FLOR DAS MARÉS
Uma Revista que se pretende livre, tendo até a liberdade de o não ser. Livre na divisa, imprevisível na senha. Este "Estudo Geral", também virado à participação local, lembra a fundação do "Estudo Geral" em Portugal, lá longe no ido século XIII, por D. Dinis, "o plantador das naus a haver", como lhe chama Fernando Pessoa em "Mensagem". Coordenação de Edição: Luís Santos.
sábado, 23 de abril de 2022
Paulo Landeck, ao Dia da Terra
sábado, 9 de abril de 2022
PALAVRAS "IN MEMORIAM" de LUÍS GUERREIRO
Boa noite a
todos!
Agradecer,
antes de mais, o convite da Junta de Freguesia de Alhos Vedros para dizermos
algumas palavras nesta sessão de homenagem ao amigo, e ao artista, Luís
Guerreiro.
Falar do
Luís Guerreiro, é falar de uma relação de amizade com cerca de 50 anos. Foram
inúmeros os momentos em que juntos celebrámos a vida, foram muitas as tertúlias
em que participámos, em variados contextos, onde sempre estiveram também muitos
outros amigos. Por aqui, pela nossa terra, juntos fomos desfiando os anos: por aqui
brincámos, estudámos, confraternizámos, conspirámos, trocámos energias através
das quais nos fizemos homens e, daí, as múltiplas cumplicidades que nos foram
constituindo.
E, como dar
testemunho da nossa vivência, é também honrar amigos e amizade, na
impossibilidade de nomear todos, relembramos os que em determinada altura lhe
foram particularmente queridos, como foram os casos do Paulo Gil e do Lídio,
que ainda mais cedo partiram, o que nos trás à memória alguns dos velhos
lugares de então que para ele foram significativamente importantes, como foram
o interessante projeto do Grupo de Teatro da Velhinha, ou a Cooperativa de
Animação Cultural de Alhos Vedros, certamente entre vários outros lugares igualmente
importantes.
Mais
recentemente, entre outros momentos, pessoas e instâncias onde o Luís se terá
realizado, gostaria aqui de relembrar o “TAL”, Temas Artísticos Livres, uma
experiência fugaz que mais uma vez nos juntou, com outros amigos, mas que nos
permite recordar da sua enorme costela brasileira, país que muito amou e onde
levou a sua obra; e, a este propósito, recordar também do seu grande amigo
“Delei”, artista plástico brasileiro muito próximo da casa, e também de um
outro, o Zé José, realizador de cinema com quem tivemos o prazer de
confraternizar na Oficina dos “Arquivos Guerreiro”, e também, claro, umas
palavras para a sua parceira de sempre, a querida amiga de há muitos anos, e
colega, Ernestina Sesinando (Tina para os amigos), e aqui, acentuando também da
relação exemplar, ternurenta, amiga e cúmplice que sempre caracterizou a sua profunda
e duradoura relação conjugal.
Como
sabemos, o Luís Guerreiro, um espírito livre, anarquista, amante da boémia, era
um homem de causas e, entre elas, revelou-se como um incansável lutador pela
emancipação e desenvolvimento de Alhos Vedros, onde sempre demonstrou uma
inabalável coragem, em tempos onde ser crítico era sinónimo de acrescidas
dificuldades, de inserção social, falta de trabalho, dificuldades financeiras.
Falar do Guerreiro que é o Luís, do tamanho do coração do Luís, é falar de uma
causa que muito se estende para lá de Alhos Vedros, que transborda de terra e
universo, pois que com equivalente amor com que se refere a Alhos Vedros, assim
faz com Portugal, com a Língua Portuguesa, com o mundo, e isso está bem
espelhado em toda a sua extraordinária obra que, em boa altura, aqui
homenageamos. Estávamos a pensar, por exemplo, nos seus incríveis painéis sobre
as “cidades flutuantes” que um dia, esperamos, possa ser exposto no futuro
Museu para admiração de todos... Mas, eis aqui, nesta renovada Capela, uma das
suas últimas obras, ao que sabemos, de difícil execução que muito lhe custou o
suor do rosto, como foram a recuperação e o restauro de alguns destes
magníficos azulejos que nos permitem melhor disfrutar deste maravilhosos espaço
que hoje nos reúne, a Capela da Santa Casa da Misericórdia de Alhos Vedros que
tanto almejámos.
Falar na extraordinária obra que o Luís Guerreiro nos deixa, será, sobretudo,
tarefa futura que teremos de cuidar e que é impossível deixar aqui em palavras
que se querem breves. Chamemos apenas a atenção dos autarcas locais, além do já
referido painel sobre as “Cidades Flutuantes”, de outras duas obras de particular
valor que requerem especiais cuidados: referimo-nos aos lindíssimos painéis que
estão expostos nas paredes da Biblioteca de Alhos Vedros e que merecem ser
protegidos, sinalizados e, porventura, legendados, porque nos parecem valiosos
demais para ficarem simplesmente entregues a si próprios; e, por outro lado,
relembrar do significativo painel de azulejos, de 3 por 12 metros, sobre temas
da história local recente, que está a ser concluído por artista de referência
no ramo da azulejaria. Certamente, mais um valioso painel da representativa
herança artística que o Luís nos lega e que deverá cuidado com critério, por
quem de direito.
Por fim, fazer referência a um desejo familiar que subscrevo: que entre a Oficina dos Arquivos Guerreiro e o espaço do FAVO, onde agora se expõem algumas das suas obras, seja possível criar um espaço de formação que permita dar continuidade à obra e ao ramo artístico que o nosso amigo em boa hora iniciou por aqui.
Obrigado
Luís Guerreiro. Até sempre. (Luís Santos, no auspicioso dia de 3.4.2022)
sábado, 2 de abril de 2022
Graffitar a Literatura (III)
Abandonada estou e arruíno-me. Não cumpro mais a nobre função que é a minha: dar abrigo. Mas os graffiters viram em mim uma tela gigante, deram-me colorido, luminosidade, animação. Renasço, então, nas fachadas exteriores. Grata fico à criativa Arte de Rua e, no caso presente, a Belém, autor deste engraçado mural (primeira edição do Muraliza – Cascais, em 2014. Agora, até os pass[e]antes (quase sempre distraídos) param, miram, comentam… e, por regra, clicam, tornando-me perene. Por que o desmoronamento, esse, está certo e anunciado.
Falemos agora da velhice das pessoas (não a dos prédios). A senectude, no
feminino, tem os seus estereótipos: o carrapito, os cabelos brancos, os óculos
na ponta do nariz, o interminável tricot… Numa outra perspectiva,
Maria Judite de Carvalho (1921-1998), dedicou uma crónica aos «imprestáveis»,
os “Velhos” – incluída em O Homem no Arame (1979) textos
publicados no Diário de Lisboa entre 1970 e 1975 (reeditado em
2019 pela Minotauro: um dos três livros inserido no IV volume das Obras
Completas de MJC, pp. 209-210).
Na sua «iluminante sobriedade estilística», a escritora aborda a questão
(eterna?) da velhice nestes termos:
«Ei-los que esperam ao
sol. Esperam o quê, quem? Estão sentados, vegetais com raízes no dia de ontem,
esquecidos de quem são, de quem foram – foram-no há tanto tempo! – e com frio.
Desconhecem este mundo em que subsistem e que os ignora. (…) Só sabem – sentem
– que são velhos, inúteis, pesados aos filhos e mais ainda às noras e aos
genros. Pesos mortos que têm de ser alimentados, vestidos, alojados,
suportados. (…)
Muitas vezes ao dia
dizem (ou pensam) que no tempo deles, que dantes… Sem saberem que a maior
maravilha desse tempo era a sua idade jovem. Agora nada lhes pertence, estão a
ocupar o espaço indevido, parece-lhes às vezes que as pessoas em redor falam
outra língua, chegaram de outro planeta. E gostariam de se indignar, mas quem
para se indignar com eles? Já partiram os que podiam compreendê-los. Dos netos
e até dos filhos separa-os um fosso que ninguém procura – para quê? –
estreitar.»
Judite de Carvalho mereceu um lugar n’ O Cânone, em texto de Isabel Cristina Rodrigues, pp. 347-354, essa grande obra colectiva de referência (533 p.) coordenada por António M. Feijó, João R. Figueiredo e Miguel Tamen, editado em 2020 pela Tinta-da-China. Aí, se evidencia que
«os vários tipos de cárcere que enformam o viver das personagens femininas de Maria Judite de Carvalho (…) determinam a imposição de uma vida de janela entre o insípido existir de cada uma delas e o mundo vivível lá fora, instituindo na experiência dos dias que lhes é comum uma espécie de limiar entre o viver e o não viver, entre o fora em que não participam e o dentro da sua astenia e do seu desamparo.»
Nos 100 anos do seu nascimento, a Associação Portuguesa de Escritores
promoveu, ao fim da tarde de 08/11/2021 na
Biblioteca Palácio Galveias - Lisboa, a sessão “Maria Judite de Carvalho: Reencontros em tempo de
Centenário”. À semelhança de outros encontros do mesmo género
levados a cabo pela APE, para além das intervenções
dos membros da “mesa” (aqui, designadamente, a sua neta Inês Fraga e a
professora universitária Isabel Cristina Mateus) houve a resposta
dos sócios da Associação ao convite «traga um livro e dê voz à obra do autor»;
tal permitiu que lá fossem lidos passagens das muitas obras de Judite de
Carvalho. Um formato bem participativo onde o público (leitor) mostrou a
qualidade ímpar de uma escritora que, em vida, esteve algo ofuscada pela
notoriedade de seu marido – professor, escritor e cidadão empenhado – Urbano
Tavares Rodrigues.
Mas a qualidade é como o azeite, vem sempre ao de cima. É tudo uma questão de tempo….
Post scriptum: A trepadeira selvagem das traseiras alastra-se imparável pela fachada lateral e tapa já parte substancial da obra artística de Belém. Acresce a acentuada degradação do edifício. Danos inevitáveis de uma arte que não pressupõe qualquer processo de "restauração".