terça-feira, 15 de outubro de 2024

Do Diário de Vida de Raul Iturra

 

Noite Irritante


Quando chega a noite, Querido Diário, começa o meu eterno problema:

 “Será que eu vou dormir ou não? Será que o meu colega de quarto vai dormir para eu dormir também?”

Tenho tido sucessivos colegas de quarto, como tenho narrado antes, cada um com feitios e preocupações diferentes. O meu primeiro colega foi o cego que gostava de ser chamado o “garanhão do lar” porque tinha seduzido várias senhoras, as velhinhas nossas colegas utentes que gostavam dele. Elas o disputavam aos murros entre elas, com uma certa cumplicidade minha para o advertir quando via “mouros na costa”, quer dizer os funcionários a vigiar comportamentos. Era um colega de quarto que mal me deixava dormir porque apesar de tanta atividade sedutora deitava-se cansado, adormecia e ressonava… Outro problema ao que me tive que habituar e…habituei-me!

Em toda a minha permanência no lar deitava-me cedo para acordar cedo. Comecei por me deitar às dezanove horas para acordar às quatro e quarenta e cinco. A minha esperança era poder adormecer a pensar na minha família distante e imaginar minhas filhas como pessoas queridas e sábias. O que eu não sabia era que este poder dormir cedo e acordar calmo era devido aos sedativos que me eram prescritos pela  minha descendente psicóloga clínica e tutora. Uma antiga médica do lar achou essa medicação excessiva e, com a sua sabedoria e a minha resiliência, ajudou-me a mudar a receita. Preferia eu com o seu apoio ser dono de mim e do meu pensamento. Elaborei uma estratégia para me controlar. O meu comprimido para dormir acabou e depois de vários dias a dormir pouco e mal, aprendi a descansar a noite toda: eu meditava sobre uma ideia e dava voltas e voltas a essa ideia até que essa cansativa reiteração aborrecia-me e adormecia, após ter feito uma respiração profunda de dez ou quinze inspirações e expirações de ar que tinha aprendido no yoga. O medo de não dormir, no entanto, estava sempre presente mas lembrava-me da dita médica, da sua simpatia, da sua gentileza, da sua amabilidade e essa lembrança acalmava-me, conseguia retornar ao meu pensamento e adormecia. A verdade, Querido Diário, é que o medo da insónia é duro, é pesado, amedronta. Sem a medicação instala-se esse estar calado a pensar nos problemas da vida quotidiana. É uma dor que não recomendo, é uma ansiedade que nos mantém despertos e gera um problema de convívio no dia seguinte; não podia queixar-me a ninguém porque arriscava-me a automáticamente  ser me receitado de novo o calmante para adormecer e me ser retirada essa liberdade de escolher o meu próprio comportamento. Viver a minha realidade, viver a minha escolha, que era o que eu pensava quando acordava no meio da noite. No meu pensamento estava sempre presente a minha aprendizagem ao longo da minha vida intelectual, quando estudei e escrevi sobre as idéias de Emmanuel Mounier, Jacques Maritain, Tomás de Aquino e Aristóteles. Essas ideias eram fruto do debate secular sobre predestinação e livre arbítrio que caracteriza tanto o oriente como o ocidente sobre o destino da humanidade. Era eu um entusiasta apoiante das ideias de Agostinho de Hipona, séc. IV, que defendia duramente que éramos livres para pensar e agir e assim salvar a nossa alma. Um destino que Jean Calvin de Genebra do séc XVI argumenta que a nossa salvação já estava pré-destinada. Salvar ou perder a alma para os que acreditam nela, um debate que leva mais de três mil anos na arena intelectual. Com esse debate e essas teorias no meu recordo durante noites irritantes, ia adormecendo enquanto assim fugia do lar em pensamento. Era essa uma questão que não inquietava os meus colegas utentes cujo livre arbítrio, tanto defendido para mim e para os outros, estavam perdidos na demência senil, no alzheimer e na obedência ao credo católico e nos calmantes administrados para passar a noite e não escarafunchar a paz do recinto chamado “casa de repouso”. Era um debate impossível num lar de não livre escolha; pensava eu enquanto arguía para adormecer com a predestinação calvinista e com a tese da igreja escocesa presbiteriana de condenação e o dito livre arbítrio dos católicos. Deus punia pelos tantos pecados cometidos durante a nossa vida  e nos lança para o inferno, essa delícia da chamada Santa Inquisição. Nem ideia tinham os meus meus queridos velhos desse secular debate, desse meu debate com os meus professores dominicanos, em que pensava enquanto pretendia adormecer, eu, homem sem crenças fazia já muito tempo. Assim ia cansando o meu pensamento e a minha mente, e, adormecia. Levemente lembrava-me que era um debate começado por mim aos meus 14 anos e que na noite irritante dos meus oitenta, ajudava-me a dominar a ansiedade que causava a insónia… livre, predestinado, livre, predestinado…e aparecia essa menina nua na minha cama e assim reparava que sonhava, quer dizer, dormia, sonhava, via as horas e reparava que tinham passado horas … santo céu!... sempre ia descansando. Tornava a pensar em Aristóteles  e a leitura desses livros proibidos feitas pelo dominicano Tomás de Aquino no séc XIII, que para não pecar tanto lia os escritos do árabe Averróis sobre Aristóteles…um sábio Islamico cujos textos iluminaram Aquino que por sua vez defende a minha apreciável liberdade de escolha…e ia eu pensando, nesse meio acordar, meio dormir da uma da manhã, o que vou eu dizer à minha amiga quando às cinco da manhã lhe envio a minha mensagem habitual no computador que uso no lar e com essa preocupação tão material e terrena tornava a adormecer…Uma motosserra a atroar  acordava me outra vez às três da manhã…era o ressonar do meu companheiro de quarto, o garanhão, ressonar profundo, duro, barulhento…dei-lhe um grito e calou-se mas entrou a funcionária da noite a pedir silêncio e com voz exacerbada…”Os senhores nem me deixam descansar no turno da noite, gritam tanto”. Pensei que não era bom rispostar, o que me iria criar outra causa de insônia, e assim deixar a funcionária da noite dormir no seu turno… ainda eram três e meia da madrugada. Era possível dormir um pouco…um par de horas…não se descansa…a aula acabava…havia palmas…eu corado fazia reverências como quando estrelava numa peça de teatro na minha juventude…era mais uma vez a funcionária da noite a bater as mãos “acordar, sair da cama!…”...não havia liberdade de escolha tomista…a funcionária não sabia disso, mas sabia que queria ir embora para casa, para dormir após um dia e uma noite de trabalho. Levantar todos os velhinhos às cinco da manhã permite-lhe sair às sete. Já não pensei mais estava descansado por ter conseguido dormir algumas horas,  podia ir escrever após o meu duche quotidiano e descrever no meu diário mais uma noite irritante com o medo da insónia que a dinamiza… e esperar a passagem do dia… para dormir no sofá e depois à noite voltar para a minha cama com esse típico medo da insónia numa casa que repousa com calmantes…santa paciência!


Professor Doutor Raul Iturra, Catedrático Emérito do ISCTE-IUL

Texto Editado por Claire Smith, Antropóloga


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