A praça da revolução é um imenso terreiro rodeado de edifícios governamentais e pela sede do Partido Comunista no seu ponto mais alto. Ao centro e bem ao estilo da arte imponente da consagração dos poderes políticos, um monumento a uma revolução anterior àquela que agora as multidões festejam e apoiam, ao sabor dos longos discursos do comandante supremo, o camarada Fidel que permanece fiel, hasta la vitória, ao socialismo que o Che, o ícone de la revolucion o muerte, lá está, numa das fachadas, em contornos de ferro a preto, para lembrar aos cubanos o muito que devem à imposta igualdade que, só na aparência das pretensões, gerou uma sociedade de iguais.
Mas a cidade é bonita, mesmo tendo em conta as chagas que a economia estatizada lhe provocou, a luz que envolve o casario espreitando o mar, deixa-nos ver o rosto de uma urbe cheia de personalidade, ainda que nos últimos decénios possa ter perdido a alma.
É lamentável o estado de degradação a que se deixaram chegar muitos edifícios, literalmente a cair, em alguns casos, esventrados e sujos naqueles em que podemos, eufemisticamente, falar de envilecimento.
É incrível como há pessoas a morar em tais buracos, sem janelas e com as paredes das varandas caídas. Mas os inquilinos lá estão, olhando o oceano, sempre olhando o oceano e a roupa estendida assim o indica, em andares feitos quintais pelas ruínas que só tem paralelo no caos que são os emaranhados de fios que instalam uma electricidade de lâmpadas tristonhas.
Há gente que na rua aborda o estrangeiro de mão estendida, por um dólar, curiosamente, uma das moedas correntes no país.
E também há quem pretenda vender charutos que, sendo uma forma disfarçada de pedir, não deixa igualmente de ser expressão de vigarices várias.
Contudo, nas ruas, não se avista a população raquítica e estropiada das metrópoles dos países pobres e, seja lá como for, todos andam vestidos e calçados.
Na cidade velha sente-se ainda a expressão da colonização espanhola, com os palacetes virados para o centro de um jardim interior e as varandas de madeira trabalhada que aqui não foram fechadas por vidraças.
Há um grupo carnavalesco cubano animando as ruas e as praças têm estátuas dos homens que lutaram pela independência.
A Catedral, do século XVII, tem o calcário corroído pelo ar que sopra do mar e por dentro ostenta a modéstia da devoção em país oficialmente ateu.
Regresso ao hotel para o jantar e o necessário repouso.
Acabei de ler o trabalho de Helena Matos sobre Salazar.
Dado o erro do vendedor do Círculo de Leitores, li primeiro o segundo volume, mas não faz mal.
Não sendo o trabalho de uma historiadora, antes algo na esteira de uma análise de conteúdo da imprensa da época e, a partir daí, o registo da imagem que o próprio quis dar de si, para o que teve a cobertura e o empenho activo de alguns dos seus acólitos.
O resultado é uma leitura incontornável para quem queira compreender o salazarismo e as suas especificidades, enquanto regime totalitário, no contexto dos congéneres nazismo alemão e fascismo italiano.
Fica clara a criação do mito salazarista de competência e clarividência, tal como da vontade e disponibilidade do homem para exercer o poder de forma absoluta.
E lá está bem nítida a ideologia nacionalista e católica, o ruralismo assente no poder do pater famílias, como a marca mental que caracterizou o fascismo português que, se após a segunda guerra mundial se transformou num anacronismo incapaz de se renovar e responder aos desafios do desenvolvimento capitalista que então se verificou, não deixou por isso de ter o mesmo culto do chefe que os congéneres e de pretender organizar todos os detalhes da vida dos portugueses enquanto foi vitoriosa.
Agora fico cheio de curiosidade pelo primeiro volume.
A noite, em Havana, tem o timbre de um país policiado.
Havana
28/03/2004
CITAÇÃO BIBLIOGRÁFICA
Matos, Helena, SALAZAR, Vol. 2, Círculo de Leitores, Lisboa, 2003
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