quarta-feira, 17 de julho de 2019

Etnografar a Arte de Rua (XVII)


GRAFFITAR A LITERATURA

Graffiti na Avenida do Ultramar, velho Hospital de Cascais

                                                                                                                                              
Escombros do Hospital

Fotos de Luís Souta

«Nada que possa ser feito devagar deve ser feito à pressa.»
(Robert Louis Stevenson)

Este soberbo graffiti, o segundo de maiores dimensões do Muraliza 2015, decora uma das fachadas laterais do antigo Hospital (um espaço público ainda desactivado). O seu autor, o argentino Bosoletti, ofertou-nos a figura de uma mulher serena, a extravasar saúde e beleza; as plantas de cores quentes dissimulam a sua tentadora nudez. E, de imediato, veio-me à memória uma passagem do livro Stevenson sob as Palmeiras do também argentino (hoje cidadão canadiano) Alberto Manguel:
«Em Samoa a nudez das mulheres, que tanto incomodava os missionários, nunca era feia. À noite, quando a gente da aldeia descia à praia para se banhar e ficava a chapinhar nas ondas com as crianças, os cabelos negros, fartos e emaranhados das mulheres abriam-se como anémonas na água, e os hibiscos que elas usavam atrás das orelhas flutuavam em torno dos seus corpos, como ilhas ígneas. Stevenson adorava ficar a vê-las do molhe, contemplando-lhes a pele escura, brilhante e dura como pedra vulcânica.» (2003:14)

Nesta curta obra (71 p., Edições ASA), Manguel ficciona a estadia do escocês Robert Louis Stevenson (1850-1894) em Samoa (onde viria a falecer). Apesar de saúde frágil desde a infância e que a tuberculose veio acentuar, Stevenson gostava «de ir» pelo mundo (França, EUA, Pacífico Sul). E foi entre os samoanos, tendo por companhia a mãe, a sua mulher americana e os seus enteados, que viveu um tempo calmo, aprazível, pleno de histórias. 
«– Os nativos gostam de histórias. Eles são a sua própria história, entende? Eles escutam as minhas às vezes. Chamam-me ‘Tusitala’, o contador de histórias. (…) Nesta parte do mundo, as histórias que se contam incorporam-se na realidade.» (p. 28)

O ensaísta e escritor Alberto Manguel (1948), leitor compulsivo (quando adolescente, leu em voz alta para Jorge Luís Borges, e, em 1999, publicou Uma História da Leitura, Editorial Presença), viajante incansável (residiu em Israel, Toronto, França, Taiti), esteve em Portugal por diversas vezes. Dessas ocasiões, ficaram duas interessantíssimas entrevistas ao jornal Público-Ípsilon (02/07/10 e 20/12/13). Aí, responde à questão de ainda fazer sentido ler os clássicos na escola:
«Os grandes clássicos não foram escolhidos por ninguém; não há um comité que decide que Homero é importante. O que houve foram cem gerações de leitores que disseram que esse livro é importante. É isso que define o clássico, é a obra que não se esgota junto dos seus leitores.» 

Por isso, o célebre livro de aventuras Ilha do Tesouro, de Robert Louis Stevenson, tem sido uma das obras recomendadas, e bem, para «leitura autónoma» no 7º ano. Mas será que a leram?

Luís Souta
Post Scriptum: Entre estas duas fotos medeiam três anos e meio e elas ilustram bem o sentido transitório da Street Art enquanto «arte do efémero». O velho Hospital de Cascais está totalmente demolido (ainda chegou a ser anunciado que uma universidade privada iria reconfigurá-lo para o ensino, num curso de medicina). E neste desenfreado deita abaixo, nem o mural do argentino Bosoletti foi poupado!

Este é um espaço apetecível pela especulação imobiliária devido à sua centralidade e enorme área (ocupa quase uma quarteirão).

A insensibilidade dos ‘empreendedores’ da construção e a apatia da sociedade civil explicam esta incapacidade em consolidar este graffiti (do Muraliza 2015) como ‘património’ local. Ficámos todos a perder!

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