sexta-feira, 9 de agosto de 2019

Aldina Duarte, Romance(s)

por Luís Souta




Aldina Duarte, Romances(s)
Um amor à portuguesa, com certeza


A propósito da peça Malfadadas – esteve no Teatro Nacional D. Maria II, em Lisboa, entre 20 e 28 de Julho, uma encenação de Miguel Loureiro, música de Filipe Raposo e representação de «figuras da literatura e da arte» 1 a cargo de Isabel Abreu e Aldina Duarte – decidi revisitar o duplo CD desta última, Romance(s), editado em 2015.
Formato original
Neste trabalho discográfico Aldina Duarte canta 14 fados/canções com poemas da escritora Maria Rosário Pedreira (1959-) 2letrista também popularizada por Ana Moura, António Zambujo, Ricardo Ribeiro, Salvador Sobral.
Trata-se de um curioso CD, construído de modo muito original: marcas, sem dúvida, de uma artista com um percurso pessoal (desde o tempo em que foi monitora do Centro de Paralisia Infantil) e artístico relevantes. O trabalho consistente de Aldina Duarte (1967-), pautado pelo rigor, solidez e criatividade, tem-se ancorado em nomes de referência da literatura e, por isso, de qualidade garantida.
Nos dois CD são interpretados os mesmos poemas, seguindo o mesmo alinhamento, só a roupagem musical mudou: no primeiro, o fado tradicional (acompanhamento à guitarra e à viola), no segundo, Pedro Gonçalves (dos Dead Combo), produtor musical do disco, baniu a guitarra e a viola, e criou uma ‘banda sonora’ «cenário pop de largo espectro» onde introduziu percussão e contrabaixo, e desacelerou o ritmo das canções; aí, Aldina reinterpreta os temas originais, afasta-se do registo de fado, e canta num quase sussurro; nesse CD2 conta com a participação de Ana Moura, Filipa Cardoso e Camané.
Música conceptual
Enquadro o presente CD na linha da chamada ‘música conceptual’: não é um conjunto de fados independentes uns dos outros mas antes uma narrativa, com princípio, meio e fim, em que se conta a história «de um amor que não vingou» ao longo dos diversos temas musicais que, assim, se interligam num todo com sentido. Recordo-me de trabalhos anteriores – Filarmónica Fraude (1969) Epopeia, Fausto Bordalo Dias Por este rio acima (1982), Em Busca das Montanhas Azuis (2011), ou, em língua inglesa, The Who (1969) Tommy, Jethro Tull (1973) Passion Play, Rick Wakeman (1974) Journey to the centre of the earth. E a lista podia continuar. Este tipo de música é o contraponto das canções Pop ou dos videoclips da MTV, da VH1 ou similares, que se esgotam nos ‘recomendáveis’ três minutos. Parece que os jovens, os grandes consumidores deste género de música, não têm paciência (ou será incapacidade de atenção ?) para se focarem em algo que vá além dessa curta duração. A música conceptual estaria, pois, ao nível do livro: exige tempo e concentração. Talvez por isso, esses sejam artefactos pouco consumidos por uma juventude formatada pelo modelo conciso e fatiado da publicidade e do videoclip.
Amor à portuguesa
Neste ‘romance escrito em verso’, de Maria Rosário Pedreira, tudo anda à volta de um triângulo amoroso: duas amigas «graças», «Loira uma, outra morena, /Uma acendia desejos, /Na outra havia mistério», e um homem que «não presta» pois «Quem tudo quer, nada tem». De entre as duas, a história de «um amor tão grande» é narrada por aquela que se sentiu «escolhida» pois subiu «ao altar», afinal, para se tornar uma «fada do lar»; e, pouco depois, experimentou como «a traição é fogo posto /A arder no meu coração.»

Romance(s) é, na minha perspectiva, um verdadeiro amor à portuguesa: para além dos ingredientes que Alberoni (1979) enunciou em Enamoramento e Amor 3, tem outras dimensões de género que evidenciam o padrão comportamental luso: (i) a sistemática infidelidade masculina: «Ele anda todo embeiçado /E eu sei que há loura na costa»; (ii) a auto-anulação feminina: para preservar o que «Tomara que não se acabe», porque acredita que «Os grandes amores não morrem», tudo faz para manter o casamento e a felicidade do marido (a qualquer preço); tal é bem ilustrado nestes versos:
«A mim não me pesa a culpa,
Mas, se culpada me crês,
Eu confesso o que não fiz.
E até te peço desculpa
Mesmo não tendo de quê,
Só p'ra te ver mais feliz.»
Só após muitos ciúmes, invejas, brigas, intrigas, suspeitas e traições, conclui «Que vivo ao lado de um estranho» que «Já não presta para mim.» Resta-lhe então «Chorar e lamber a ferida», mas nada será como dantes: «Meu coração ficou cego /Aos encantos de quem vem».

Uma das questões que emerge desta história é saber se os maridos se perdem pela ‘amante’ que tem engenho e «arte /De manter acesa a chama /Até vir a madrugada» ou se, afinal, como diz Inês Pedrosa (2005: 213) 4:
«Os maridos não se roubam, perdem-se».

Notas
1. ‘Lirismo e tragédia, no teatro como no fado’, Público Ípsilon, 19/07/19, pp. 18-9.
2. ‘O filme de Aldina Duarte’ entrevista realizada por Nuno Pacheco; ‘Oficina poética do desgosto e do ciúme’ de Gonçalo Frota, Público Ípsilon, 24/04/2015, pp. 24-7.
3. Francesco Alberoni (1979) Enamoramento e Amor. Venda Nova: Bertrand.
4. Inês Pedrosa (2005) Crónica Feminina. Lisboa: Dom Quixote.

Discografia de Aldina Duarte
Apenas o Amor (2004) EMI - Valentim de Carvalho
Crua (2006) EMI Music Portugal2
Mulheres ao Espelho (2008) Roda-Lá Music
Contos de Fados (2011) Roda-Lá Music
Romance(s) (2015) Sony
Quando Se Ama Loucamente (2017) Sony
Luís Souta

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