Abdul Cadre
«A meta é provavelmente o ponto sem dimensão. E esse é muito difícil. Acho que não o vou atingir e estou contente por a meta ser essa!» AGOSTINHO DA SILVA
Chegou a este lado da vida no ano de 1906, desembarcou na cidade do Porto sob o signo de Aquário e entendeu deixar-nos no Domingo de Páscoa de 1994. Neste entretanto, foi o mais que numa só vida se pode ser: filósofo (no mais profundo do conceito), professor contagiante, escritor polifacetado, conferencista, educador, poliglota, viajante, fundador de institutos e universidades…
À semelhança de Fernando Pessoa, usou vários heterónimos, não para produzir um drama em gente, como dizia aquele, mas como matriz de uma vida conversável.
Se quiséssemos um nome para o seu pensamento, podíamos chamar-lhe «filosofia da vadiagem». Em que consiste? Tornarmo-nos na criança que se maravilha com tudo o que observa, poetas à solta e arranjarmos maneira de criar as condições adequadas para cumprir o nosso destino (que é a nossa liberdade) de contemplar o mundo tornado conversável, isto é, pacífico, fraternal e solidário. Como fazê-lo? Ser cada um aquilo que verdadeiramente é e tornar-se contagiante. Contagiar pelo exemplo e não fazer batota com o vírus que o torna humano, que é a fala, não esquecendo que esta lhe vem do céu; o que se ganha ao nascer é a voz.
O seu pensamento místico profundo, ao convergir com o entendimento de várias escolas do campo do esoterismo, tornavam-no atracção dessas mesmas escolas, sendo visitado por alguns dos seus dirigentes. Agostinho da Silva tinha então o cuidado de sublinhar ser um místico e não propriamente um esoterista, ou um hermetista.
Quando alguém se referia ao seu discurso como o “seu pensamento”, logo ele retorquia não saber se o pensamento era dele; era bem possível que o pensamento andasse por aí e que o seu mérito teria sido encontrá-lo…
Nascido português – nacionalidade que só readquiriu em 1992 – naturalizou-se brasileiro, na sequência do exílio a que se viu obrigado, por razões políticas. Foi por isso no Brasil que desenvolveu a maior parte da sua longa vida académica e deu largas à sua produção literária e filosófica, onde nenhum género lhe foi estranho. Quando nos deixou, tinha dupla nacionalidade, a sua pátria era a língua portuguesa e a sua religião a dos fiéis do amor.
A riquíssima bibliografia de George Agostinho Baptista da Silva, de seu nome completo, pode consultar-se em http://www.agostinhodasilva.pt/. Nestas linhas, vamos tão-somente tentar interpretar a figura daquele que entre amigos e admiradores era chamado apenas de «Professor». Dizemos interpretar, sabendo bem que toda a interpretação implica limitação e parcialidade. Professor, aureolado de mistério, rodeado de alunos e de pombos, sob uma frondosa árvore, no Largo do Príncipe Real, em Lisboa, é também como é referido no romance Casa da Rússia, do escritor britânico John Le Carré, que o visitou um dia no nº 7 da Travessa do Abarracamento de Peniche, a bem conhecida morada, situada na 7ª colina de Lisboa, onde acorriam em peregrinação permanente os muitos amigos e admiradores, que tinham por ele uma atracção quase religiosa.
Após uma série de entrevistas televisivas, subordinadas à designação Conversas Vadias, o pensamento do professor Agostinho da Silva chegou ao grande público, tornando-se conversa de café, nem sempre fiel, antes pelo contrário.
O seu magnetismo e a aura pública que ganhara eram tais que o número daqueles que não gostavam dele seria bem reduzido, poucos se atrevendo a criticá-lo negativamente. Um dos seus poucos detractores, o melhor que achou para dizer – citamos de cor – foi: «como filósofo, é uma fraude, mas o que mais me aborrece nele é aquela postura presunçosa e anacrónica de profeta». Todavia, tal remoque mais se destacou pelo azedume do que pela originalidade, pois é certo que alguns comentadores de boa vontade e respeito o designavam como um misto de filósofo grego e profeta bíblico.
Do muito que se dizia e comentava, diríamos nós que aqueles mais virados ao orientalismo chamavam-lhe Mahatma; os tocados pelo new age diziam que tinha vindo do futuro; os esoteristas queriam-no como mestre; os ateus lamentavam que ele não repudiasse a crença em Deus, os cristãos que ele fosse budista e os budistas que ele fosse cristão; os monárquicos queriam-no para alferes da pátria, os conservadores chamavam-lhe comunista, os comunistas chamavam-lhe intelectual burguês, os amigos do autoritarismo chamavam-lhe anarquista.
Que bom, para quem dizia que não tinha discípulos, porque quem puxa carroça é burro; que discutir, que etimologicamente significa sacudir, é bom, porque, mais do que despertar-nos, não nos deixa adormecer; que se a natureza quisesse que todos pensássemos igual não dava uma cabeça a cada um.
Ele nunca quis discípulos, apenas procurou despertar no outro a chama tímida ou ignorada com que veio a este mundo. Além disto, sendo certo que não desprezava os livros, nem o saber de que eles são depósito, prezava bem mais a vida, que ela sim é que é mestra.
Quando lhe perguntavam se se considerava um esoterista, ou um ocultista, dizia que não, que o Pessoa é que sim, ele seria simplesmente, se lhe quisessem pôr uma etiqueta, um místico, cuja principal característica é o amor no seu sentido mais lato, implicando naturalmente o amor ao saber. Dizia ele: «Talvez o maior amor seja o dos místicos, porque esse tem consigo a suprema qualidade de nunca ser plenamente realizável».[1]
Quando lhe diziam do quão utópicas eram as suas proposições, respondia que pois claro, pois que se referiam ao futuro. Não seriam utópicas se havidas no passado, pois que utopia é aquilo que ainda se não realizou, aquilo que ainda não teve lugar, segundo a própria etimologia. Não se trata de coisas impossíveis. A utopia de hoje é a realidade de amanhã.
É bom que se diga que as propostas de Agostinho da Silva, classificadas por muitos como utópicas, partiam de exigências bem simples, que ele invocava como a base da verdadeira sociologia e chamava do princípio dos três esses: o sustento, a saúde e o saber.
Depois, quando afirmava que não era pelo heterodoxo nem pelo ortodoxo, mas sim pelo paradoxo,[2] punha em tudo isto o cerne do mistério da Religião e da Ciência, bem como de todo o conhecimento. Veja-se o grande paradoxo da Geometria: o ponto, que não tem dimensão, desenha todas as dimensões, toda a geometria conhecida. Também Deus poderá ser visto como o supremo ser paradoxal, pois tem a fatalidade de ser livre, sendo assim o modelo de todos os paradoxos e o poeta à solta por excelência. Então, se o concebemos como modelo, fundamos necessariamente o nosso dever de ascender ao paradoxo. A conquista do paradoxo impede que nos acusemos mutuamente. Quem é que não sabe que é sempre um ortodoxo que acusa outro ortodoxo de ser heterodoxo?
O seu contacto com a cultura japonesa – foi bolseiro da UNESCO no Japão – despertou-lhe o interesse pelo xintoísmo e pelo Zen budismo. O seu apreço pelo paradoxo fê-lo dizer que podíamos definir o Zen como um sistema paradoxal por excelência, aquele que admite que alguma coisa seja sempre alguma coisa e o seu contrário. Se perigo existe nisto, é a impossibilidade de um verdadeiro código moral.
Tendo estudado profundamente várias religiões, incluindo os cultos afro-brasileiros – participou em rituais de candomblé – dizia do islão que o critério da submissão – etimologia de islam – não lhe era simpático, já que a liberdade é o nosso dever ser, mesmo que paradoxalmente se possa dizer que o nosso destino é a nossa liberdade e a liberdade o nosso destino. O seu fervor ia para o que se referia à Idade do Espírito Santo,[3] na sequência do pensamento de Joaquim de Flora[4] e das propostas de Francisco de Assis, cuja anunciação ritual e simbólica remonta em Portugal às acções da Rainha Santa Isabel[5]: as festas (culto) do Espírito Santo, a coroação do Menino Imperador do Mundo, a libertação dos presos, a vida gratuita.
A sua grande admiração pela Fé Bahá’í, levou algumas pessoas a pensar que ele seria membro desse culto, mas Agostinho da Silva, poeta à solta, não pertencia a nenhuma igreja instituída, nem a partido político ou grupo. Todavia, do seu ponto de vista, a Fé Bahá’í constituía uma atitude religiosa que valia a pena estudar, entender e praticar, pois enquadrar-se-ia nos valores constitutivos do Quinto Império.[6]
Não se confunda Quinto Império com qualquer mando ou poder mundano, conote-se sim com quinta-essência, Idade do Espírito Santo, Era de Aquário. Veja-se em Fernando Pessoa, veja-se na Ilha dos Amores.
E saiba-se que as propostas Bahá’í,[7] agostinianas e pessoanas têm imensos pontos convergentes e coincidentes com a «Utopia Rosacruz», conforme contida no manifesto Positio.
Voltemos então à vida conversável: «… a pluralidade e até a contradição de opiniões «obriga a pensar e a escolher e é pela escolha que se afirma a liberdade de cada um»[8]. Será, pois, pela via do conversável – da poesia à solta – que a vida se desenvolverá, «porque o mundo acaba sempre por fazer o que sonharam os poetas»,[9] sendo que «poeta é todo aquele que cria».[10] Afinal, «o mundo é só o poema em que Deus se transformou»[11]. Então, bastas vezes o professor dizia que há duas coisas muito importantes que devemos aprender: o quão extraordinário é o mundo e sermos por dentro tão amplos quanto possível, para que o mundo todo possa entrar, sem esquecer que um dos significados da palavra mundo é limpo. Por isso, devemos querer o mundo e não o seu contrário, que é o imundo. Todavia, «seria preciso não viver para negar que o mundo seja mau; mas é nessa mesma maldade que devemos procurar o apoio em que nos firmarmos para sermos nós próprios melhores e, como tal, melhorarmos os outros»[12]. Este melhorar os outros, porém, exige muita empatia e um cuidado apurado quanto à intransigência. «Ser intransigente com os outros não tem grande sentido; eles são o que podem ser e creio que seriam melhores se o pudessem; a Natureza ou o meio lhes tiraram as condições que os levariam mais alto; não os devo olhar senão com uma íntima piedade.»[13]Afinal, «o mal que se vê é aguilhão para o bem que se deseja; e quanto mais duro, quanto mais agressivo, se bate em peito de aço, tanto mais valioso auxiliar num caminho de progresso.»[14]
Quando o tomavam por vegetariano, costumava dizer que evitava comer bicho, porque os bichos não tinham culpa de que ele precisasse de comer…
Mas um certo dia, em sua casa, um grupo alternativo condenava com paixão a crueldade dos caçadores. Ele ouvia, ouvia pacientemente e a dada altura remata: pois é, matar os pobres dos pássaros, que não fazem mal a ninguém… Claro, é cruel. Mas por outro lado, já viram quanta perícia é necessária para apontar a arma a um bicho assim tão pequenino e acertar-lhe em pleno voo?
Era a sua forma de ver as coisas pelo seu conflito intrínseco e a aplicação didáctica do princípio cristão de «não julgarás». Nisto, por vezes, chegava a ser desconcertante. Numa entrevista, dizia: «Não há homem algum que não possa ser elogiado; às vezes os assassinos têm pontaria excelente; e não existe homem algum que não possa ser censurado; houve santos que não tomavam banho».[15]
De ser desconcertante poderia falar aquele franciscano que fora convidado para dar início à ideia do professor de uma Faculdade de Teologia e que, quinze dias depois da chegada ao Brasil, vindo de Portugal, continuava à espera, sem nada para fazer. Foi ter com o professor: «então, a Teologia?». Responde-lhe o Professor: «Meu querido irmão, faça o seguinte, escolha um lugar sossegado onde ninguém o possa ver ou perturbar, sente-se numa pedra e pense em Deus, sem nunca se distrair, pelo tempo que possa».
A ideia de Agostinho da Silva para uma Faculdade de Teologia, era um lugar onde residiriam em permanência teólogos de várias religiões com a missão de investigarem, ensinarem e trocarem experiências teológicas. Nunca tal concretizou e o máximo que conseguiu foi uma Faculdade de Teologia restritamente católica, entregue aos dominicanos, com quem acabaria por se dar excelentemente. Foi por eles convidado para falar sobre o ateísmo e acabou por converter um deles às suas teses.
Uma das teses era de que alguns dos ateístas «tinham uma vida mística tão forte e tão sensível quanto a de qualquer homem religioso»[16]. Outra tinha a ver com as relações entre religiosidade e mística, pois entedia que «há milhões de pessoas religiosas cuja vida mística é nula, sendo praticamente uma vida comercial, visto comprarem um certo número de coisas por meio de certos actos e cerimónias e mais nada»[17].
Em Julho de 1986, entrevistando o professor Agostinho da Silva para o Diário de Notícias, a jornalista Antónia de Sousa dizia a dado passo: "O professor é contagioso...", ao que ele retorquia: "Se o contágio é bom, excelente! Se o contágio for considerado ruim, péssimo!".
É que há palavras que são vírus de matar a Graça, acharis. Por exemplo: competição, produtividade e rendibilidade, que são formas de negar a fraternidade, a liberdade e a igualdade. Tal trindade agnóstica dos economistas deste tempo que passa, envolve o desprezo do homem, da natureza e do sagrado. O homem tornado ser descartável, a natureza como uma serva e o sagrado como postura tola de poetas vagos e beatas serôdias. E assim a vida se nega pela assunção da morte e esta nos despreza, porque a escolhemos por engano.
E há palavras que são vírus de enganar, como o moderno diálogo, que é o divórcio na fala pela emulação dos monólogos; a língua bifurcada com palavras de pontas aceradas, esperando a rendição. Falsamente polidas, envenenadamente sopradas. Eis o credo ainda insepulto e já cadáver, a sombra que passa. Diálogo que, como dizia o mestre, tem o mesmo prefixo que diabo, que é aquele que divide. Diabo que só existe quando lhe damos existência.
E há ainda palavras de ornamento, inúteis como togas, e outras de ruído que empapam a conversa. E há o discurso da promessa e do apelo, a ameaça e os esbirros de soslaio. Mas vem o menino imperador e diz: "basta!" Nem grades nem ornamentos. O menino tem o sorriso bondoso e matreiro do velho professor. Está como sempre esteve, no Príncipe Real, a dar milho aos pombos e palavras de eucaristia aos jovens atentos. Como o viu John Le Carré e quase assim o pôs na "Casa da Rússia" . O escritor só não viu que este era um ritual, um quase conjuro do grande banquete do Espírito Santo, que Isabel, influenciada por Joaquim de Flora, inventou para um dia – um dia de comer de graça para todos – e nós temos de ser capazes de em futuro mais ou menos próximo prolongar por todo o ano. E aí à mesa se conversa, que é o modo mais humano de comunhão dos alimentos do corpo e da alma.
Conversar sim, que é colocar-se a gente na posição do outro. Em conversão, que é um caminho de dois sentidos, uma postura de mútua descoberta.
NB: Das obras mencionadas em rodapé consulte-se a bibliografia no site mencionado no corpo do texto.
[1] “Sete Cartas a Um Jovem Filósofo”
[2] Uma das obras de Agostinho da Silva chama-se precisamente Reflexões, Aforismos e Paradoxos.
[3] Os esoteristas diriam Idade de Aquário
[4] Teoria das três idades: do Pai, do Filho e do Espírito Santo.
[5] De educação e ascendência cátara, à Rainha Santa Isabel atribui a lenda o célebre milagre das rosas: teria transformado moedas de ouro nas mencionadas flores. O curioso é que à sua tia-avó, Isabel da Hungria, também a lenda diz o mesmo. De Santa Isabel, o que muito poderá despertar a curiosidade dos rosacruzes é a sua relação com o médico, astrólogo e alquimista Arnaldo de Vilanova. O túmulo da santa, com o seu corpo incorrupto, encontra-se no Convento de Santa Clara-a-Nova, em Coimbra
[6] «Raízes Intemporais da Vida e da Alma de Agostinho da Silva», Ellys, editora Sete Caminhos, Lisboa, 2006.
[7] É bom esclarecer que os célebres colóquios «TRADIÇÃO E INOVAÇÃO – SUA UNIDADE EM AGOSTINHO DA SILVA», que tiveram lugar na Faculdade de Letras do Porto (1996-1999), se deveram ao grande empenhamento da associação agostiniana CADA, onde membros da AMORC e seguidores da Fé Bahá’í tiveram a iniciativa.
[8] “Carta Vária”
[9] “Conversação com Diodima”.
[10] “Conversas Vadias”, entrevistas televisivas. Foram publicadas em DVD
[11] “Quadras Inéditas”
[12] “Parábola da Mulher de Loth”
[13] “Diário de Alcestes”
[14] “Considerações”
[15] “Conversas Vadias”
[16] «Vida Conversável», textos organizados e prefaciados por Henryk Siewierski, Assírio & Alvim, Lisboa, 1994
[17] Ibidem
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