Os novos heróis
(A propósito de um livro intitulado Conversas com a Alma,
de Marta Guerreiro dos Santos)
Pode ser confundido com um livro de auto-ajuda e pode ser lido dessa forma, mas não foi
assim que o li. Li-o como a autobiografia de uma heroína. Por vezes, os heróis podem ser
confundidos com loucos, porque desafiam as convenções, as verdades confortáveis e o senso
comum. Inicio este texto com a visão real de um arco-íris à minha esquerda. O arco-íris não
existe, contudo eu vejo-o. Sei que estou a escrever um texto difícil para uma escritora com um
pé no cânone e outro nem sei bem onde. Ao escrever este texto, retiro o pé que se apoia no
cânone e fico totalmente em desequilíbrio. Mas o arco-íris tranquiliza-me. Já houve de tudo,
neste dia: sol, chuva, sol e chuva, granizo, e agora o arco-íris. Numa posição estática não há
equilíbrio, há rigidez. Com um arco-íris como apoio podemos experimentar levantar um
bocadinho os pés do chão.
Suponho que no momento de viragem (talvez tenham sido vários os momentos, mas um terá
sido determinante), Marta Guerreiro dos Santos tenha tido um arco-íris à sua esquerda na
forma de qualquer outro sinal que para si fosse eloquente. Aliás, ela refere-o no final do livro:
o sinal.
Imagine agora o leitor, a leitora, que tem pela sua frente uma carreira brilhante. É jovem, formou-se em veterinária, dá consultas e faz cirurgias, tudo corre tranquila e promissoriamente. Aparentemente, pois há uma inquietação muda que vem tentando silenciar. Algo muito embaraçoso que, se vier à luz, poderá atrair o opróbrio dos seus pares. Afinal, move-se num meio científico. A mente diz-lhe que deve esconder o seu segredo como uma vergonha. Mas a alma não concorda, não pode concordar com a mentira, ainda que sob forma de omissão. E quando oprimida, a alma, cansada de, inutilmente, gritar, recorre ao corpo. Este grita de uma forma muito mais convincente, porque dói, porque ameaça com a ruína, a destruição. Foi o que aconteceu. Aquela que na altura era veterinária e cirurgiã, Marta Guerreiro não podia, não sabia, não queria, temia revelar que conversava com os animais, que sabia com muita exactidão o que eles sentiam, pensavam e até julgavam. Era algo de incompreensível no mundo dos sãos. Tanto mais que vinha de uma família de médicos. Mas tal como o canavial de O Princípe com Orelhas de Burro, que não se conteve e teve de gritar a verdade, também o seu corpo começou a revelar aquela que é a linguagem mais eloquente quando todas as tentativas da alma falharam: a doença. Étienne Guillé, químico francês, investigador e grande figura da radiestesia contemporânea, chama a estas doenças, as doenças cósmicas. Perante elas, ou o ser compreende e coopera, ou resiste e sucumbe. Marta Sofia Guerreiro dos Santos compreendeu, cooperou, revelou. O corpo curou-se, a alma também, mas o processo não foi automático. Demorou alguns anos, como veremos. Numa primeira fase, o que aconteceu foi que tomou a corajosa decisão de deixar de exercer quer atendimentos, quer cirurgias, e passou a transmitir as suas conversas com os animais. Isto teve como consequência um muito mais profundo conhecimento daqueles, o desvelar da missão destes silenciosos e humildes amigos tão antigos junto dos humanos, e curas surpreendentes de uns e de outros. Instalou o seu extraordinário consultório sobre um finíssimo fio no meio do ar. Espantosamente, apesar da presença do medo e da ausência de rede, foi conseguindo equilibrar-se. Mas ainda não estavam as provas todas passadas. Apesar do entusiasmo de todos os que iam sendo tocados por esta experiência, havia o julgamento dos pares, a incompreensão das pessoas em geral, as suas próprias (ainda) resistências. De que os obstáculos exteriores eram apenas espelho. Um dia, como conta neste livro, alguém a desafiou a entrar em contacto com um familiar morto. Marta, apesar de ser obrigada a aceitar as evidências validadas pelas pessoas que a procuravam para as comunicações com os animais, continuava céptica acerca da continuação da vida para além do mistério chamado morte. A verdade é que o contacto aconteceu e toda a informação recebida era estranhamente verdadeira. Isto continuou a suceder, com pessoas do outro lado, com animais do outro lado. Um dia, durante uma conversa, sem me conhecer de lado nenhum, sem saber nada da minha história pessoal, comunicou-me que uma criança, meu filho, estava ali. Nunca contei isto publicamente, como se tivesse o mesmo receio que ela já tivera: o ultraje, a afronta, a injúria. Imaginem a minha surpresa, a minha comoção, o meu choque: por não fazer parte do meu sistema de crenças uma situação deste tipo, por não crer ser possível voltar a contactar com um filho morto, por ser a última coisa que alguma vez pensei possível acontecer. Isto teria ficado no esquecimento, se o que ela me disse que ele lhe estava a transmitir não tivesse sido da ordem do mais absoluto segredo. Não que fosse algo secreto, poderia ter sido partilhado, mas nunca o fora. Algo que apenas eu e ele tínhamos vivido de modo muito expressivo, que mais ninguém soubera. Num contexto de jogo, com os seus amigos, no terraço da nossa casa, que apenas entre nós, com uma troca de olhares, “comentáramos”. Foi esse episódio absolutamente inquestionável, que ele escolheu para sinalizar o momento, conhecendo o cepticismo da mãe que tinha. Foi a coragem de Marta Sofia que me proporcionou um dos encontros mais marcantes e desconcertantes da minha vida. E de muitas outras pessoas.
O primeiro livro que li dela chama-se Conversas com Animais, e este, mais recente, tem como título Conversas com a Alma. O que encontro de mais importante, o que marca a diferença e faz a distinção em relação a tantos outros livros em que o tema é a espiritualidade, são as descrições dos extraordinários encontros que continuou a ter com seres privados de expressão humana visível ou compreensível. O seu trabalho, que me parece sobretudo uma missão, foi evoluindo da expressão dos animais vivos para a expressão dos que viajaram para outros lados, animais ou pessoas, e neste momento resgata a palavra de todos os que não podem comunicar com a linguagem verbal humana: bebés, pessoas com deficiências que as privam da linguagem, ou deficiências mentais como autismo, em relação às quais é muito difícil a comunicação, pessoas com Alzheimer e outro tipo de doenças incapacitantes. Verdadeiro serviço público, com possibilidades inúmeras ainda por explorar, mas que já iniciou. Um aspecto em comum, talvez para alguns surpreendente: todos estes seres, ao nível do espírito, têm um domínio da compreensão e da expressão das coisas da vida e da morte que ultrapassa as suas limitações visíveis. Não sei muito bem como se apresenta o panorama em Portugal da comunicação interespécies, mas sei de alguns veterinários que já começam a encarar o seu trabalho com os animais com uma consciência nova. Tive também conhecimento, a outro nível, do trabalho seriíssimo e notável de Sónia Rinaldi, que no Brasil regista, há pelo menos trinta anos, imagens e comunicações áudio de pessoas e animais deste e do outro lado do véu, com espírito minucioso e científico que pode ser acompanhado na sua página.
Sinto que há um mundo até agora oculto que alguns cientistas mais corajosos começam a certificar, por não terem como não. Num tempo onde, apesar de inúmeras evidências científicas, um positivismo irracional ainda impera (quase a cair do pedestal, mas agarrando-se desesperadamente), seguir uma via ainda não certificada pelos poderes (político, científico, económico, intelectual, cultural…) equivale a um provisório suicídio. Felizmente, sempre seguido de um glorioso renascimento, que, contudo, pode demorar. É uma vereda escura e não garante luz ao fundo do túnel, mas quem sente a imperiosa determinação de nela entrar não deixa de o fazer, mesmo com todos os medos que a cada curva o assaltam.
Quanto a nós, cada um vai fazendo o seu caminho, sendo que o mais importante é que o faça na sua verdade e autenticidade e nas suas incertezas, com total reverência para com o percurso do outro, que é sempre diferente, mas nunca inferior ao seu. Chama-se a isto respeito e liberdade.
Risoleta C. Pinto Pedro,
25 de Abril de 2019
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