Carta ao Velho que Serei
«Quando leres esta carta, se leres, já nao te lembrarás do que foi escrevê-la. E eu, que a escrevo, preciso de ta escrever para me libertar do peso que é viver lembrando-me do que se passa, olhando o redor como se o visse do porvir. Tenho vinte e quatro anos que vejo como se a morte me batesse à porta, e olho para o vento a bater nas árvores sem esquecer que esquecerei esse momento. Um homem toca violino num parque de Madrid e eu oiço-o triste, pensando que, quando ele já nao tiver forças, ninguém se lembrará dele. Outro virá para o seu lugar, fazer uma qualquer actividade, seja dar música, fazer magia, fazer caricaturas, e o seu funeral estará vazio. Só passará fugazmente pelas mentes de transeuntes recorrentes que sintam eventualmente a falha. E não por muito tempo.
Sem que existas ainda, penso demasiadas vezes em ti. Ao contrário de muitos outros animais, o ser humano aponta a objectivos, aponta a um futuro. Mesmo que irreal, mesmo que ilusório, há sempre imagens do inexistente, mistela de vontades e medos. Poder-me-ia focar no facto de ser uma corrida atrás de um ponto a que nunca se chega, mas não é isso que importa agora. O que importa agora é a dificuldade de me manter no presente, no momento; a incapacidade de domar a minha mente, vendo no velho que passa numa cadeira de rodas, demasiado cansado para lutar com o que quer que seja, esperando apenas que se apague a sua consciência para sempre, a criança que foi. Na criança que brinca e chora depois de esfolar o joelho, vejo o velho cansado que será, tendo como única vontade contar a alguém a criança que foi. Mas ninguém o quererá ouvir. Vejo o sentido e a falta de sentido de tudo, e não me posso queixar de imaginação ou raciocínio. Mas, como queremos todos o que não temos, eu queria outra coisa. Ser só, levemente. É claro que consigo sentir, mas muito brevemente. Sorrio e, logo a seguir, conheço o meu sorriso. Choro e, quase de imediato, conheço o meu choro. Sei-os, deturpo-os. A consciência rompe a corrente e afasta-me do momento, tanto mais quanto maior se tornar a vontade de nele voltar a mergulhar.
Pesa-me tanto ser eu. Pesa-me tanto não poder ser outra coisa que não eu, não poder ver, ouvir, tactear, sentir o mundo de alguma forma que esteja fora deste corpo que me faz. Eu sou o meu corpo, nasci com o meu corpo e com o meu corpo morrerei, vontade ida de todas as células que em conjunto formam sistemas que me mantêm. Formam-me os ossos, a pele, o coração e restantes vísceras. Formam-me o cérebro. Formam-me as ideias e o peso da consciência de estar vivo e de ser o que sou. E o que sou eu, parado num tempo que não pára? O que sou eu, que envelheço nos interstícios invisíveis do tempo que dão tamanho às árvores aparentemente paradas, que modificam espécies e planetas, que fazem crescer cancros e flores?
Observador silencioso como o tempo, olho pelos meus olhos, não tendo outros. Se se fecharem, escuridão. Não tenho nada para além do meu corpo, nem nada para além do que sinto do que o mundo é. Pensar é outra forma de sentir. É sentir por degraus lentos dormindo em cada um deles. Quem me dera que percebessem o que quero dizer. Quem me dera que as minhas palavras tivessem um destino imortal que não existe, pois mesmo a Terra acabará, e com ela todos os papéis, computadores e mentes. E todos o sabemos e somos viciados em não o saber, contando as horas que temos para deixar uma marca na areia até à próxima onda.
Eu sei o que é sentar-me na montanha e olhar tudo de cima. Eu sei o que é ver cada homem seguir a sua vontade, qual célula de um corpo maior. Só não sei como sorrir sem o peso de o saber, nem acordar sem vontade de chorar o regresso da consciência.
E, pior do que não suportar a vida de que não se pode fugir, pior do que não suportar a ideia da morte que se aproxima, é não querer nem vida nem morte. Pior é ninguém saber, e ninguém sabe.»
Rafael Nascimento
Rafael Nascimento
Excerto escrito em 2015, em Madrid.
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