Luís Souta
A ANTROPOLOGIA NO ENSINO
«Habituado como estou a considerar a literatura como procura do conhecimento, para me mover no terreno existencial tenho necessidade de considerá-lo extensível à antropologia, à etnologia, à mitologia.»(Italo Calvino Seis Propostas para o Próximo Milénio, 1990:42)
O desenvolvimento da Antropologia, em Portugal, tem sido lento e algo errático. No campo do ensino, é tardia a sua institucionalização e praticamente circunscrita ao ensino superior.
A Antropologia tem ganho espaço crescente no campo universitário, desde que em 1968 foi criado o primeiro curso em Portugal, no então ISCSPU - Universidade Técnica de Lisboa, o «Curso Complementar de Ciências Antropológicas» que concedia o grau de licenciatura (no 1º ano de funcionamento estavam matriculados 24 estudantes). Logo no ano seguinte o curso passou a designar-se «Curso de Ciências Antropológicas e Etnológicas» (com uma matrícula de 41 alunos em 1973-74 e de 116 em 1975-76)[1].
Só uma década depois é criado um novo «Curso de Antropologia», na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas - Universidade Nova de Lisboa (1978), com a duração de quatro anos (acessível aos alunos que concluíssem o 12º). Poucos anos depois, o de «Antropologia Social» no ISCTE (1982)[2] e, posteriormente, um outro na FCT da Universidade de Coimbra (1992). Em 1997, aparece na UTAD, pólo de Miranda do Douro, um novo curso de licenciatura: «Antropologia Aplicada ao Desenvolvimento». Também ao nível do ensino privado abriram cursos de Antropologia (designação que se foi, mais ou menos, uniformizando em todas as escolas): em 1990 na Universidade Fernando Pessoa, no Porto, e o mais recente na Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias, em Lisboa. A Universidade do Minho criou uma secção de Antropologia, em 1999, mas ainda não desenvolveu qualquer curso autónomo nesta área.
Outros estabelecimentos do ensino superior introduziram a Antropologia nos seus currículos, tal como nos cursos de História, Psicologia e Geografia (UL, “Antropologia Cultural”), Sociologia (ISCTE), Serviço Social (ISSS), ISPA, Artes Plásticas (ESBAL, “Antropologia da Arte”), Educação Física (ISEF, “Antropologia do Jogo”), licenciaturas em ensino de História e Ciências Sociais e em Relações Internacionais (UM) e ainda na Universidade de Aveiro.
Entretanto, nos últimos tempos, iniciaram-se cursos de mestrado em Antropologia, em diversas instituições universitárias, entre as quais o ISCSP, o ISCTE-IUL (Património e Identidades; Colonialismo e Pós-Colonialismo), a U. Nova de Lisboa (Antropologia do Espaço; especializações em Culturas Visuais, Temas Contemporâneos, Primatologia e Ambiente) a FCT - U. de Coimbra (Antropologia, Globalização e Alterações Climáticas, Antropologia Médica e Saúde Global) e UTAD-ISCTE-IUL (com dupla titulação, a funcionar em Vila Real e Lisboa).
Mas só em Janeiro de 2002, surgiu a apresentação de uma proposta curricular de mestrado em «Antropologia da Educação»; o curso viria a funcionar no ISCTE, entre 2003- 05[3]. A especialidade de Doutoramento em Antropologia da Educação foi entretanto aprovada no CC do ISCTE, em 13/05/2003.
Já no campo da formação de professores a Antropologia tem um outro tipo de intervenção – apenas ao nível de disciplina incluída nos planos de estudo. A sua génese remonta a 1978, quando nas Escolas do Magistério Primário (EMP) surge a disciplina de «Antropologia Cultural» (1º ano, 2h/semanais). No ano imediato, introduz-se nas Escolas Normais de Educadores de Infância (ENEI) a disciplina de «Antropologia Cultural e Sociologia» (1º e 2º anos, 65h/ano). Tratava-se de currículos nacionais, portanto aplicados a todas essas escolas incluídas, na altura, no chamado «ensino médio». O mesmo se passava com os respectivos programas, também eles elaborados a nível central do ME, e iguais para todos os estabelecimentos. Com a criação do ensino superior politécnico, e a entrada em funcionamento das Escolas Superiores de Educação e dos seus diversos cursos de formação inicial, em 1986, veio alterar-se o modus operandi de inclusão da Antropologia nos currículos. Uma vez que estas escolas passaram a gozar de autonomia científica e pedagógica (o que não acontecia com as EMP e as ENEI), a definição curricular era feita no seu interior, e o aparecimento ou não de disciplinas de Antropologia estava muito condicionada à presença de antropólogos na equipa docente das escolas e à sua capacidade de “negociação curricular”. Assim, surgem, nessa fase inicial, nas ESE de Castelo Branco, Guarda, Leiria e Setúbal, por exemplo, disciplinas como Antropologia das Actividades Corporais, Antropologia do Jogo, SocioAntropologia, Etnografia Musical e Antropologia da Educação, em cursos como educadores de infância, professores do 1º ciclo, e variantes de educação física e educação musical. Ao longo destes anos, foram-se registando múltiplas mudanças na estrutura organizacional dos cursos (pré e pós-Bolonha), com alterações curriculares diversas; no entanto, a ESE de Setúbal e a ESECS de Leiria foram, talvez, as únicas onde se manteve, de« forma explícita, a disciplina de «Antropologia da Educação»[4]. Depois, foi o descalabro, com o Processo de Bolonha a reduzir as licenciaturas para 3 anos (com o fim dos cursos de “banda larga”) e o afunilar dos currículos, expurgando-os de tudo o que ia além das componentes de formação nas “área da docência”, “educacional geral” e “didácticas específicas”. Como os cursos se querem, agora, profissionalizantes stricto sensu, há, portanto, que ‘cortar’ na formação cultural e social[5].
Fechou-se uma porta (a da formação de educadores de infância e de professores do 1º e 2º ciclos, agora com o mestrado como habilitação mínima), abriu-se outra com a oferta em outros cursos. E assim, surge a UC de «Antropologia Cultural», na ESE-IPS em 2008-09, nas licenciaturas em “Animação e Intervenção Sociocultural”, “Comunicação Social”, “Promoção Artística e Património”, “Tradução e Interpretação de LGP” e na Escola Superior de Educação e Ciências Sociais do Instituto Politécnico de Leiria com as UC de «Antropologia Social» e «Antropologia Social e Cultural» em diferentes licenciaturas (“Serviço Social, “Relações Humanas e Comunicação Organizacional”, “Educação Social”…), «Antropologia, Cultura e Arte» (no curso de “Programação e Produção Cultural”), «Antropologia da Comunicação» (“Comunicação Social e Educação Multimedia”), «Etnologia Portuguesa» (“Turismo”), «Etnologia e Etnografia» (CTeSP em “Ambiente, Património e Turismo Sustentável”).
O lugar relativamente discreto da Antropologia nos currículos dos politécnicos e das universidades, tem muito a ver com a ausência de uma disciplina de Antropologia na estrutura curricular dos ensinos básico e secundário. Tal só se verificou no ano lectivo de 1979-80 com a introdução da disciplina de «Antropologia Cultural» (com 2 horas semanais) no l0º ano do curso Complementar do Ensino Secundário, mais concretamente na área D – Estudos Humanísticos, e que era obrigatória para os alunos que optavam, no âmbito da Formação Vocacional, pela área de Jornalismo e Turismo (os professores eram contratados na área de “Técnicos Especiais”). Experiência curta no tempo, que a reforma resultante da LBSE (1986) veio a eliminar. Todos os múltiplos esforços da Associação Portuguesa de Antropologia, das universidades que ministram cursos de licenciatura em Antropologia e dos docentes com formação nesta área se têm revelado infrutíferos. Os argumentos científicos e pedagógicos demonstrativos da utilidade social desta ciência social, na formação integral dos alunos, têm esbarrado na insensibilidade das várias equipas responsáveis do ME.
Ligeira mudança se operou com o “Documento Orientador da Revisão Curricular do Ensino Secundário”, de Abril de 2003, com implementação no ano lectivo de 2004-05: a Antropologia voltou a ganhar (ténue) visibilidade ao aparecer no elenco das opções anuais da componente específica no Curso de Ciências Sociais e Humanas, ficando, todavia, a «oferta dependente do projecto educativo de escola» (o que implica um acordo celebrado entre o ME e cada escola; então, podem os alunos que a queiram frequentar ser provenientes de qualquer um dos outros 4 cursos científico-humanísticos existentes). Seria leccionada no 12º ano e teria uma carga horária de 3 blocos semanais de 90 minutos[6].
Presentemente, com o Decreto-Lei nº 139/2012, de 5 de Julho[7], a oferta formativa do ensino Secundário, inclui a «Antropologia» mas apenas como disciplina de opção: no curso de Língua e Humanidades (uma de 7), no curso de Ciências Socioeconómicas (uma de 9), e nos cursos de Ciências e Tecnologias e de Artes Visuais (uma de 11).
Muito pouco… No ensino secundário, a Antropologia ‘avança’ mas a passo de caracol.O sistema persiste no conservadorismo curricular!
Notas
1. Para o conhecimento dessa primeira década cf. Luís Souta “Tempos de Extremos”, Etnográfica, nº comemorativo dos 50 anos do 25 de Abril, 2004 (no prelo).
2. DL nº 121/82 de 29 de Outubro.
3. Deliberação do Senado nº 807/2003, DR nº 134 de 11/06.
4. Na ESE-IPS funcionou até 2007-08 e na ESECS-IPL a UC de Antropologia da Educação manteve-se no curso de Educação Básica (mais recentemente com a designação «Sociologia e Antropologia da Educação».
5. Decreto-Lei nº 112/2023 de 29 de Novembro (altera o regime jurídico da habilitação profissional para a docência na educação pré-escolar e nos ensinos básico e secundário, ou seja, o anterior Decreto-Lei nº 79/2014 de 14 de Maio).
6. O programa de Antropologia do 12º ano (com 59 p.!) foi homologado em Abril de 2006, e elaborado por José Manuel Sobral (coord.), Carlos Nuno, Margarida Fernandes.
7. Decreto-Lei nº 139/2012, de 5 de Julho, alterado pelo Decreto-Lei nº 91/2013, de 10 de Julho e pelo Decreto-Lei nº 176/2014, de 12 de Dezembro.
Muito em breve será publicado o livro A TRÍADE DISJUNTIVA: Literatura, Antropologia e Educação que reúne, na sua I parte, os 24 textos desta rubrica que aqui fui editando desde 13/11/2021.
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