quarta-feira, 28 de setembro de 2022

A ILHA

Luís Santos


Neste nobre estremenho lugar

                   Onde vêm as águas do Tejo

                   Trazidas pelo vaivém do mar

                   Existe uma pequena vila

                   Em si, tão só e tranquila 

                   Dando forma aos pensamentos

                   Desde o princípio dos tempos

 

                   Ao largo desta vila há uma ilha

                   Que a voz mansa dessas águas

                   Chama de eterna maravilha,

                   Num momento mais insensato

                   Chamaram-lhe "Ilha do Rato"

                   Mas nós, nos nossos sonhos a cores

                   Chamamos de "Ilha dos Amores"

 

                   Foi ela que em tempos de outrora

                   Sussurrou aos ouvidos do rei

                   Que se tinha chegado a Hora,

                   Sentira curiosidade ao pensar

                   Em quais os caminhos do mar,

                   E o Mestre de Avis, por causa de Dinis

                   Lá foi fazer o que ela quis

 

                   E à nossa ilha em homenagem

                   Camões escreveu um canto

                   Deixou Pessoa uma mensagem,

                   E um dia através dela, por certo,

                   Se há-de revelar o Encoberto

                   Como nos contou com carinho

                   O bom amigo Agostinho

 

                   Esta ilha tem uma vila

                   E esta vila tem um grupo

                   Que vai em direção ao Absoluto,

                   Ela em si lá vai estando

                   Os amigos a vão rendilhando       

                   E quem distraído passa

                   Nem vê que ela está cheia de graça


domingo, 18 de setembro de 2022

Textos de António do Carmo Alfacinha

 5.9.2022

UM POUCO DE MIM

Desde o momento em que optei por uma vida Espiritual, eu não sei se me tornei invisível para o mundo exterior, mas pode ser que sim. Porém nunca fui tão consciente da minha Existência como agora, nunca me senti tão protagonista da minha vida, e nunca desfrutei tanto de cada momento dessa minha Existência.

Descobri que não sou mais ou menos que ninguém; descobri o ser humano sensível que sou e também muito forte. Com as minhas misérias e  grandezas, com as minhas perfeições e imperfeições

Descobri que posso me permitir o luxo de não ser perfeito, de estar cheio de defeitos, de ter fraquezas, de me enganar, de fazer coisas indevidas e de não responder às expectativas dos outros.

Gosto de falar de sexo,não me importando de varias vezes me dizerem que um ser espiritual não deve abordar esses temas, Mas se o fizesse sentir-me-ia amputado de uma parte de mim. Por isso para mim , enquanto encarnado, espiritualidade e sexo podem muito bem conviver, sem quaisquer problemas.

E por tudo isso gosto muito de mim, de ser quem sou!


6.9.2022

As pessoas que amámos em outras reencarnações reconhecêmo-las num primeiro olhar, num primeiro contato, num primeiro toque....

Momentos unicos, maravilhosos, em reencontros de Almas !

Bom dia amigas e amigos !


6.9.2022

ORAÇÃO MATINAL

Sou o receptor de energias de Vida e Conhecimento inteligentes e essa inteligência flui no meu coração, além dos sentimentos, é uma certeza suave no eco do silêncio do meu Templo interior onde habita a minha Alma .

Mesmo que a minha MENTE fale mais alto, me dê motivos e me prove que estou errado, eu sei que tenho e devo manter-me digno do meu CORAÇÃO que compartilha sem impor, que fica sábio sem me enganar.

Na União Superior com o Pai Criador, o meu coração é o portador da Verdade.

E se eu quiser servi-lo, a minha mente deve ser silenciada.

Um dia, não quando eu quiser, a Sabedoria manifestar-se-à através das minhas palavras e o meu olhar irradiará a Luz do Amor que confortará todos os que por mim procurarem.

Assim será !


8.9.2022

Enquanto médico um dos meus campos de batalha será tentar explicar às pessoas que a toma de antidepressivos dificulta a Alma de cada um de nós tentar ser ela o timoneiro da barca da nossa vida. A todos que tomam se possível façam um desmame gradual sempre que a vossa Consciência já esteja disposta a adquirir Conhecimento e entrarem numa Vida Espiritual.

Bem Hajam!


8.9.2022

Digam o que disserem não há ninguem que não tenha medo de morrer, seja um ser espiritual ou não. A diferença está na quantidade, na qualidade desse medo. Naquele momento em que o coração deixa de bater, o ser espiritual tem no seu interior aquela vozinha que lhe diz "Já passaste por isso tantas vezes, é apenas mais uma vez, num milesimo de segundo tudo em ti e ao teu redor será Luz e Amor, E aquela maravilhosa visão de ter à nossa espera todos aqueles que nos amaram e a quem amamos em vida, até muitas vezes aqueles que se dedicaram de alma e coração em vida aos 4 patas nossos companheiros, tambem eles aparecem por lá aguardando-nos. Aconteceu quando tinha a minha mãe moribunda amparada por mim nos braços. Em coma de olhos fechados há varios dias, quando chegou esse momento os seus olhos brilhantes de Luz abriram-se na direção duma imagem que só ela via, e da sua face desapareceram todas as rugas, ficou lisa, bonita!


quinta-feira, 15 de setembro de 2022

Textos de José Flórido

 

LÍNGUA E LINGUAGEM

ORIGEM CONVENCIONAL OU NÃO CONVENCIONAL DA LÍNGUA


"O Deus eterno formou de terra todos os animais dos campos e todas as aves do céu, trazendo-os à presença de Adão para que Adão visse como Ele os nomearia e para que todo o nome que Adão viesse a dar a cada ser fosse o seu verdadeiro nome" (Génesis II - 19,20)

"A minha pátria é a língua portuguesa" (Fernando Pessoa)


Língua e linguagem não são a mesma realidade: A língua é um código constituído por um conjunto de símbolos; a linguagem é a utilização oral ou escrita desse código durante o processo de comunicação. Assim, a linguagem apoia-se na língua.  Mas esta, do ponto de vista da maior parte dos linguistas do nosso tempo, tem apenas uma origem convencional. Por isso, Pierre Guiraud afirma num dos seus livros sobre 'Semântica' que um dos postulados da linguística moderna é o facto da língua constituir uma série de símbolos arbitrários, 'não existindo qualquer relação natural entre o nome e o objecto nomeado'. Será, portanto, em virtude de uma relação meramente convencional que as palavras "cavalo", "cheval", 'horse' ou 'pferd' designam o mesmo animal. Mas será mesmo assim? Não pensam desse modo os que defendem a origem transcendente da língua. Alguns fundamentam-se na Tradição bíblica, segundo a qual (atente-se na citação acima apresentada), "Deus determinou que fosse atribuído a cada ser, não um  nome qualquer, mas o seu 'nome' (1) verdadeiro". E é interessante constatar que já vem de há muito  tempo essa controvérsia: Assim, entre os defensores da formação arbitrária das palavras, destacamos Demócrito e Aristóteles, sendo um dos seus principais argumentos (que ainda o é no nosso tempo) que se a formação das palavras não fosse arbitrária, existia apenas uma única língua. Mas entre os defensores da origem sagrada da língua, citamos Heraclito, Sócrates, Pitágoras e Platão, segundo os quais, os primeiros homens, dotados de linguagem, teriam, graças à sua intuição, atribuído os nomes em conformidade com a realidade intrínseca dos seres.

No entanto, a questão parece longe de estar resolvida. E tudo o que diz respeito ao segredo das 'palavras',  assume especial importância, a partir do momento em que se reconhece que as línguas, apesar da sua diversidade, se formam e evoluem segundo um processo  natural, expressando a psicologia e a história de cada povo. Foi certamente o que  Fernando Pessoa revelou, quando afirmou que "a sua pátria era a língua portuguesa". Não estava a pensar somente na origem 'convencional' da nossa língua. Pois, ainda que se não deva excluir uma certa arbitrariedade na sua formação, há, com certeza, outra realidade mais profunda por detrás, e para além de tudo isso..      

(1)   Note-se que 'nome' (do lat. 'nomen') significava propriamente a "essência" de um ser.

José Flórido, 4.9.2022


Comentário:

Luis Santos

Querido Amigo, vamo-nos permitir pensar em voz alta a partir das suas belíssimas palavras, por isso, perdoe as banalidades das perguntas que o seguem:

Trouxe-nos à memória um livro de há muito tempo que tem como título "A Escrita começa na Suméria". Não fazemos ideia da sua veracidade, mas faz pensar entre a expressão oral (linguagem) e a expressão escrita (língua), sendo provável que esta se tenha desenvolvido a partir daquela, na múltipla, imensa, diversidade linguística que conhecemos, na Torre de Babel.

Vem-nos também à memória o latim (e também a flor do lácio, a bela designação do poeta Olva Bilac sobre o ramo do latim donde terá derivado a Língua Portuguesa), hoje uma língua morta, mas também o sânscrito e as linguagens védicas somente na sua expressão oral, antes de terem forma escrita, talvez raiz mais funda das línguas indo-europeias... claro que o latim instituído no império romano lhe é posterior, mas, pergunte-se, donde vem o latim?

Situamo-nos, depois, no Velho Testamento "no início era o Verbo", ou seja, o som que, posteriormente, ganharia forma escrita. O som criador, o Verbo capaz de criar os céus e a terra. E naturalmente pergunta-se: será que a língua escrita alguma vez Lhe conseguiu equivaler-se? Ou, por outro lado, será que a Pátria do nosso querido poeta, a Língua Portuguesa, outrora língua franca no Índico, herança templária, alguma vez se Lhe tenha aproximado? Certamente tentou, agora que tenha conseguido lá chegar, duvida-se, não acha? Mas É a Hora.

 

A PALAVRA E O CONHECIMENTO SECRETO


"No princípio era o Verbo... " (João, 1, 1-4).

"No princípio era Brahma e com Ele estava "Vâk", a Palavra" ( dizem os textos védicos).

"O Verbo é chamado no Islão, "Kalimat Allâh" (a Palavra de Deus)

.

Como complemento de uma Reflexão anterior sobre a controvérsia entre o convencionalismo ou não convencionalismo da Língua, onde se põe em questão se existe ou não existe uma relação natural entre o nome e o objecto nomeado, transcrevemos este texto:

"Todas as tradições primitivas, gnósticas ou cabalistas ensinam que há um nome supremo, chave de todas as coisas, mas, também, que cada coisa e cada criatura possuem o seu verdadeiro nome em que se acha contida e expressa a sua natureza essencial, a sua situação e o seu papel na harmonia universal. Esta ideia está presente nas antigas civilizações. Conserva-se secreto o verdadeiro nome de Roma e dizia-se que Cartago fora destruída quando os romanos, por traição, ficaram a conhecer o seu nome oculto".

(...)

A linguagem é uma substância e uma força material, concebida não como uma evasão mental, uma operação abstracta, mas sim como um elemento do corpo e da natureza. Do mesmo modo que o espírito e a matéria, o significante e o significado  confundem-se na unidade.

Desta maneira, a maioria dos sistemas mágicos baseia-se no tratamento da palavra considerada como força realmente actuante. Existem palavras secretas, demasiadamente poderosas para serem manejadas pelos não iniciados e sobre as quais pesam interdições, como há palavras que constituem instrumentos operacionais da encantação e do exorcismo," (Louis Pawels, Jacques Bergier - "O Homem Eterno").

Este assunto, embora pareça de somenos importância para a generalidade das pessoas, representa, quanto a nós, uma questão fundamental, que exige um estudo profundo. Aquilo que, à primeira vista, parece não significar mais do que um entretenimento intelectual, pode, como neste caso, ser responsável pelo processo de degenerescência em que se encontra a sociedade moderna. Despertemos.

José Flórido
5.9.2022

 

Comentários:

Luís Santos

Será que esse(s) "nome(s) supremo(s), chave de todas as coisas", essas vibrações, ritmos, sons, esses mantras(?), "essas reentrâncias que se inscrevem no ar", podem ter plena correspondência entre tradição oral e escrita? Será que é neste sentido que se deve interpretar "a minha pátria é a Língua Portuguesa"? 

José Flórido

É uma observação muito pertinente. E a minha opinião talvez seja esta: Se há uma razão transcendente no facto da' minha Pátria ser a Língua portuguesa', então, esse nome supremo tem de estar presente nessa verdade. Mas, oportunamente, regressaremos a este tema... Abraço.

sábado, 3 de setembro de 2022

Literatura: o pão nosso de cada dia (VII)

 Luís Souta

REALIDADE OU FICÇÃO? 

«a fonte de todos os erros da crítica era uma confusão ingénua entre a literatura e a vida. (…)

A vida era um sistema aberto e a literatura um sistema fechado.»

(A Troca, David Lodge, 1995:39) 

As ligações, proximidades, e sobreposições entre o mundo real e o mundo ficcional são, com certeza, das questões mais antigas e recorrentes nos debates sobre literatura. Tendo presente o alerta de Earl Miner (1992) para uma destrinça significativa, a de que a «literatura é ficção», na perspectiva do mundo Ocidental, enquanto que na perspectiva do Oriente asiático a «literatura é factual», iremos aqui sintetizar alguns posicionamentos, a partir, principalmente, do contexto português.

Ainda que Aquilino defenda que não se deve «conceber o romance como um traslado da vida ou o depoimento num tribunal» (1969:16), que o colocaria na categoria de um realismo documental, o facto é que, para outros (Alexandre Pinheiro Torres e a imensa plêiade dos neo-realistas) «a verdadeira ficção se constrói sempre a partir da própria realidade e a grande razão para criar um romance é ainda a verosimilhança da sua história, intriga e enredo romanesco»1. No extremo, podemos ter a abolição completa dessa linha que separa a realidade e a ficção. Por exemplo, António Alçada Baptista reconhece a «impossibilidade de escrever coisa que não tenha conseguido viver»2. E Teolinda Gersão generaliza-o: «nós só escrevemos sobre aquilo que conhecemos»3; daí ela apontar duas qualidades intrínsecas ao escritor «ser um bom observador» e «ter os pés bem assentes na realidade».

Um dos nomes maiores do movimento neo-realista, Alves Redol, “à maneira de prefácio” ao seu livro Fanga, afirma que «as obras se parecem mais com o seu tempo do que os seus autores» (1963:38).

Compare-se, por sua vez, com o que Miguel Torga enuncia: «De resto, como poderia o poeta não ser do seu tempo, se ele é sempre a mais alta consciência de um tempo? O poeta não é uma abstracção. É um ser real, que existe no real. Por isso, não poderá evadir-se da vida, que o marca e é marcada por ele. A fundura dessas mútuas cicatrizes é que varia» (1953:77). Ambos perfilham da ideia de ligação estreita ao tempo (histórico) e sendo por ele “marcados”; quer se acentue a influência directamente na obra ou no autor, é sempre essa realidade que acaba por condicionar o produto literário. Basta lembrar que os livros de Torga, em particular os três volumes de A Criação do Mundo, têm muito de autobiográfico; e em Redol, mesmo as personagens por ele criadas partem de uma realidade vivida. Podemos assim dizer que os dois posicionamentos se conjugam.

Por sua vez, Irene Lisboa, logo na abertura da sua novela autobiográfica Começa Uma Vida (1940), confessa não saber, com exactidão até que ponto se manteve fiel à realidade, e atribui as “culpas” à essência da própria memória por essas eventuais efabulações: «Que tom dei eu às coisas conhecidas que contei – o de fábula ou de realidade? Aí está um ponto sobre que posso ter dúvidas. E tê-las sobretudo pelo gosto da memória, que sem querer tudo nivela e suaviza, que de paixões e de banalidades tira indiferentes histórias, novelas…»

«Memória e imaginação (…) são a matéria-prima do escritor», segundo Mário Ventura. Ora o balancear desigual destas duas componentes é que dará, relativamente ao real, o grau de afastamento (maior enfoque no imaginário) ou de proximidade (acentuação da memória). E neste caso, a tendência para a procura de identificações dessa escrita com eventuais episódios autobiográficos. Daí o aviso prévio de Júlio Conrado na sua novela O Deserto Habitado (1974:10): «inspirada na vida real mas sem conotações biográficas.»

Mas até neste registo (o das reminiscências), são inevitáveis falhas e incorrecções da memória. A precisão dos factos, dos locais e, acima de tudo, dos comportamentos e discursos das pessoas perde-se no tempo, mesmo para aqueles a quem se reconhece uma “memória de elefante”. Mais ainda, quando esse processo de recuo temporal se faz muitos anos depois dos acontecimentos, como é o caso dos tempos de escola; em regra, não há deles registos escritos, pois na infância e juventude o primado da oralidade sobrepõe-se à escrita, que em alguns casos se ficou, quando muito, pelo “diário” de juventude4, redigido com outros objectivos que não o de um memorando para uso futuro. Por isso, é de esperar que essas lembranças não reflictam com exactidão o real acontecido.

Mas mesmo assim, seria então mais plausível que o género autobiográfico, que se traduz quer em «memórias» e «confissões» quer em «diários» e «recordações» quer em «autobiografias», fosse o melhor depositário dessa fidelidade ao passado vivido, a “garantia da verdade”, face ao seu carácter testemunhal onde há identificação plena entre autor e narrador. Puro engano, pois, como o garante Torcato Sepúlveda, «a autobiografia pode ser tão mentirosa como o romance»5. Curiosamente, Ruben A. escolheu como epígrafe, para os seus três volumes de autobiografia O Mundo à Minha Procura, a frase síntese de Henry Miller em The Books in My Life (1963) «Autobiography is the purest romance. Fiction is always closer to reality than fact.»6

Na produção literária, são vulgares os traços comuns entre personagem e autor, sem que tenhamos forçosamente que estar a falar de auto-retrato ou autobiografia. Como o nota João Aguiar o «jogo entre autor e personagem é muito pouco claro, muito pouco racional, muito equívoco, mesmo para o próprio autor. Onde é que nós começamos e acabamos? Onde começa a personagem e ela acaba, é complicado dizer»7.

O escritor Manuel da Fonseca declara numa entrevista8: «Uma vez lançado, a realidade e a invenção, mascaradas, jogam às escondidas comigo – nunca sei ao certo, em cada momento, qual delas preside ao que escrevo.» Para numa outra entrevista, à Gazeta Musical de Todas as Artes, em 1960, esclarecer como incorpora o real no seu processo interior de criação: «É preciso que a realidade seja já em mim pura invenção para que eu a reconstrua, para que eu a cante»9. E Alexandre O'Neill, posicionando-se numa outra corrente literária (esteve muito ligado aos surrealistas), corrobora o processo descrito anteriormente, quando escreve, na poesia intitulada “Seixos”: «A sua memória tinha passado toda para a sua imaginação…» (1982:476). O imaginário e o real são assim uma realidade indivisível. E do poeta e do prosador já não sabemos se são ficcionistas da realidade ou realistas ficcionistas. Uma questão de ângulos de visão?

Urbano Tavares Rodrigues parece mais cauteloso no “jogo de duplas realidades”, a exterior e a interior ao escritor: «ao tentar reproduzir a realidade de certo modo crio uma realidade paralela que tem as bases no meu mundo pessoal»10.

Já Fernando Pessoa, na sua singularidade, coloca-nos numa outra dimensão. Encarar a realidade como interior a nós próprios e atribuir-lhe veracidade e autenticidade decorrentes dessa génese: «as verdadeiras paisagens são as que nós mesmos criamos, porque assim, Deuses delas, as vemos como elas verdadeiramente são, que é como foram criadas». Célebre o primeiro verso da poesia “Autopsicografia” – «O poeta é um fingidor» (1994:110) – glosado em múltiplos contextos de análise. Nesta lógica do «Sou já quem nunca serei / Na certeza em que me minto.» (Poesia Inéditas, p. 72), o poeta não nos mereceria “confiança” como mediador do nosso desejo de conhecer melhor o real. Mas num outro poema – “Isto” – acaba por clarificar melhor que fingimento é esse: «Dizem que finjo ou minto/ Tudo que escrevo. Não./ Eu simplesmente sinto/ Com a imaginação./ Não uso o coração» (1994:111).

Em Vergílio Ferreira, no romance Para Sempre (1983), podemos encontrar pontos de convergência com as posições acima enunciadas por Fernando Pessoa: «E nós diremos então que o real não existe, que a palavra não o designa mas se basta a si mesma e em si mesma se fecha. Nós diremos então que o real é uma ilusão incrustada na própria palavra que o diz. Nós diremos então que a vida mental do homem é uma ficção de si própria.»

Atente-se, ainda, em dois poetas mais próximos da nossa contemporaneidade: Eugénio de Andrade considera que «a poesia é a ficção da verdade» (1995:19) e Pedro Tamen, reconhecendo o carácter confessional e realista da sua obra, declara ser «raro o poema meu que não tem por trás, simplesmente de uma maneira transfigurada (e transfigurada por defesa), elementos concretíssimos do quotidiano»11.

António Lobo Antunes, em entrevista ao Notícias Magazine12, aborda a questão da realidade vs ficção nos seguintes termos: «As crónicas também são ficções, como tudo. O Malcom Lowry dizia que não era mentiroso, criava ficções autobiográficas13. Nós partimos de uma base real e depois inventamos sempre um pouco. É inevitável.» Por sua vez, no livro que reúne as crónicas de José Saramago pode ler-se: «Todas as minhas histórias são verdadeiras, só que às vezes me foge a mão e meto na trama seca da verdade um leve fio colorido que tem nome fantasia, imaginação ou visão dupla» (1971:61).

Assim, entre a “pura invenção” e o “realismo puro” há um sem número de outras gradações que decorrem da vontade de produzir cruzamentos e misturas, conjugando a realidade e a ficção (esse «difícil caminhar na zona cinzenta dos limite de uma e de outra»14). No entanto, importa ter presente as palavras quer de Mário Dionísio, de sentido contrário à proposta do realismo stendhaliano: «A arte não pode espelhar a natureza, mesmo que o queira» (1973:125), quer as de José Saramago «o objecto da arte não é a imitação» (1984:109).

Em suma, «a realidade tem muitas faces» como diz Pascoaes (1937:73) e apesar dos textos ficcionais serem, muitas das vezes, «mais reais do que a própria realidade», para Clara Rocha «a reconstrução do real é a própria verdade do literário» (1992:38). Ideia que podemos ver retomada no livro A História de Murasaki da antropóloga Liza Dalby, especialista em cultura japonesa, em que sustenta: «a ficção cria a sua própria verdade» (2000:452).

E um aviso adicional chega ainda de Bourdieu: «Objectivar a ilusão romanesca, e sobretudo a relação com o mundo dito real que ela supõe é lembrar que a realidade pela qual medimos todas as ficções não é mais do que o referente reconhecido de uma ilusão (quase) universalmente partilhada» (1992:56).

Um esclarecimento final chega-nos de Raúl Iturra, que dedica um ensaio de Antropologia da Educação a responder à pergunta “O que é a ‘realidade’?”. Partindo da ideia, cada vez mais consensual, que a realidade é uma construção social, ele acaba por nos levar a um ancoradouro de convergência onde a dicotomia entre realidade e ficção se tornaria numa (quase) osmose. Iturra adverte-nos que a «realidade é um conceito que reflecte o ser humano na sua dupla dimensão de pensador e manipulador do seu contexto.» O real seria então «uma visão imaginária, uma percepção imaginária da consciência» (2000:28), quantas vezes um conjunto de ideias fantasmagóricas, no dizer de Freud.

E assim sendo, não se vê qualquer impeditivo de as incorporar num acervo de fontes (tidas como “respeitáveis”) para a compreensão da sociedade, das interacções que nela se desenrolam e, em particular, do ser humano, «esse poço sem fundo» (Teolinda Gersão15), esse «labirinto de si mesmo» (Saramago, 1984:97).

 

Notas

1. Serafim Ferreira “Alexandre Pinheiro Torres ou a história como ficção literária”, a Página, nº 92, Junho, 2000, p. 29.

2. Entrevista de António Alçada Baptista ao DNA, nº 144, 28/08/1999, p. 22.

3. Entrevista de Teolinda Gersão ao Ensino Magazine, nº 14, Abril 1999, p. 15.

4. José Gomes Ferreira fala no «fadário diarístico que me persegue desde a infância» (Passos Efémeros, 1990, p. 11).

5. Público, suplemento “Leituras”, 1995.

6. «Sabe-se hoje que a George Sand se confessava mais e melhor nos romances do que na autobiografia deliberada» (Miguéis, 1973:298).

7. Entrevista de João Aguiar ao DN, 31/03/2001, p. 36.

8. Citado no Dicionário Cronológico de Autores Portugueses, vol. IV, 1998, p. 458.

9. Citado no prefácio de Mário Dionísio à 5ª edição do livro Poemas Completos de Manuel da Fonseca, 1975, pp. 18-19.

10. Entrevista de Urbano Tavares Rodrigues ao Ensino Magazine, nº 10, Dezembro 1998, p. 4.

11. Entrevista de Pedro Tamen ao DNA, 23/02/2002, p. 14.

12. Entrevista de António Lobo Antunes ao Notícias Magazine, nº 404, 20/02/2000, p. 34.

13. «Memórias ficcionadas» foi como categorizámos o nosso livro A Escola da Nossa Saudade (1995) e Mário Ventura (2001) classificou o seu Quarto Crescente como «A ficção da verdade».

14. João Paulo Borges em entrevista ao Ípsilon, 26/11/2021, p. 20.

15. Teolinda Gersão in entrevista citada, p. 14.

 

Referências

ANDRADE, Eugénio de (1995) O Sal da Língua. Porto: Fundação Eugénio de Andrade/ Obra de E.A., nº 26.

BOURDIEU, Pierre (1992) As Regras da Arte: Génese e Estrutura do Campo Literário. Lisboa: Editorial Presença, 1996.

CONRADO, Júlio (1974) O Deserto Habitado. Lisboa: Prelo Editora/ Autores Portugueses.

DALBY, Liza (2000) A História de Murasaki. Lisboa: Gótica/ Cavalo de Tróia, 2001.

DIONÍSIO, Mário (1973) A Paleta e O Mundo 1. Mem Martins: Publicações Europa América.

FERREIRA, Vergílio (1983) Para Sempre. Venda Nova: Bertrand Editora/ Obras de V. F., 10ª edição, 1996.

ITURRA, Raúl (2000) “O que é a ‘realidade’? Ensaio de Antropologia da Educação”. Trabalhos de Antropologia e Etnologia, vol. 40, nº 3-4, pp. 23-30.

LISBOA, Irene (1940) Começa uma Vida. Lisboa: Editorial Presença/ Obras de I.L., vol. III, 1993.

MINER, Earl (1992) “The fiction of fact, the fact of fiction”. Dedalus – Revista Portuguesa de Literatura Comparada, nº 2, Dezembro, pp. 13-21.

O'NEILL, Alexandre (1982) Poesias Completas (1951-1986). Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda/ Biblioteca de Autores Portugueses, 3ª edição, 1995.

PASCOAES, Teixeira de (1937) O Homem Universal. Lisboa: Edições Europa.

PESSOA, Fernando (1994) Antologia Poética. RBA Editores-Público/ Clássicos, nº 9.

ROCHA, Clara (1992) Máscaras de Narciso: estudos sobre a literatura autobiográfica em Portugal. Coimbra: Almedina.

REDOL, Alves (1963) Fanga. Mem-Martins: Publicações Europa-América/ Obras completas de A.R. nº1, 10ª edição, 1980.

RIBEIRO, Aquilino (1969) Portugueses das Sete Partidas. Venda Nova: Bertrand/ Obras completas de A. R., 6ª edição, 1992.

SARAMAGO, José (1971) Deste Mundo e do Outro. Lisboa: Editorial Caminho/ O Campo da Palavra, 3ª edição, 1985.

SARAMAGO, José (1984) O Ano da Morte de Ricardo Reis. Lisboa: Editorial Caminho/ O Campo da Palavra, 4ª edição.

TORGA, Miguel (1953) Diário. Vol. VI. Coimbra.