sábado, 27 de fevereiro de 2010

JORGE LUÍS BORGES, E o Sangue Português

Por
Abdul Cadre


Em 14 de Junho de 1986, em Genebra, com 87 anos de idade, vitimado por um cancro morria o escritor argentino Jorge Luís Borges, que vira a luz pela primeira vez em 28 de Agosto de 1899, na cidade dos bons ares: Buenos Aires. Filho dum filósofo e duma tradutora de inglês, quase toda a sua vida foi dedicada ao ensino e à produção literária, com alguma atenção à 7ª Arte, pois chegou a ser director duma empresa cinematográfica. Quando a morte, depois de muito o procurar, finalmente o encontrou, tinha casado há menos de três meses com a sua secretária e companheira inseparável Maria Kodama, filha de pai japonês e mãe uruguaia.

Borges, que cegara completamente em 1966, teve em Maria Kodama os olhos com que lia e escrevia. Era pelos olhos dela que ele, viajante infatigável, intuía as paisagens, quando ambos deambulavam pelo mundo.

De Lisboa levou «o grande colar da Ordem de Santiago da Espada» e do Prémio Nobel disse irónico: «ao contrário do que acontecia dantes, o Nobel, hoje, não distingue autores famosos, mas procura descobrir novos valores»...

Da religião dizia com Lucrécio que servia para aterrorizar os homens e lhes ensinar que não há deuses. Daí o desejo, tal como seu pai desejara, de «morrer inteiramente, de corpo e alma». E ambos se conservaram agnósticos até à morte.

Em política, a sua visão céptica levava-o a dizer que «o povo adere sempre aos demagogos, salafrários e patifes». Considerava-se um anarquista e um conservador.

Pode-se discordar da sua filosofia de vida, criticar o seu conservadorismo, condenar o seu comportamento, mas não se pode ignorar o génio criador do poeta e prosador que acentuava orgulhosamente o facto de lhe correr nas veias sangue luso, dum avô Francisco, de Moncorvo. E dizia: «Portugal está no meu sangue e na minha memória». Aos seus ancestrais dedicou este poema:

OS BORGES
(Versão portuguesa de Abdul Cadre)


Eu nada ou pouco sei dos meus maiores
portugueses, os Borges: vaga gente
que deixou no meu sangue, obscuramente
seus hábitos, rigores e temores.
Ténues como se nunca houvessem sido
e alheios sendo aos trâmites da arte,
indecifravelmente fazem parte
do tempo, da terra e do olvido.
Melhor assim. Complica a teia,
são Portugal, a tão famosa gente
que forçou as muralhas do Oriente
e ao mar se deu e outro mar, de areia,
o místico deserto, perdeu
aquele rei que se jura: não morreu.

E porque Portugal lhe estava na memória, estando a memória viva de Portugal, a seu ver, com Camões, disse Borges assim:

A LUÍS DE CAMÕES
(Versão portuguesa de Abdul Cadre)


Sem mágoa e sem raiva o tempo sela
as heróicas espadas. Triste cantaste
a nostálgica Pátria onde voltaste
para pobre, ó capitão, morreres nela
e com ela. No mágico deserto
a flor de Portugal havia-se perdido
e o rude espanhol, antes vencido,
ameaçava então seu casco aberto.

Quero saber se aquém da derradeira
margem compreendeste humildemente
que quanto foi perdido, o Ocidente
e o Oriente, o aço e a bandeira,
perduraria (alheio a toda a humana
mutação) nessa Eneida Lusitana.
Ninguém olvidará, mas estas coisas
apenas são teus modos e teus símbolos.

Eras mais que o teu extenso território,
do que os dias do teu imenso tempo.
Eras mais do que a soma inconcebível
das tuas gerações. Mas não sabemos
como eras para Deus no vívido
seio dos eternos arquétipos.
Mas por esse rosto vislumbrado
vivemos e morremos e ansiamos,
ó inseparável e misteriosa Pátria!

1 comentário:

luis santos disse...

Amigo Abdul, gostámos tanto deste seu texto que até nos custa ter de cobri-lo com outras participações que já se anunciam. Por sinal, como veremos, com prometida qualidade.

Abraço.