Noite Irritante
Quando chega a noite, Querido Diário, começa o meu eterno
problema:
“Será que eu vou
dormir ou não? Será que o meu colega de quarto vai dormir para eu dormir
também?”
Tenho tido sucessivos colegas de quarto, como tenho narrado
antes, cada um com feitios e preocupações diferentes. O meu primeiro colega foi
o cego que gostava de ser chamado o “garanhão do lar” porque tinha seduzido
várias senhoras, as velhinhas nossas colegas utentes que gostavam dele. Elas o
disputavam aos murros entre elas, com uma certa cumplicidade minha para o
advertir quando via “mouros na costa”, quer dizer os funcionários a vigiar
comportamentos. Era um colega de quarto que mal me deixava dormir porque apesar
de tanta atividade sedutora deitava-se cansado, adormecia e ressonava… Outro
problema ao que me tive que habituar e…habituei-me!
Em toda a minha permanência no lar deitava-me cedo para
acordar cedo. Comecei por me deitar às dezanove horas para acordar às quatro e
quarenta e cinco. A minha esperança era poder adormecer a pensar na minha
família distante e imaginar minhas filhas como pessoas queridas e sábias. O que
eu não sabia era que este poder dormir cedo e acordar calmo era devido aos
sedativos que me eram prescritos pela
minha descendente psicóloga clínica e tutora. Uma antiga médica do lar
achou essa medicação excessiva e, com a sua sabedoria e a minha resiliência,
ajudou-me a mudar a receita. Preferia eu com o seu apoio ser dono de mim e do
meu pensamento. Elaborei uma estratégia para me controlar. O meu comprimido
para dormir acabou e depois de vários dias a dormir pouco e mal, aprendi a
descansar a noite toda: eu meditava sobre uma ideia e dava voltas e voltas a
essa ideia até que essa cansativa reiteração aborrecia-me e adormecia, após ter
feito uma respiração profunda de dez ou quinze inspirações e expirações de ar
que tinha aprendido no yoga. O medo de não dormir, no entanto, estava sempre
presente mas lembrava-me da dita médica, da sua simpatia, da sua gentileza, da
sua amabilidade e essa lembrança acalmava-me, conseguia retornar ao meu
pensamento e adormecia. A verdade, Querido Diário, é que o medo da insónia é
duro, é pesado, amedronta. Sem a medicação instala-se esse estar calado a
pensar nos problemas da vida quotidiana. É uma dor que não recomendo, é uma
ansiedade que nos mantém despertos e gera um problema de convívio no dia
seguinte; não podia queixar-me a ninguém porque arriscava-me a
automáticamente ser me receitado de novo
o calmante para adormecer e me ser retirada essa liberdade de escolher o meu
próprio comportamento. Viver a minha realidade, viver a minha escolha, que era
o que eu pensava quando acordava no meio da noite. No meu pensamento estava
sempre presente a minha aprendizagem ao longo da minha vida intelectual, quando
estudei e escrevi sobre as idéias de Emmanuel Mounier, Jacques Maritain, Tomás
de Aquino e Aristóteles. Essas ideias eram fruto do debate secular sobre
predestinação e livre arbítrio que caracteriza tanto o oriente como o ocidente
sobre o destino da humanidade. Era eu um entusiasta apoiante das ideias de
Agostinho de Hipona, séc. IV, que defendia duramente que éramos livres para
pensar e agir e assim salvar a nossa alma. Um destino que Jean Calvin de
Genebra do séc XVI argumenta que a nossa
salvação já estava pré-destinada. Salvar ou perder a alma para os que acreditam
nela, um debate que leva mais de três mil anos na arena intelectual. Com esse
debate e essas teorias no meu recordo durante noites irritantes, ia adormecendo
enquanto assim fugia do lar em pensamento. Era essa uma questão que não
inquietava os meus colegas utentes cujo livre arbítrio, tanto defendido para
mim e para os outros, estavam perdidos
na demência senil, no alzheimer e na obedência ao credo católico e nos
calmantes administrados para passar a noite e não escarafunchar a paz do recinto
chamado “casa de repouso”. Era um debate impossível num lar de não livre
escolha; pensava eu enquanto arguía para adormecer com a predestinação
calvinista e com a tese da igreja escocesa presbiteriana de condenação e o dito
livre arbítrio dos católicos. Deus punia pelos tantos pecados cometidos durante
a nossa vida e nos lança para o inferno,
essa delícia da chamada Santa Inquisição. Nem ideia tinham os meus meus
queridos velhos desse secular debate, desse meu debate com os meus professores
dominicanos, em que pensava enquanto pretendia adormecer, eu, homem sem crenças
fazia já muito tempo. Assim ia cansando o meu pensamento e a minha mente, e,
adormecia. Levemente lembrava-me que era um debate começado por mim aos meus 14
anos e que na noite irritante dos meus oitenta, ajudava-me a dominar a
ansiedade que causava a insónia… livre, predestinado, livre, predestinado…e
aparecia essa menina nua na minha cama e assim reparava que sonhava, quer
dizer, dormia, sonhava, via as horas e reparava que tinham passado horas …
santo céu!... sempre ia descansando. Tornava a pensar em Aristóteles e a leitura desses livros proibidos feitas
pelo dominicano Tomás de Aquino no séc XIII, que para não pecar tanto lia os
escritos do árabe Averróis sobre Aristóteles…um sábio Islamico cujos textos
iluminaram Aquino que por sua vez defende a minha apreciável liberdade de
escolha…e ia eu pensando, nesse meio acordar, meio dormir da uma da manhã, o
que vou eu dizer à minha amiga quando às cinco da manhã lhe envio a minha
mensagem habitual no computador que uso no lar e com essa preocupação tão
material e terrena tornava a adormecer…Uma motosserra a atroar acordava me outra vez às três da manhã…era o
ressonar do meu companheiro de quarto, o garanhão, ressonar profundo, duro,
barulhento…dei-lhe um grito e calou-se mas entrou a funcionária da noite a
pedir silêncio e com voz exacerbada…”Os senhores nem me deixam descansar no
turno da noite, gritam tanto”. Pensei que não era bom rispostar, o que me iria
criar outra causa de insônia, e assim deixar a funcionária da noite dormir no
seu turno… ainda eram três e meia da madrugada. Era possível dormir um pouco…um
par de horas…não se descansa…a aula acabava…havia palmas…eu corado fazia
reverências como quando estrelava numa peça de teatro na minha juventude…era
mais uma vez a funcionária da noite a bater as mãos “acordar, sair da
cama!…”...não havia liberdade de escolha tomista…a funcionária não sabia disso,
mas sabia que queria ir embora para casa, para dormir após um dia e uma noite
de trabalho. Levantar todos os velhinhos às cinco da manhã permite-lhe sair às
sete. Já não pensei mais estava descansado por ter conseguido dormir algumas
horas, podia ir escrever após o meu
duche quotidiano e descrever no meu diário mais uma noite irritante com o medo
da insónia que a dinamiza… e esperar a passagem do dia… para dormir no sofá e
depois à noite voltar para a minha cama com esse típico medo da insónia numa
casa que repousa com calmantes…santa paciência!
Professor Doutor Raul Iturra, Catedrático Emérito do
ISCTE-IUL
Texto Editado por Claire Smith, Antropóloga