. Não é só a questão da autonomia do desenvolvimento das
respectivas actividades, onde a liberdade é o valor supremo a preservar em
ambas, que se coloca. É a dimensão política dessa mesma actividade que ganha relevo.
E, como sabemos, a esfera do político é factor mais de divisão que de unidade.
Eduardo Prado Coelho, entre muitos outros críticos,
escritores e pensadores, considera que
«o romance é, como todas as formas de arte, um
meio de conhecimento do mundo»3.
José Saramago (1984:298) dirá, de «aqueles eternos
insatisfeitos», os poetas, que essa sua “insatisfação” é já «um particular
conhecimento do mundo» (1971:98). Desiderato intrínseco à poesia que Sophia de
Mello Breyner Andresen via como a perseguição do real. Urbano Tavares Rodrigues
cola-se nesta linha de pensamento e alarga essa finalidade (quantas vezes
apenas implícita) à esfera do conhecimento do próprio escritor:
«a literatura, muito em especial, é uma forma,
uma tentativa de chegar ao conhecimento e do enunciador se conhecer a si
próprio, e de procurar a sua relação com o mundo e as coisas»4.
Edgar Morin corrobora e vai mais longe:
«A literatura, a poesia e a grande arte do nosso
século, o cinema5, são escolas de vida, que nos mostram a
complexidade dos seres humanos e das suas relações. São escolas onde aprendemos
a conhecer o ser humano, não tanto do ângulo impessoal das ciências objectivas,
mas como indivíduos que, enquanto sujeito, vive, sofre, ama e odeia, num
turbilhão de relações humanas» (1998:4).
Mário Ventura, escritor e também muito ligado ao cinema (fundador
do «Festroia» e seu director durante anos), reconhece, no entanto, o papel
primordial da escrita:
«Para compreender [o mundo], a literatura
continua a ser muito mais eficaz»6.
Compreensão em sentido amplo, mas partindo do particular,
do caso concreto. Pois como nota Damon Galgut, vencedor do Man Booker Prize de
2012:
«Quanto mais confiamos no acto de ser local e específico
mais universais nos tornamos.»7
A literatura opera mais na esfera do privado do que na
esfera pública. Ela “entra” na vida íntima das famílias, descreve espaços e
pormenores, revela sentimentos e desejos profundos de cada um dos seus membros,
tira das memórias pessoais os registos que, tornados escrita, ficam e perduram.
Assim, arrancando das “trevas” do anonimato, do esquecimento, do quotidiano, se
recuperam modos de estar, fazer e sentir daqueles que não constam dos arquivos
nem aparecem na História, mas têm história e que na escrita criativa do
romancista (contista, poeta ou dramaturgo) se tornam “estórias”, que lemos,
partilhamos e com as quais nos identificamos. Daí, Honoré de Balzac ter
defendido, no prólogo de A Comédia Humana,
que o romance é a história privada (secreta) das nações. É essa enorme
diversidade de locais, pessoas, acontecimentos, pensamentos e acções, enredadas
na técnica inconfundível da narrativa, que faz de um grande romance uma escrita
sobre a vida, tal como o defendia o poeta francês Claude Roy. E faz da
literatura uma fonte inesgotável de informação e conhecimento, e de uma enorme
eficácia nos processos de aprendizagem.
Ora, se nos reportarmos ao mundo escolar, esta função da
literatura ganha todo o sentido e amplia, a uma escala imensa, esse universo de
descrição (quantas vezes etnográfica) da vida anónima de cada escola. Traz-nos
a dimensão do particular, do individual, do concreto vivido e experienciado.
Não na lógica de uma História da Educação, mais atraída pelos tombos, na
expectativa de aí encontrar o (ainda) desconhecido “documento oficial”, mas de
uma “história privada” das escolas, dos alunos, dos professores, das famílias…
O acesso aos textos literários constitui, assim, uma ajuda fundamental para a
compreensão do mundo académico e para um melhor entendimento da diversidade dos
seus agentes. A literatura, na sua especificidade de contar e de nos oferecer
saberes, permite uma outra leitura do real, sem deixar, no entanto, de evocar
ideias, sensibilidades e particularismos de uma época, em concreto. Devemos ter
presente, como nos relembra a escritora Teolinda Gersão, que
«a literatura está sempre marcada por uma
determinada época e tem sempre algo de datado»8.
Fernando Dacosta chama a atenção para os condicionalismo existentes
durante um período muito peculiar da nossa história – o Estado Novo, fortemente
condicionado pela falta de liberdade de expressão, designadamente da imprensa,
e como a literatura acaba por captar o real, desempenhando a função de
“espelho” social. Os escritores funcionariam assim como uma espécie de
“pintores” impiedosos da vida portuguesa:
«Amputados pela Censura Prévia, os jornais não
exprimiam as realidades profundas das populações. Eram os romances que o
faziam, com tiragens de dezenas de milhares de exemplares, levados, uns, pelas
bibliotecas itinerantes da Gulbenkian, outros pelas estruturas clandestinas da
oposição» (2001:186).
Para daí concluir que:
«A sina dos escritores é não calarem as
bofetadas que vêem ser dadas à sua volta» (id.:348).
A literatura, apesar dos seus detractores econocratas,
continua a ter um lugar insubstituível na sobremodernidade (Augé, 1992) e a ser
um tesouro inesgotável de prazer, deleite e sabedoria. O escritor Olivier Rolin
(1947-), autor de Porto-Sudão (Prémio
Femina, 1994), considera que
«só a Literatura pode dar conta da complexidade
humana, e não a História ou a Sociologia».
Também Stephan Ellenwood, presidente do departamento de
Currículo e Ensino da Universidade de Boston, encara a literatura como uma verdadeira
“escola” para o entendimento da condição humana e desde finais dos anos 80 tem
vindo a desenvolver um «projecto de educação do carácter» tendo a literatura
como instrumento básico; daí resultou a publicação, em 1993, da antologia The Art of Loving Well, um conjunto de textos clássicos e contemporâneos (mitologia,
ficção e biografia), com intuitos interdisciplinares e que permite aos alunos a
abordagem à complexidade humana, designadamente aos valores e à ética9.
Notas
1. Entrevista de José Saramago
ao DN, 18/11/2000, p. 45.
2.
Entrevista de António Alçada Baptista ao
DNA, nº 144, 28/08/1999, p. 20.
3.
Eduardo Prado Coelho, Público, 2001.
4. Entrevista
de Urbano Tavares Rodrigues ao Ensino
Magazine, nº 10, Dezembro 1998, p. 2.
5.
Augusto Abelaira dizia que «o grande romance, hoje, é escrito pelos grandes
cineastas» (intervenção no clube de leitura “Sei Apenas Soletrar”, 28/06/2003).
6.
Entrevista de Mário Ventura ao DN,
19/08/2001, p. 38.
7. Entrevista
de Damon Galgut ao Ípsilon,
07/01/2022, p. 5.
8. Entrevista
de Teolinda Gersão ao Ensino Magazine,
nº 14, Abril 1999, p. 15.
9.
“The Art of Teaching”, Update: Boston
University School of Education Newsletter, Fall, 2002, p. 3.
Referências
AUGÉ, Marc (1992) Não-lugares: Introdução a uma Antropologia
da Sobremodernidade. Venda Nova: Bertrand Editora, 1994.
BALZAC, Honoré de (1829) A Comédia Humana. Porto
Civilização, 1978.
DACOSTA,
Fernando (2001) Nascido no Estado Novo.
Lisboa: Editorial Notícias/ Obras de F.D.
MORIN,
Edgar (1998) “Rumo a um novo contrato social?”. Fontes UNESCO, nº 106, Novembro.
SARAMAGO, José (1971) Deste Mundo e do Outro. Lisboa:
Editorial Caminho/ O Campo da Palavra, 3ª edição, 1985.
SARAMAGO, José (1984) O Ano da Morte de Ricardo Reis. Lisboa: Editorial Caminho/
O Campo da Palavra, 4ª edição.
quinta-feira, 18 de agosto de 2022
Regina Correia lê «Desadormecer», de Paulo Landeck
terça-feira, 16 de agosto de 2022
À Janela