segunda-feira, 29 de abril de 2024

Crónicas Escolares: Sebastião da Gama

à Beatriz


BRINCADEIRA


Ando a correr atrás do Outro,
como fazem
dois meninos brincando num jardim…
 
            …até me achar, de repente,
            sem saber como, o Outro lá da frente,
            que vai fugindo de mim.
 
(Sebastião da Gama, Serra-Mãe, Edições Ática, 1996, p.82)



Sebastião da Gama, Azeitão

 Neste abril comemoramos 50 anos de Democracia e 100 anos do nascimento de SEBASTIÃO DA GAMA. Não será por acaso. Liberdade e Educação, de mãos dadas. Este nosso adorado Professor de Azeitão que tão cedo partiu, amante de alunos livres e de referenciada obra poética, com particular ligação à sua Serra da Arrábida, musa inspiradora. Nas suas idílicas flores e matas, grutas e praias, capelas e monges, no velho convento, contemplação de tão extraordinária natureza, inabalável fé. Já em meados do século passado Ele pedia a sua proteção, o que nem a delimitação do Parque Natural conseguiu afastar de forma aceitável, a exploração voraz do seu valioso solo rochoso. Até quando?... Mas, sem que se perca a esperança, como diz no poema “Fé”:


Falas – e és a Pastora.
Não contes a visão, nem as palavras
que a Senhora te disse: apenas fala.
Falas e em tudo creio. Até no Mundo.
És a Pastora, fala. Fala apenas.
 
Arrábida, 8 Dez. 1951
(Sebastião da Gama, Por Mim Fora. Porto: Officium Lectionis Edições, 2024, p.96.)


Ou, ainda nas suas palavras, em aprumada síntese que dá lema a cartaz das Comemorações do Centenário: "o segredo é amar".


Luís Carlos R. dos Santos
Alhos Vedros, 29 de abril

quarta-feira, 24 de abril de 2024

Do Diário de Vida de Raul Iturra


SENTIMENTO DE CULPA 

O trabalho dos funcionários do lar e a interação funcionário - utente que dinamiza a actividade do lar, meu Querido Diário, tem-me ocupado a maior parte do tempo na minha meditação. É difícil entender essa interação pelo excesso de trabalho dos funcionários e a falta de entendimento de muitos dos utentes como já te tenho dito em capítulos prévios. 

O velhote que compartilha comigo o quarto que uso, a maior parte das noites baixa as fraldas que os seus noventa e quatro anos de idade lhe pedem e faz chichi desde a sua cama para o chão. Ao sentir o ruído dessa curva de urina nos mosaicos do chão, corri ao pé dele para impedir maior problema, mas ele já tinha mijado a fralda, as calças, os lençóis e as mantas antes do chichi cair no chão. Eu, triste pelo espectáculo e pela humidade da sua cama, às 23 horas da noite fui chamar uma funcionária de turno para mudar pijama e mantas. Ela limpou o chão com uma esfregona e disse que já voltava, saiu e nunca mais soube dela. Pensava eu, coitado do meu colega de quarto com frio, de certeza, por causa da humidade das suas coberturas. Era-me triste pensar que ele tivesse de dormir de forma tão pouco confortável, mas dormiu igual a noite toda. Senti raiva pela funcionária não lhe mudar as roupas molhadas com urina e falei no dia seguinte perguntando o porquê. A funcionária me disse que já não conseguia trabalhar mais, cansada como estava no seu labor desde as 9.30 da manhã; exausta estava. O meu colega de quarto nem sabia que estava molhado, a funcionária não conseguia fazer mais nada. Ela tinha tentado envergonhar o velhote mijão pelo seu comportamento sem higiene, e ele não percebeu. Ela lhe disse que Deus estava zangado pelo que tinha feito, mas, ele olhava para ela  e dizia “o quê, o quê, o quê…" e adormeceu. 

O jogo do lar é como o comportamento da igreja católica com os seus fiéis, é a procura do sentimento de culpa para submeter a pessoa a um obedecimento cego, uma manipulação para conseguir os objetivos de trabalho. Ou seja: lavar a pessoa, vestir a mesma,  encaminhá-la para o refeitório ou para a sala de convívio, alimentá-la ou distraí-la. É a ideia de pecado que todas as religiões trabalham e que existe já na mente de funcionários e utentes. Retiram do comportamento social, pelo pensamento mágico que as religiões incutem na mente de quem tem vivido submetido à vontade da divindade, um sentimento de culpa que submete a pessoa individual a um comportamento social adequado ao objetivo que o lar pretende para manter a vida do utente. 

No lar observo reiteradamente muita reprimenda do tipo mãe para filho, o que rebaixa a dignidade das pessoas como seres humanos, tratadas como entidades culpadas do pecado de desobediência a Deus, o pecado original dos cristãos, do qual devem fugir. A luta pelo poder está no seio da teoria cristã, uma luta constante dentro do lar em que o mandar está sempre na boca dos funcionários para retirar essa ideia de autonomia dos utentes. Normalmente as palavras são “ou comes ou vais para o hospital”, “ou não gritas ou vais para o quarto sem comer!”, “ou te comportas como deves ser ou vou dizer aos teus filhos”.

Os funcionários parecem pensar que é bom trabalhar com a culpa pelos resultados positivos que pode proporcionar. Eles pensam que assim todos vão obedecer pelo conceito de culpa usado que, até o velhote do meu quarto é capaz de entender quando está mais descansado. Fome e frio, cansaço e bem estar, ouvir e fazer, são os elementos dinâmicos para submeter o utente ao trabalho do funcionário. Parece-me estar a ouvir sempre “ai, ai, ai! o que vai dizer a tua filha quando saiba isto”, “por amor de Deus ou comes ou vais para o hospital!”, “ou para de gritar ou não há comida”. Para materializar estes objetivos de culpa - submissão, os funcionários contam com comprimidos receitados por quem trata da medicação do lar que, meu querido diário, eles colocam na boca do utente da mesma forma em que se empurra uma moeda num gira-discos de um espaço público para baixar o disco da música que se quer ouvir, ou como a moeda que se coloca na máquina de baloiçar um cavalo para as crianças se divertirem. Não há simpatia, não há carinho, não há cuidado, empurra-se o comprimido, dá-se um copo de água e grita-se “bebe, bebe”. O comprimido cai como a moeda na caixinha que espoleta o disco para tocar ou o cavalo para divertir, sem simpatia e sem doçura com um “ai, ai, ai!” eterno.

É evidente que tomar conta de velhos é um trabalho pesado, é evidente que o trabalho num lar é pouco estimado e cansa, mas quando no fim da vida um ser humano quer carinho, descanso, compreensão, carícias, beijos, o “ai, ai, ai!” e o “deve ser!” não devia ser usado. Essas pessoas precisam de carinho como o velhote do meu quarto que tem começado a gritar ao longo da noite “mãe, mãe, mãe... acuda-me, mãe vem!” e soluça, chora profundamente. Perante isso levanto-me, faço carinho e digo “a mãe já vem”, ele tranquiliza-se e dorme. Os funcionários cansados, super explorados, não conseguem gerir sentimentos para  apaparicar. Eles deitam a pessoa e saem a correr para ir buscar o próximo que tem que deitar. Há momentos em que relaxam e riem com simpatia estimulando a pessoa a rir também, mas pouco tempo têm para isso. 

Ó meu querido diário, sentimento de culpa tem sido o mais usado nas diversas estruturas religiosas que eu conheço. Hoje em dia estamos mais livres para diminuir o medo do inferno, já quase ninguém acredita nele, mas a história mostra-nos como até faz pouco as instituições chamadas igrejas e seus fiéis têm aderido ao medo que o pecado causa.

Medo infelizmente para estruturar o pensamento mágico que cria o comportamento entre funcionário e utente. O conceito de culpa funciona hoje em dia incutindo o medo do pecado por pessoas específicas que detêm o poder e agem de forma contrária aos nossos desejos ou doenças que vão matando pessoas por causa de vírus novos e que as religiões definem como a ira de Deus sobre uma humanidade pecadora. Isto é também como se manipula dentro do lar.

Professor Doutor Raul Iturra, Catedrático Emérito do ISCTE-IUL

Texto Editado por Claire Smith Antropóloga

Barra Mansa, Abril de 2024 


sexta-feira, 19 de abril de 2024

“Graffitar a Literatura” (VIII)

 Luís Souta
(Texto e foto)

AMADA MORRISON 

«este é o tempo das mulheres na literatura»
(Fernanda Melchor, Ípsilon, 15/03/2024, p. 25) 

Cascais, Outeiro da Vela, Av. Engº António de Azevedo Coutinho] 

«Eu sou Amada e ela é minha. Sethe é aquela que apanhou as flores, flores amarelas, antes de ficarmos agachados. Colheu-as das plantas verdes. Elas estão na colcha onde dormimos. Ela ia sorrir para mim quando os homens sem pele vieram e nos levaram com os mortos para o sol e empurraram-nos para o mar. (…) Sethe é o rosto que encontrei e perdi na água debaixo da ponte. Quando entrei, vi o seu rosto vindo para mim, e era o meu rosto também. Quis juntar-me a ela. Tentei, mas ela subiu em pedaços de luz para o alto da água. Perdi-a de novo, mas encontrei a casa em que ela sussurrava para mim. E lá estava ela, sorrindo, finalmente. É bom, mas não posso perdê-la de novo. Tudo o que quero saber é porque é que ela entrou na água naquele lugar onde ficámos agachados. Porque é que fez isso mesmo na hora em que ia sorrir para mim? Quis juntar-me a ela no mar, mas não podia mexer-me; quis ajudá-la quando apanhava flores, mas as nuvens de pólvora cegaram-me e eu perdi-a. Três vezes e perdi-a (…) Agora encontrei-a nesta casa. Ela sorri para mim e é o meu próprio rosto sorrindo. Não a perderei de novo. Ela é minha.» (pp. 274-5)

Amada (Beloved) é o primeiro romance de uma trilogia que inclui Jazz (1992) e Paraíso (1997). O livro de Toni Morrison recebeu o Prémio Pulitzer (1988) tendo sido mais tarde adaptado, ao cinema, por Jonathan Demme (USA, 1998), com interpretações de Oprah Winfrey (Sethe), Danny Glover (Paul D.), Thandiwe Newton (Beloved)… Toni Morrison baseou-se na história real da ex-escrava Margaret Garner e da relação com filha que nasce durante a sua fuga de uma plantação do Kentucky.

A ilustração da capa, de uma das edições portuguesas, de Amada (Difusão Cultural, 1989) é da brasileira Glair Alonso Arruda. Vislumbro nela similitudes visuais com esta mulher do trabalho plástico de oats.ink na sua intervenção de street art em Cascais[1], que veio dar outro colorido e animação estética a duas paredes contíguas de um incaracterístico e anódino equipamento urbano da EDP. Uma mulher jovem, negra, de cabelo preto, curto, sobrancelhas grossas, lábios espessos, olhos cerrados. A outra (a da capa do livro) de olhos abertos. Podia ser a mesma pessoa, em dois momentos sequenciais. Mas em ambas, não se vislumbra qualquer alegria nos seus estados de alma. Mulheres sofridas? Muito provavelmente… A mulher que oats.ink desenhou e pintou podia muito bem ilustrar a capa de Amada. 

Ilustração da capa de Amada, Difusão Cultural, 1989]

A autora, a norte-americana Toni Morrison (de seu nome Chloe Anthony Wofford, 1931-2019), natural de Lorain estado de Ohio, e formada em Estudos Ingleses pelas Universidades de Howard, Washington e Cornell, NY (1949-1955). Foi editora (Random House[2]) e professora universitária em diversas universidades, acabando na Princeton (1989-2006); desde 1981 membro da Academia Americana das Artes. Foi a primeira escritora negra a receber o Prémio Nobel da Literatura (1993); a Academia sueca sublinhou então a sua «força visionária e relevância poética». A defesa intransigente da liberdade, da dignidade humana e da igualdade, num persistente combate ao racismo, colocaram-na como uma voz de referência na sociedade americana, muito em especial, entre a comunidade negra, emparceirando com James Baldwin (1924-1987), essa figura central do Movimento dos Direitos Civis que, com clarividência, assegurava: «A glorificação de uma raça em detrimento de outra – ou outras – tem sido e será sempre uma receita para o morticínio.»

A sua obra, muito baseada na experiência das mulheres afro-americanas, contribui de forma poderosa para a construção positiva dessa identidade negra. O então presidente Barack Obama condecorou-a, em 2012, com a Presidential Medal of Freedom (a mais alta condecoração civil dos EUA concedida pelo Presidente), considerando-a «um tesouro nacional».

Morrison publicou onze romances, entre os quais, O Olho mais Azul (1970), Sula (1973), Song of Solomon (1977), A Dádiva (2008), Voltar para Casa (2012), Deus Ajude a Criança (2015), seis livros de literatura infantil (com seu filho Slade Morrison), teatro e até o libreto de uma ópera – Margaret Garner (2015). Publicou diversos ensaios, num deles – A Origem dos Outros: seis ensaios sobre racismo e literatura (Companhia das Letras, 2019), as Palestras Norton da Universidade de Harvard, 2016 – desenvolve o conceito de «literature of belonging».

 «Eu não olho para a política ou para a ciência. Eu olho para a literatura em busca de orientação, e isso é o que vou fazer.» (Ípsilon, 18/03/2016, p. 16)

Amada é a magnum opus de Toni Morrison, romance que exige um leitor atento, activo, disponível para entender o encantamento desse imbricar da realidade com a magia.

«Na quinta, Lady Jones surpreendeu-a a espionar.

– Entra pela porta da frente, querida Denver. Aqui não é um parque de diversões.

Assim, Denver passara quase um ano inteiro na companhia dos seus pares e juntamente com eles aprendera a ler e a contar. Estava com sete anos e aquelas duas horas ao fim da tarde eram preciosas para ela. Mais ainda porque fora até lá sozinha e vira o prazer e a surpresa no rosto da mãe e dos irmãos ao contar-lhes a proeza. Por um níquel por mês, Lady Jones fazia aquilo que os brancos achavam desnecessário, senão ilegal: enchia a pequena sala de visitas com crianças negras que tinham tempo e interesse em aprender a ler. O níquel, que Denver levava atado num lenço e preso ao cinto para entregá-lo à professora, fazia-a sentir-se importante. Empolgava-se com o esforço em manusear correctamente o giz e evitar o guincho que ele poderia fazer na lousa. Adorava o W maiúsculo, o i pequenino, a beleza das letras no seu próprio nome, as frases da Bíblia cheias de lamento que Lady Jones usava como cartilha.» (pp. 132-3) 

Notas

1. Uma iniciativa da Wallmob, associação que procura «dinamizar a Arte Urbana do Concelho de Cascais.

2. Desafiou Angela Davis a escrever Uma Autobiografia (Antígona, 2023), quando esta tinha apenas 28 anos; editou-o em 1974 e sobre ela escreveu: «Angela é a mulher mais feroz que alguma vez conheci e eu venho de uma longa linhagem de mulheres ferozes.»

Em breve será publicado o livro A TRÍADE DISJUNTIVA: Literatura, Antropologia e Educação que reúne, na sua II parte, os 30 textos desta rubrica que aqui fui editando desde 07/09/2014.

sábado, 13 de abril de 2024

1976, A Evolução dos Cravos

Risoleta Pinto Pedro 

Caros amigos e amigas venho divulgar, para o caso de não terem conhecimento, a estreia da ópera "1976, A Evolução dos Cravos", com libreto de minha autoria e música de Vítor Rua, sobre a Revolução de 74 e a Constituição de 76, celebrando os 50 anos do 25 de Abril. No Forum Municipal de Setúbal estreia dia 12 e continua dia 13, sábado, às 21h, e dia 14, domingo, às 17h. Mais tarde a 19 de abril, na Casa da Música Jorge Peixinho, no Montijo, e no dia 18 de maio no Centro Cultural Vila Flor, em Guimarães (...).

FICHA TÉCNICA:
Mariana Chaves interpretará Eulália. Gonçalo Martins interpretará Vicente.
Bilhetes disponíveis na bilheteira, ou em: 

Celebrando os 50 anos do 25 de Abril, esta ópera apresenta uma visão psicadélica sobre acontecimentos históricos e sobre a natureza e resposta diversa do ser humano, perante os desafios de ambientes sociais e políticos complexos.
Música: Vítor Rua
Libreto: Risoleta Conceição Pinto Pedro
Encenação e Coreografia: Iolanda Rodrigues
Figurinos: Sara Rodrigues
Vídeo cenográfico: Simão Rodrigues
Comunicação e Imagem: Maria Madalena
Direção Artística e Musical: Jorge Salgueiro, composer
CANTORES
Eulália: Mariana Chaves
Vicente: Gonçalo Martins
Latifundiário (pai de Eulália): Mário Redondo
Mulher dos cravos: Ana Filipa Leitão
Salazar: Inês Constantino
Oráculo Ouruborus: Helena de Castro
Consulente (Filósofo): David Martins
Estudante: Mafalda Louro
República: Sara Batista
Personagens coletivas: CORO SETÚBAL VOZ e ACADEMIA DE DANÇA CONTEMPORÂNEA DE SETÚBAL

quinta-feira, 11 de abril de 2024

Paulo Landeck







A CÉU ABERTO

 

Se indulgência ou ocaso no cerrar cortinas, o homem arrasta formalidades há muito implantadas; por vezes, procura genuína bondade para desculpar o importunamente censurável, condenando significância em troca da agradável natureza das coisas.

Creio, ser tremendamente poderosa a tarde despida das terríveis nuvens vigilantes! Ainda que persistam ocultos, laboriosos enredos, cerzidos por desmesura e remissão.

Creio que o Ser deve prosternar-se diante da Força sem medo nem humilhação, elevado a outro patamar.

Talvez acto de amor, Supremo; olhar nos olhos Imensidão, consciente arbítrio, muito para além do abraço temerário.

- Nem todo o beijo é um beijo. -

Retomemos esse acto.

Dois mundos, expansão ou subducção; - elixir e pedra, espagíria espiritual, - como água do mar nas fissuras da crosta oceânica quando reemerge tocada pelo magma.

Rendem-se corpos, cancela-se a carne putrefacta, pela natureza do espírito ciente da morte como panaceia universal.
Dois mundos, uma só alma, - parte e dispersa, como ademais a plateia, ao cair do pano.

Vida a céu aberto, matéria transformada.