terça-feira, 22 de maio de 2018

O DIÁRIO DA MATILDE - O MEU PRIMEIRO ANO DE ESCOLA

Em Havana, a noite tem sono na luz. 
Não é só a ausência de comércio que lhe retira os néones e as intermitências dos letreiros e dos apelos publicitários que não estão lá; é sobretudo a rede pública que se exprime em candeeiros de sombras, a condizer com as ruas pouco animadas e com mais recato do que seria de esperar num país com um clima tão quente. 

Mas estamos numa terra que sofre um embargo económico – patético, deve dizer-se – há mais de quarenta anos. 
A riqueza pública não pode ser muita e isso reflecte-se na luz que os homens podem ou não acrescentar à noite. Tal como nas casas de cada um, uma lâmpada é o quanto basta por divisão. 

E depois há os olhos e os ouvidos do imperador e as fardas que pedem a identificação às pessoas em plena calle e que de certeza jamais permitiriam que alguém se lamentasse em público por viver assim.



Os cubanos ganham médias de quinze, vinte, trinta euros por mês. 
Tão pouco.
Mas o estado zela por eles que não pagam impostos e têm a educação e a saúde gratuitas. 

No entanto, há tanta tristeza nos olhos que se cruzam connosco nas ruas. 



Visita ao museu colonial, onde se pode ver como era o interior das casas dos terratenentes, a nobreza de ascendência espanhola pois, pelos quadros das madonas e dos senhores que se vêm nas paredes, os pretos eram escravos e os mestiços moleques. Não por acaso, a élite comunista, ainda hoje, é composta maioritariamente por brancos. 
Pelas porcelanas e os cristais e o mobiliário, mas também pelas divisões e funções correspondentes, podemos adivinhar o nível de conforto dos que tudo tinham e o contraste com a vida de trastes do pé descalço que carregava com tudo. 

Em frente ao palacete de um fidalgo que teve papel proeminente na luta pela independência e que libertou os escravos para que combatessem as tropas espanholas, a fim de a tranquilidade do homem não sofrer beliscaduras, lá está o pavimento feito de madeira. 



Curiosamente, numa ilha em que os índios conheceram a extinção física, o nome de Havana deriva de um cacique que outrora viveu na vizinhança desta baía prazenteira. 



Cada sala de museu tem uma ou várias funcionárias com o imprescindível de nada fazerem. 
Mas aproveitam para tentar ganhar mais uns cobres com os turistas. Pelo cuidado e circunspecção com que agem, dir-se-ia que correm riscos; contudo, não se inibem de propor a troca de moedas cunhadas com o rosto de Guevara ou o convite à fotografia do visitante, seguramente na esperança da gorjeta. 

Aqui tudo é do estado. 

Mas nota-se um esforço nas entrelinhas para completar os parcos orçamentos que têm nas bodeguitas de prateleiras vazias o quase nada que o para lá dos alimentos tem para mostrar e que esses dólares extraordinários podem complementar num mercado negro que certamente existirá. 

Quando quisemos regressar do forte que outrora serviu na linha defensiva contra os ataques de piratas, alugámos o serviço de um particular que nas horas vagas, certamente, faz de taxista com o seu velho modelo que ele mesmo mantem capaz de lhe render o equivalente a muitos ordenados. 
Por acaso reparei que estava um polícia por perto que, se não viu, fez vista grossa e foi um dos funcionários da segurança que chamou o chauffeur quando lhe perguntámos se ali poderíamos apanhar transporte para o centro da cidade. 

Será que isto é uma economia tolerada pelas autoridades ou revelará ela uma corrupção larvar das mesmas? 
A verdade é que as caixas de coíbas que pela calada se vendem nas ruas, para lá das falsificações que os incautos sempre engolem, as verdadeiras têm necessariamente que ter origem nas fábricas que os produzem. A menos que hajam produtoras clandestinas. 

Será que os riquexós que se vêm por aqui e por ali também são propriedade do estado? 



La revolution es un Chevrolet antiguo. 
O parque automóvel simboliza a capacidade edificadora de um regime que pouco mais fez que os complexos desportivos para os jogos pan-americanos de noventa e um. Tal como nas grandes obras que parecem ser, todas elas, anteriores ao socialismo, também os modelos que circulam têm o cunho dos anos, muitos anos; no entanto, os carros americanos da época do rock around the clock e até mais velhos, do tempo da segunda guerra, esses só dão um colorido pitoresco à paisagem pois os seus proprietários são exímios nas manutenções e, se necessário, até são capazes de fabricarem as peças que faltam. 


Mas o iate em que Fidel e os seus companheiros e seguidores desembarcaram para la lucha, para que se conserve, lá está em redoma de vidro, no exterior, em jardim anexo ao Museu da Revolução, onde uma chama permanente celebra os heróis caídos, mas também onde se pode aprender um pouco da história de um país que nunca teve tempo para ser ele próprio. 


Não perco a sensação que certas nuances de Havana me recordam La Valetta. 


A noite da capital tem o semblante dos lugares em que aos corpos nada mais resta que o alargarem-se em declínio. 


     Havana 
 30/03/2004

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