Estar Dividido
Estou muito dividido, diário amigo. A Lídia Jorge com o seu livro Misericórdia, fez-me pensar na eterna luta entre funcionários e utentes de um lar, como te tinha dito antes. Parece que a lógica do utente não condiz com a realidade quer na sua vida pessoal, quer com o momento da história da vida social; a lógica dos funcionários é totalmente ligada a esta história, é uma lógica formal e estruturada pelo acontecer quotidiano. Eis porque estas duas lógicas esbarram e há gritos dos funcionários e falta de entendimento dos utentes que sofrem porque não são percebidos no que procuram e no que querem.
No entanto, eu próprio fico impaciente quando quero interagir com um colega do lar e não sou entendido, quando tenho da sua parte como resposta um imaginário idealizado. Como essa colega residente do lar a quem solicitei sentar-se no sofá ao pé de mim para eu lhe explicar o que acontecia na televisão e ela, nem curta nem preguiçosa, disse-me que não podia porque o seu boneco, esse brinquedo que ela apaparica não quer sentar-se aí. Perante esta situação impacientei-me e gritei: “sente-se onde quiser, eu não lhe explico nada!”. Após minutos de discussão, ela feliz, eu farto e de mau humor, digo-lhe “é apenas um urso de pelúcia que a senhora tem!”. É evidente que a senhora não entendeu porque esse boneco para ela é uma criança que chora, que tem frio, que ela embala no seu colo: uma realidade da lógica ideal que ela usa para a sua compreensão dos factos.
O que para mim não tem valor nenhum para ela é a base do seu quotidiano, do seu viver, da importância que o urso de pelúcia tem na sua vida. Observo que os funcionários nestas situações gritam e zangam-se. Eu também gritei e zanguei-me com a senhora sendo no entanto apenas uma ocorrência entre mim e ela. Os funcionários têm centenas de ocorrências deste tipo durante o dia, cansam-se, zangam-se, gritam, empurram, desistem.
Quando eu me zango com um colega utente entendo os funcionários que não conseguem aceitar e entender as aldrabices da lógica mágica do utente por falta de preparação ou de condições de trabalho.
Tenho observado que os funcionários conseguem adaptar-se à racionalidade do utente quando estão de bom humor. O funcionário trabalha com intuição e emotividade, base da sua perdição. Quantas vezes, no outro extremo, quando um funcionário comporta-se com impaciência com um utente, eu corro para defender o utente. É esta conduta de funcionários e utentes que me tem partido em dois. Ora admiro o trabalho do funcionário, ora critico esse trabalho. Eu próprio ora resgato o utente do magma em que o funcionário o colocou, ora também o coloco nesse magma. Normalmente acarinho com palavras e carícias o utente que sofre e não é entendido nessa lógica mágica. O que eu tento é conseguir um equilíbrio entre as duas lógicas do lar. Se eu faço bem ou faço mal já não sei, não estou treinado. Como não estão treinados os funcionários do lar e ainda muito menos treinado está o residente que a senilidade em qualquer idade o levou a falhar na racionalidade social.
A Lídia Jorge no seu romance “Misericórdia” remete o leitor para estas lógicas em confronto mas como escritora não residente num lar acaba por romancear o que presenciou nas suas visitas. A mãe, que ela denominou Dona Alberti, transmite-lhe através do seu diário de vida os elementos que me permite pensar na lógica do lar. O livro serve como um panegírico para reformular essas vidas, diário amigo. Obrigada Lídia Jorge que me tem ajudado a perceber a minha vida como utente de um lar.
O livro de que falo é “Misericórdia”, Lídia Jorge, Dom Quixote, 2022
Professor Doutor Raul Iturra, Catedrático Emérito do ISCTE-IUL
Texto Editado por Claire Smith Antropóloga
Barra Mansa, Março de 2024
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