Luís Souta
REALIDADE OU FICÇÃO?
«a fonte de todos os erros
da crítica era uma confusão ingénua entre a literatura e a vida. (…)
A vida era um sistema aberto
e a literatura um sistema fechado.»
(A Troca, David Lodge,
1995:39)
As
ligações, proximidades, e sobreposições entre o mundo real e o mundo ficcional
são, com certeza, das questões mais antigas e recorrentes nos debates sobre
literatura. Tendo presente o alerta de Earl Miner (1992) para uma destrinça
significativa, a de que a «literatura é ficção», na perspectiva do mundo
Ocidental, enquanto que na perspectiva do Oriente asiático a «literatura é factual»,
iremos aqui sintetizar alguns posicionamentos, a partir, principalmente, do
contexto português.
Ainda que Aquilino defenda
que não se deve «conceber o romance como um traslado da vida ou o depoimento
num tribunal» (1969:16), que o colocaria na categoria de um realismo
documental, o facto é que, para outros (Alexandre Pinheiro Torres e a imensa
plêiade dos neo-realistas) «a verdadeira ficção se constrói sempre a partir da
própria realidade e a grande razão para criar um romance é ainda a verosimilhança
da sua história, intriga e enredo romanesco»1. No extremo, podemos
ter a abolição completa dessa linha que separa a realidade e a ficção. Por
exemplo, António Alçada Baptista reconhece a «impossibilidade de escrever coisa
que não tenha conseguido viver»2. E Teolinda Gersão generaliza-o:
«nós só escrevemos sobre aquilo que conhecemos»3; daí ela apontar
duas qualidades intrínsecas ao escritor «ser um bom observador» e «ter os pés
bem assentes na realidade».
Um dos nomes maiores do
movimento neo-realista, Alves Redol, “à maneira de prefácio” ao seu livro Fanga, afirma que «as obras se parecem
mais com o seu tempo do que os seus autores» (1963:38).
Compare-se, por sua vez, com
o que Miguel Torga enuncia: «De resto, como poderia o poeta não ser do seu
tempo, se ele é sempre a mais alta consciência de um tempo? O poeta não é uma
abstracção. É um ser real, que existe no real. Por isso, não poderá evadir-se
da vida, que o marca e é marcada por ele. A fundura dessas mútuas cicatrizes é
que varia» (1953:77). Ambos perfilham da ideia de ligação estreita ao tempo
(histórico) e sendo por ele “marcados”; quer se acentue a influência
directamente na obra ou no autor, é sempre essa realidade que acaba por
condicionar o produto literário. Basta lembrar que os livros de Torga, em
particular os três volumes de A Criação
do Mundo, têm muito de autobiográfico; e em Redol, mesmo as personagens por
ele criadas partem de uma realidade vivida. Podemos assim dizer que os dois
posicionamentos se conjugam.
Por sua vez, Irene Lisboa,
logo na abertura da sua novela autobiográfica Começa Uma Vida (1940), confessa não saber, com exactidão até que
ponto se manteve fiel à realidade, e atribui as “culpas” à essência da própria
memória por essas eventuais efabulações: «Que tom dei eu às coisas conhecidas
que contei – o de fábula ou de realidade? Aí está um ponto sobre que posso ter
dúvidas. E tê-las sobretudo pelo gosto da memória, que sem querer tudo nivela e
suaviza, que de paixões e de banalidades tira indiferentes histórias, novelas…»
«Memória e imaginação (…)
são a matéria-prima do escritor», segundo Mário Ventura. Ora o balancear
desigual destas duas componentes é que dará, relativamente ao real, o grau de
afastamento (maior enfoque no imaginário) ou de proximidade (acentuação da
memória). E neste caso, a tendência para a procura de identificações dessa
escrita com eventuais episódios autobiográficos. Daí o aviso prévio de Júlio
Conrado na sua novela O Deserto Habitado
(1974:10): «inspirada na vida real mas sem conotações biográficas.»
Mas até neste registo (o das
reminiscências), são inevitáveis falhas e incorrecções da memória. A precisão
dos factos, dos locais e, acima de tudo, dos comportamentos e discursos das
pessoas perde-se no tempo, mesmo para aqueles a quem se reconhece uma “memória
de elefante”. Mais ainda, quando esse processo de recuo temporal se faz muitos
anos depois dos acontecimentos, como é o caso dos tempos de escola; em regra,
não há deles registos escritos, pois na infância e juventude o primado da
oralidade sobrepõe-se à escrita, que em alguns casos se ficou, quando muito,
pelo “diário” de juventude4, redigido com outros objectivos que não
o de um memorando para uso futuro. Por isso, é de esperar que essas lembranças
não reflictam com exactidão o real acontecido.
Mas mesmo assim, seria então
mais plausível que o género autobiográfico, que se traduz quer em «memórias» e
«confissões» quer em «diários» e «recordações» quer em «autobiografias», fosse
o melhor depositário dessa fidelidade ao passado vivido, a “garantia da
verdade”, face ao seu carácter testemunhal onde há identificação plena entre
autor e narrador. Puro engano, pois, como o garante Torcato Sepúlveda, «a
autobiografia pode ser tão mentirosa como o romance»5. Curiosamente,
Ruben A. escolheu como epígrafe, para os seus três volumes de autobiografia O Mundo à Minha Procura, a frase síntese
de Henry Miller em The Books in My Life
(1963) «Autobiography is the purest romance. Fiction is always closer to
reality than fact.»6
Na produção literária, são
vulgares os traços comuns entre personagem e autor, sem que tenhamos
forçosamente que estar a falar de auto-retrato ou autobiografia. Como o nota
João Aguiar o «jogo entre autor e personagem é muito pouco claro, muito pouco
racional, muito equívoco, mesmo para o próprio autor. Onde é que nós começamos
e acabamos? Onde começa a personagem e ela acaba, é complicado dizer»7.
O escritor Manuel da Fonseca
declara numa entrevista8: «Uma vez lançado, a realidade e a
invenção, mascaradas, jogam às escondidas comigo – nunca sei ao certo, em cada
momento, qual delas preside ao que escrevo.» Para numa outra entrevista, à Gazeta Musical de Todas as Artes, em
1960, esclarecer como incorpora o real no seu processo interior de criação: «É
preciso que a realidade seja já em mim pura invenção para que eu a reconstrua,
para que eu a cante»9. E Alexandre O'Neill, posicionando-se numa
outra corrente literária (esteve muito ligado aos surrealistas), corrobora o
processo descrito anteriormente, quando escreve, na poesia intitulada “Seixos”:
«A sua memória tinha passado toda para a sua imaginação…» (1982:476). O
imaginário e o real são assim uma realidade indivisível. E do poeta e do
prosador já não sabemos se são ficcionistas da realidade ou realistas
ficcionistas. Uma questão de ângulos de visão?
Urbano Tavares Rodrigues
parece mais cauteloso no “jogo de duplas realidades”, a exterior e a interior
ao escritor: «ao tentar reproduzir a realidade de certo modo crio uma realidade
paralela que tem as bases no meu mundo pessoal»10.
Já Fernando Pessoa, na sua
singularidade, coloca-nos numa outra dimensão. Encarar a realidade como
interior a nós próprios e atribuir-lhe veracidade e autenticidade decorrentes
dessa génese: «as verdadeiras paisagens são as que nós mesmos criamos, porque
assim, Deuses delas, as vemos como elas verdadeiramente são, que é como foram
criadas». Célebre o primeiro verso da poesia “Autopsicografia” – «O poeta é um
fingidor» (1994:110) – glosado em múltiplos contextos de análise. Nesta lógica
do «Sou já quem nunca serei / Na certeza em que me minto.» (Poesia Inéditas, p. 72), o poeta não nos
mereceria “confiança” como mediador do nosso desejo de conhecer melhor o real.
Mas num outro poema – “Isto” – acaba por clarificar melhor que fingimento é
esse: «Dizem que finjo ou minto/ Tudo que escrevo. Não./ Eu simplesmente sinto/
Com a imaginação./ Não uso o coração» (1994:111).
Em Vergílio Ferreira, no
romance Para Sempre (1983), podemos
encontrar pontos de convergência com as posições acima enunciadas por Fernando
Pessoa: «E nós diremos então que o real não existe, que a palavra não o designa
mas se basta a si mesma e em si mesma se fecha. Nós diremos então que o real é
uma ilusão incrustada na própria palavra que o diz. Nós diremos então que a
vida mental do homem é uma ficção de si própria.»
Atente-se, ainda, em dois
poetas mais próximos da nossa contemporaneidade: Eugénio de Andrade considera
que «a poesia é a ficção da verdade» (1995:19) e Pedro Tamen, reconhecendo o
carácter confessional e realista da sua obra, declara ser «raro o poema meu que
não tem por trás, simplesmente de uma maneira transfigurada (e transfigurada
por defesa), elementos concretíssimos do quotidiano»11.
António Lobo Antunes, em
entrevista ao Notícias Magazine12,
aborda a questão da realidade vs ficção nos seguintes termos: «As crónicas
também são ficções, como tudo. O Malcom Lowry dizia que não era mentiroso,
criava ficções autobiográficas13. Nós partimos de uma base real e
depois inventamos sempre um pouco. É inevitável.» Por sua vez, no livro que
reúne as crónicas de José Saramago pode ler-se: «Todas as minhas histórias são
verdadeiras, só que às vezes me foge a mão e meto na trama seca da verdade um
leve fio colorido que tem nome fantasia, imaginação ou visão dupla» (1971:61).
Assim, entre a “pura
invenção” e o “realismo puro” há um sem número de outras gradações que decorrem
da vontade de produzir cruzamentos e misturas, conjugando a realidade e a
ficção (esse «difícil caminhar na zona cinzenta dos limite de uma e de outra»14).
No entanto, importa ter presente as palavras quer de Mário Dionísio, de sentido
contrário à proposta do realismo stendhaliano: «A arte não pode espelhar a
natureza, mesmo que o queira» (1973:125), quer as de José Saramago «o objecto
da arte não é a imitação» (1984:109).
Em suma, «a realidade tem
muitas faces» como diz Pascoaes (1937:73) e apesar dos textos ficcionais serem,
muitas das vezes, «mais reais do que a própria realidade», para Clara Rocha «a
reconstrução do real é a própria verdade do literário» (1992:38). Ideia que
podemos ver retomada no livro A História
de Murasaki da antropóloga Liza Dalby, especialista em cultura japonesa, em
que sustenta: «a ficção cria a sua própria verdade» (2000:452).
E um aviso adicional chega
ainda de Bourdieu: «Objectivar a ilusão romanesca, e sobretudo a relação com o
mundo dito real que ela supõe é lembrar que a realidade pela qual medimos todas
as ficções não é mais do que o referente reconhecido de uma ilusão (quase)
universalmente partilhada» (1992:56).
Um esclarecimento final
chega-nos de Raúl Iturra, que dedica um ensaio de Antropologia da Educação a
responder à pergunta “O que é a ‘realidade’?”. Partindo da ideia, cada vez mais
consensual, que a realidade é uma construção social, ele acaba por nos levar a
um ancoradouro de convergência onde a dicotomia entre realidade e ficção se
tornaria numa (quase) osmose. Iturra adverte-nos que a «realidade é um conceito
que reflecte o ser humano na sua dupla dimensão de pensador e manipulador do
seu contexto.» O real seria então «uma visão imaginária, uma percepção
imaginária da consciência» (2000:28), quantas vezes um conjunto de ideias fantasmagóricas,
no dizer de Freud.
E assim sendo, não se vê
qualquer impeditivo de as incorporar num acervo de fontes (tidas como
“respeitáveis”) para a compreensão da sociedade, das interacções que nela se
desenrolam e, em particular, do ser humano, «esse poço sem fundo» (Teolinda
Gersão15), esse «labirinto de si mesmo» (Saramago, 1984:97).
Notas
1. Serafim Ferreira “Alexandre Pinheiro Torres ou a
história como ficção literária”, a Página,
nº 92, Junho, 2000, p. 29.
2. Entrevista de António Alçada Baptista ao DNA, nº 144, 28/08/1999, p. 22.
3. Entrevista de Teolinda Gersão ao Ensino Magazine, nº 14, Abril 1999, p.
15.
4. José Gomes Ferreira fala no «fadário
diarístico que me persegue desde a infância» (Passos Efémeros, 1990, p. 11).
5. Público,
suplemento “Leituras”, 1995.
6. «Sabe-se hoje que a George Sand se confessava
mais e melhor nos romances do que na autobiografia deliberada» (Miguéis,
1973:298).
7. Entrevista de João Aguiar ao DN, 31/03/2001, p. 36.
8. Citado no Dicionário
Cronológico de Autores Portugueses, vol. IV, 1998, p. 458.
9. Citado no prefácio de Mário Dionísio à 5ª
edição do livro Poemas Completos de
Manuel da Fonseca, 1975, pp. 18-19.
10. Entrevista de Urbano Tavares Rodrigues ao Ensino Magazine, nº 10, Dezembro 1998,
p. 4.
11. Entrevista de Pedro Tamen ao DNA, 23/02/2002, p. 14.
12. Entrevista de António Lobo Antunes ao Notícias Magazine, nº 404, 20/02/2000,
p. 34.
13. «Memórias ficcionadas» foi como
categorizámos o nosso livro A Escola da
Nossa Saudade (1995) e Mário Ventura (2001) classificou o seu Quarto Crescente como «A ficção da
verdade».
14. João Paulo Borges em entrevista ao Ípsilon, 26/11/2021, p. 20.
15. Teolinda Gersão in entrevista citada, p. 14.
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