Esta madrugada faleceu Lourdes Pintassilgo que foi Primeira-Ministra, em Portugal, no distante ano de setenta e nove, do século passado, num dos governos de iniciativa presidencial que, no primeiro mandato, o General Ramalho Eanes achou por bem impor ao Parlamento, depois deste fazer cair o segundo governo chefiado por Mário Soares em coligação com o CDS.
Politicamente sempre estive longe de concordar com a senhora, cujo pensamento na maioria das vezes se alicerçava em falácias de que alegremente fazia uso numa amálgama intelectual em que, num ou noutro caso, as conclusões mais se pareciam com delírios do que com algo política e socialmente exequível.
Não mais esquecerei o debate que, nas presidenciais de oitenta e cinco, travou com o Dr. Salgado Zenha que justamente lhe pôs a nu o caos teórico em que ela baseava as suas propostas e que reflectia a verdadeira manta de retalhos em que se materializava a sua base de apoio.
Seja como for, foi uma mulher que abriu caminho à afirmação feminina em terrenos que tradicionalmente foram exclusivos dos homens e, nesse sentido, é merecedora do maior respeito e a sua memória deverá ser louvada por isso, pois nos anais, pelo que fez, o seu nome já estará gravado e será recordado enquanto houver Portugal e a sua História continue a ser feita.
Com a idade de setenta e quatro anos o que parece ser simbólico, na medida em que a revolução dos cravos ocorreu em ano homónimo da última centúria, sucumbiu a uma paragem cardíaca.
O que se entende genericamente pela libertação da mulher, a par com a superação dos factores propiciatórios do racismo, é a última fronteira que deveremos transpor para entendermos a Humanidade como um todo e a mesma espécie, em que as desigualdades biológicas advindas do sexo ou das características físicas de cada um não têm que necessariamente repercutir-se no plano das relações e até das hierarquias sociais. Quando aí chegarmos, se alguma vez isso vier a acontecer, estaremos aptos a pensar em termos de homem universal e aí deixaremos de ter o suporte mental para aceitarmos as razões da guerra e sobretudo as suas consequências. É claro que esta última sempre teve outras motivações que nada têm a ver com a elaboração teórica de que estamos a falar, mas mesmo nas situações dos carrascos de Mlyderzec, foram sempre pessoas que puxaram o gatilho para tirar a vida a outras, mas nunca com o pressuposto explicitamente adquirido de que o estavam a fazer sobre o seu semelhante. Nos casos extremos, as vítimas foram vistas como sub-humanas e, por isso, susceptíveis de serem aniquiladas; mas mesmo na simples rapina, os usurpadores sempre reconheceram a inferioridade dos que pilhavam e que, naturalmente, os expunha a tais vicissitudes.
Por isso é que deixará de ser racionalmente possível quando tivermos por adquirido que não faz sentido pensar que as mulheres não podem aceder a qualquer lugar na sociedade. Aliás, a idiossincrasia a que poderá dar lugar, sequer terá isso no quadro das possibilidades. Na verdade, nada prova que elas não são capazes de assimilar os conhecimentos e as competências requeridas e só podemos considerar insensata a vergonha ou os preconceitos relativamente ao facto de mulheres chegarem a postos de chefia no interior de organizações sociais como, por exemplo, uma empresa ou um departamento público. E tudo isto para além do princípio geral que nos lembra que a dignidade é a mesma para todos os seres humanos quando nascem e só estes, por via dos comportamentos e acções, a podem delapidar.
A libertação da mulher é pois um dos factores da liberdade para a Humanidade como um todo e por isso deve ser um propósito que se traduza no quotidiano de cada um de nós, a começar por aqueles que tomam por bons os princípios da democracia.
E é justamente por tudo isto que nos curvamos perante a memória de Maria de Lourdes Pintassilgo.
Dança de andorinhas no fundo alaranjado do horizonte.
Sábado e descanso, a tranquilidade do lar enquanto as miúdas brincam e a Luísa foi à praia.
Como ninguém quer, palpita-me que vou comer caracóis sozinho.
Alhos Vedros
10/07/2004
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