sábado, 14 de dezembro de 2024

Do Diário de Vida de Raul Iturra


 A memória dos meus velhos


Eis-me irritante, meu Diário amigo, por essa crença das pessoas todas, dos velhos sermos esquecidos, não entendermos, não dizermos o que pretendemos, termos só memória do passado e ignorar o presente. No entanto, somos pessoas prioritárias em qualquer fila, deixam-nos passar primeiro nas ruas onde os carros param à nossa passagem. Vejo-me obrigado a agradecer mexendo a minha bengala em gesto de cumprimento. Faz pouco fui convidado a ver uma peça de teatro com a minha família. No foyer éramos uma multidão à espera do começo da obra. Os mais jovens, corpos ágeis, tinham aparecido primeiro e estavam sentados nas escassas cadeiras; o meu enteado mais velho e a sua mulher procuraram sítio para mim porque tínhamos chegado mais tarde devido ao meu caminhar lento; uma senhora amável levantou-se e convidou-me a usar o seu sítio contra todos os meus princípios de “ladys first” e dizer, como era meu hábito à mulher que me oferecia a cadeira e à mulher do meu enteado que elas é que deveriam ter prioridade. Princípio que ninguém queria aplicar, eu era um velhinho magro e tremido por estar em pé; eles eram amáveis entendiam a realidade, eu por minha vez queria usar o tradicional “mulheres primeiro” que tinha norteado quase oitenta anos da minha vida…Como é que uma mulher, ainda por cima bonita, ia-me dar o seu lugar?…

               Os velhos não somos pessoas que esquecemos, somos seres de princípios.  Estes princípios têm mudado com a passagem do tempo. Os nossos corpos resistem um pouco, cansamo-nos, custa-nos muito admitir essa realidade. Talvez uma simpatia devesse acompanhar essa gentileza de quem nos quer amparar para nos ajudar, sem acanhamento: um sorriso, uma palavra amável para nos aceitar, uma abertura e argúcia a outras realidades. Ó Diário querido como educar os jovens para serem espontâneos no seu apoio, com alguma imaginação e sem vergonha nem embaraço pela caridade que fazem. Caridade essa que entendo ser a atitude má. Ser caridoso é o que nós os velhos rejeitamos porque salienta a nossa inutilidade na interação social. Na sociedade capitalista da concorrência é a forma de mostrar que somos inúteis na produção, de nos sentirmos pouco ativos na vida social, especialmente depois de termos passado a vida a criar e orientar outros, a criar filhos para serem interativos. Fomos criados numa sociedade que entende que a realidade deve ser caridosa e que obriga a socorrer os velhos…Dizem de nós: “Eles não sabem, coitadinhos não entendem, esqueceram!” Tudo isto é indigno de nós.

               Tenho uma querida amiga entre os meus velhos do lar que fartava de dizer a todos os que queriam ouvir que ela era filha dum senhor que compunha música e escrevia poemas na sua casa da aldeia A, da freguesia B, do concelho de C, do distrito D, onde ela tomava conta do rebanho de cabras e ovelhas todo o dia enquanto ia lendo histórias; após sete anos de contar isto a todos, agora só lembra este facto se lhe é perguntado com simpatia numa conversa normal, com carinho e estímulo. Tenho reparado que este carinho e apoio estimula a memória que outros dizem que não temos, uma memória atrapalhada pelo medo dos que mandam, dos que decidem. Um temor destas nossas crianças que rapidamente no tempo passam a ser autoridades no lugar em que dantes éramos nós a organizar a sua vida. Não reclamo o status quo, não peço para parar a sociedade na geração anterior, só digo que não queremos condescendência, queremos igualdade no tratamento e amor na interação. Não queremos que gozem da nossa conversa, menos ainda fazer pouco de nós, mas queremos que seja aceite sem ironia a realidade que vive o adulto maior; se se aceita com alegria e estímulo o que uma criança inventa como realidade, porque não fazer igual com a criança velha? 

Tenho reclamado esse respeito ao longo da minha vida em livros e ensaios, mas nunca tive aderentes a essa ideia.

Tenho tido companheiros de quarto que se sentem atemorizados quando chegamos ao pé deles, gritam e pedem ajuda, como esse senhor acometido com o mal degenerativo de Huntington que, por casualidade, um dia perguntei-lhe quem era esse lindo rapaz numa foto que tinha ao pé dele, se era filho ou amigo. Ele parou de gritar e disse-me com orgulho ”esse sou eu aos meus vinte anos”. Comecei a falar com ele sobre a sua vida dessa altura, e ele passou a contar-me das pessoas namoradas que tinha tido e, na sua difícil maneira de narrar, disse-me do colega que o tinha seduzido e da mulher que o tinha abandonado pela sua doença. Desde aquele dia pude acarinhá-lo, ouvi-lo, perdi o medo, pude beijá-lo. Um carinho que ele passou a esperar da minha parte porque mais ninguém lhe falava ou acariciava. O medo que eu tinha com os seus gritos passou com o amor que lhe dei e ele por seu lado acalmou. Nenhum homem beija outro na nossa cultura pelo temor de ser qualificado como gay. Com esse medo os machos batem nos outros machos quando é necessário. Para acalmar e apoiar os meus colegas do lar, apenas os funcionários não cristãos tocam e beijam esses velhos doentes. Com eles aprendi e assim a memória volta, e torna a vida calma, volta a simpatia, a comunicação… o medo desaparece, esse medo que faz gritar. Também deste colega de mesa, que sempre dizia que nada tinha para dizer, descobri que tinha uma filha e uma sobrinha com as quais não se dava muito bem, mas foi-me contando a vida da sua descendência e do seu passado. Até ganhou peso, antes aprisionado num corpo magro de solidão, depois de ter socializado seu problema.

                A falta de lembrança também ocorre pela falta de contacto com a  normalidade da realidade criada nas pessoas pela demência senil ou doenças neurológicas que aparecem com a idade. Assim como a senhora que fala com a sua irmã defunta e que quando eu aceitei esta conversa como um facto real, ela passou a sentar-se ao pé de mim e a me contar as suas conversas com a morta. Facto que eu contei às suas filhas e a partir daí, sem dúvida, conseguiram melhorar a sua relação com a mãe. Eu próprio tive uma filha que inventou uma família que dormia na casa de banho da nossa casa. Ela não conseguia dormir sem antes ir deitar a sua família inventada que para ela tinha existência material. Se aceitamos a realidade inventada com respeito, carinho e inteligência para uma criança, porque não se aceita também a realidade inventada pelo adulto maior.

               Os velhos não esquecemos, a nossa verdade é que é diferente da histórica, até por motivos de limitações fisiológicas e biológicas. É difícil viver na interação da concorrência e do lucro para o que já não temos nem informação, força, apetite ou entendimento. A maior parte de nós não pode realizar operações bancárias ou mesmo de comunicação porque hoje em dia tudo é digital e virtual, até o dinheiro pelo que lutamos uma vida inteira transforma-se em números abstratos - nunca o vemos, é imaterial. Como é que se pode pretender que o velhinho se lembre da materialidade que sustenta a memória se hoje ela é completamente diferente? Hoje em dia há barrigas de aluguer para a reprodução humana, matrimónio entre pessoas do mesmo sexo, morte assistida, divórcio, namoros que começam pela cama, valor das palavras na mesma língua que tem diferente significados. É uma sociedade absolutamente diferente para o qual o velho ou velha, este adulto maior, foi educado e que as religiões persistem em impingir como verdade dogmática contra os princípios que agora governam a interação…  A maior parte da sociedade está condenada a não lembrar o que não viveu… Com carinho é que se entende as recordações e realidade deste ser que já é de outra história. A falta de carinho dá medo e o medo faz esquecer.

Professor Doutor Raul Iturra, Catedrático Emérito do ISCTE-IUL

Texto Editado por Claire Smith, Antropóloga

Barra Mansa, Dezembro de 2024 


domingo, 8 de dezembro de 2024

"Fui Lá Visitar Pastores..."

 por Luís Santos


1. O PENSADOR

Quando o irmão Bapu* nos convidou para o visitarmos em Luanda(!), entre vários outros artefactos, trouxemos de lá um "Pensador", companheiro de todos os dias, extraordinária estatueta que é um dos símbolos nacionais de Angola.

Essa estatueta, anos passados, acabou por dar um trambolhão e ficou amputada nalgumas partes do corpo... e nós amputados também... mas, curiosamente, logo nos ofereceram outra com o dobro do tamanho.

Temo-la exposta em casa, ao lado da secretária de trabalho, escritório e quarto, e hoje ao olharmos para ela, mais uma vez, admirámos a perfeita estética, a robusta e encantadora madeira, pau-preto.

Depois o pensamento levou-nos ao Mpingo, o nome da árvore, à semente que a deu, na terra vermelha em que cresceu, da água que bebeu, luz do sol, via láctea, galáxia das galáxias. Quem diria, este Pensador feito uma semente, tem em si o universo inteiro.

Mais ainda, além de uma admirável cultura, representa a experiência dos longos anos, a sabedoria e o conhecimento dos segredos da vida.

Valete, fratres.

(*) Bapu, quer dizer “pai”, nome com que os indianos se referem carinhosamente a Mahatma Ghandi. Mahatma, por sua vez, significa grande alma, venerável. Aqui, extensível a um querido irmão, e ele sabe quem É.


2. OS PAPÉIS DO INGLÊS

Ontem à noite fomos revisitar Angola. Fomos sozinhos, mas não desacompanhados. Esta coisa de deixar o medo e pensamentos negativos de lado, foi princípio que a vida nos ensinou. E até porque, em boa verdade, somos todos muitos mais do que só um.

Na lembrança, lá mais atrás, uma inesquecível visita a um irmão de armas, mas não militares, embora em período de guerra civil. Daquela vez à volta de Luanda, até ao Mussulo. Sempre fomos puxando pelo fim das guerras, e conseguimos. 40 anos.

Ontem, foi o deserto do Namibe. Corre-nos no sangue. Toda aquela faixa de areia avermelhada, onde não há mais nada, a beijar a longa costa atlântica, de onde nos chegam flores do lácio, Mariana.

Fomos lá visitar pastores.

P.S.: Os Papéis do Inglês é um filme produzido por Paulo Branco e realizado por Sérgio Graciano a partir do livro do antropólogo Ruy Duarte de Carvalho "Vou Lá Visitar Pastores".


domingo, 1 de dezembro de 2024

Vítor Moinhos





Vítor Moinhos

Cabana

40x40

Acrílico sobre tela



terça-feira, 19 de novembro de 2024

Do Diário de Vida de Raul Iturra

 

Alegrias no Lar

 Tenho a impressão, Diário amigo, que não sou capaz de deixar de expressar nas tuas páginas que a vida no lar, em que resido, também tem as suas piadas…falo de funcionários, de utentes perdidos…mas não tenho falado das confusões que também se geram aí...seria como não entender as palavras ou as conversas que a minha segunda irmã, já falecida, gostava de contar, como esta história:

“Era um capitão dum barco de turistas que no meio duma tempestade chamou um marinheiro que era gago e disse-lhe para atirar a âncora para parar o barco porque este estava a soçobrar. O marinheiro gago que mal entendia as palavras e mal avaliava as situações,  ripostou ao comandante: “pois é capitão,  é melhor so-sobrar do que fa-faltar…!” contava a minha falecida irmã quando brincava em vida. Eu ria como um possesso com a história do jovem marinheiro gago que confundia “soçobrar” que quer dizer afundar com o “so- sobrar” que era a sua forma gaga de dizer sobrar… Era uma irmã divertida, como o era também o escritor espanhol Jardiel Poncela do começo do século XX , que narra no seu espantoso livro “La Tournée de Dios” que o criador numa anunciada visita à terra apareceu num balão Zeppelin... Os notáveis da terra o esperavam em formação no cimo dum monte, com o representante da divindade na terra, o Papa na frente da fila; Deus desce do Zeppelin, um velhinho magro, pequeno, com uma pequena mala na mão direita e vestido de fraque, olha  indeciso e com temor para tanta gente aí reunida, hesita e avança duvidoso para um senhor vestido de vermelho, ajoelha-se e diz com temor:  “Santidade…” e beija o chão… o cardeal em questão sente-se embaraçado e lhe diz com medo “meu Senhor, não sou eu… é esse pequenino vestido de branco que está aí…” e dissimuladamente o cardeal aponta várias vezes com o dedo para ao lado e Deus diz…”Desculpe, é que há tanta gente… e faz tão pouco tempo que mudaram o meu representante na terra que fico confuso… também já estou tão velho que me engano…”

Se o marinheiro curtido equivoca-se, se a divindade engana-se também, o que não será Diário querido dos enganos dos meus velhos do lar! Era essa capacidade de se equivocar que vários de nós usamos maldosamente para nos divertir com os nossos colegas utentes. Foi o que eu fiz vezes sem conta com a minha querida amiga de mesa, essa senhora gorda que adorava a hierarquia das classes sociais do qual eu tomei vantagem e disse-lhe um dia que: “as pessoas da alta usam a colher e não a faca para comer”. Ela de imediato pousou a faca, e passou doravante a usar a colher para comer;  olhava para mim com um porte altivo, elegante, com uma certa arrogância no seu visual e passou a aconselhar a todos usar a colher em vez da faca para comer… Todo o lar come agora com este talher tão prático que até os funcionários o aconselham e todos o preferem. Duma brincadeira nasceu uma forma de comer bem mais prática  para os velhos. Ou também o problema do garfo… em que sugeri, também à minha gorda amiga… “que os dentes do garfo devem-se pôr para baixo, como o usam as marquesas e condessas para não se picarem os dedos”; essa minha amiga acreditou e assim passou a fazer e foi imitada por vários utentes que se orientavam pelo seu comportamento. Na visita seguinte da sua família ela apareceu com ar de orgulho e disse “sou agora uma condessa e como como tal …o Sr. Doutor ensinou-me” e a família ficou feliz por vê-la tão bem disposta. “Parabéns Sr. Doutor parabéns por diverti-la!” Sem eu lhes dizer o que eu me tinha divertido com estas anedotas. Como o caso de outro colega de mesa que adora comer e repetir o prato, esse grande e gordo amigo meu, que a todas refeições dizia: “senhora cozinheira não me dava mais um pouquinho, um nadinha de comida a mais , por favor, uma nadinha...”. Eu advertia: “Ó senhora cozinheira não se engane, é só uma nadinha, meia batata, meia colher de arroz apenas…e o colega de mesa, educado e tímido como era reforçava…”pois é cozinheira é mesmo como o Sr. Doutor diz…”. Felizmente ninguém ligava ao que nós dizíamos e o prato da segunda vez aparecia cheio. Foi assim que esse meu amigo aumentou mais vinte quilos de peso. Até lhe é difícil andar agora! Passou de setenta a noventa quilos, facto quase inédito numa casa de repouso sempre a poupar para não gastar, mais inclinada a poupar para lucrar e repartir esse dinheiro poupado aos velhos pela família proprietária… Uma família que brinca com a vida dos utentes. Assim quando aparecem na casa de repouso vão logo directo desligar os aquecimentos dos quartos ou retirar o aquecedor da sala de convívio aquecida agora só pelo calor humano dos vinte e tal utentes apinhados nesta sala. A outra sala de estar antigamente usada, que é excelente, com sol e vista para o jardim e para as árvores foi suprimida por “ordem superior”…antes fosse brincadeira, pensava eu..,queria eu..,sonhava eu…

Essas brincadeiras com os meus colegas utentes não eram apenas minhas, a minha amiga gorda um dia disse-me que eu não era doutor nem merecia ser assim chamado porque eu andava a namorar com uma senhora utente que não prestava, dizia ela, porque nem sabia como me tratar, nem sabia dizer-me sr. Doutor como ela fazia…e essa minha amiga gorda deixou de falar comigo durante dias a fio; foi uma situação incómoda a de estar na mesa com quem estávamos habituados a falar, com quem tínhamos falado durante anos e que eu queria como amiga verdadeira. Felizmente a acusada de conviver comigo disse um dia a esta minha amiga que ela era uma esposa devota ao seu falecido marido, acrescentando que de certeza a senhora gorda também o seria. Então ela reconsiderou e sem explicação nenhuma começou a falar-me outra vez e desta forma um dia disse-me: “O senhor Doutor merece todos os complimentos porque  Deus o fez Doutor." Foi a melhor brincadeira da minha vida. O que eu tinha suado para ser doutorado, os anos de pesquisa, os montes de livros estudados, o sacrifício da minha família e agora no lar, a minha beata amiga pensa que tudo o que é bom desce desde do Criador, sendo nós uma pura porcaria que deveríamos agradecer e ficar calados! Engano que todos sofremos pelo ensino da Santa Madre…Igreja …Católica…uma simpatia dos cónegos que ensinam a palavra de Deus. Meu Deus! Santa paciência…! 

Os enganos são grandes, não só o do marinheiro mas também os dos dons atribuídos à divindade. Outro  engano divertido surgia à hora do jantar quando  um amigo de 92 anos telefonava à sua namorada e lhe dizia “...meu amor já estou na bicha do jantar”.  Era todos os dias corrigido por outra minha amiga utente, que dantes dançava comigo, mas que tinha perdido a sua capacidade de andar e que desde o seu confinamento numa cadeira de rodas ouvia, mandava e dizia-lhe, aos gritos;  “ não é bicha!...é fila! …bicha é homem que gosta de homem!” O  namorado apressava-se a corrigir, ou seja, sofria desse mal mundial que pune a quem ama pessoas do seu mesmo sexo, o que felizmente está a mudar… o amigo de 92 anos morreu antes de mudar de opinião. A amiga da cadeira de rodas não vai mudar facilmente como não muda para me dizer diariamente e várias vezes “Como está hoje Sr. Presidente Américo Tomás!” Dizer-me isso a mim que estou em Portugal por causa duma ditadura que combati, passei assim, vivendo num lar, a ter os poderes de outra ditadura que nunca conheci. Uma delícia de brincadeira!

São os divertimentos dos que não sabem que confundem a história da humanidade porque vivem noutra realidade chamada doença senil, como essa outra utente que entrou a falar francês aprendido da sua emigração de trinta anos em Paris e que após sete anos de vida no lar só canta em português as música da nossa Amália ou o hino de Fátima.  “A 13 de Maio…” Que nem Deus nem os gritos dos outros utentes conseguem calar; ou o caso do homem que vai a caminho aos 100 anos e que me chama “doido do caralho”. Um novo nome que este senhor criou para mim e que cada vez que não faz chichi na porta de entrada do lar vai à casa de banho que eu uso e quando eu entro ele entra também e diz-me “saca o seu caralho  para cruzar a sua mija  com a minha, como eu fazia com os meus amigos quando batíamos punheta todos juntos…” e  eu fujo antes que queira bater punheta comigo … . Eu nem reporto o caso à direcção, só ia arruinar a reputação do senhor centenário e não ia curar a demência senil de que sofre e que um dia o vai matar…

É uma risada o que conto e que tem divertido a minha vida no lar, na casa de repouso que tenho habitado há quase uma dezena de anos. Se não procurar esses divertimentos que o Mozart fez com a música no séc XVIII como ia eu poder viver e guardar comportamento adequado ao meu entendimento. Eu faço rir os mais próximos, os mais amigos, os colegas de mesa, mas até certo ponto apenas, porque uma não ouve, outra não tem voz, outro só fala para dizer que nada tem para dizer e… só fala para pedir mais comida ou para dizer “não me chateiam a cabeça…não me dêem  banho, não quero, nasci limpo…”,
pois é assim também como ele se cheira… É como um galinheiro em que a convivência de galinha, patos, gansos que tenho tido o prazer de cuidar ao longo da minha vida, bicam-se, os machos batem nas fêmeas, como é comum acontecer entre humanos…os mais grandes sempre batem nos mais pequenos como se o seu corpo fosse o capital que dá lucro que permite o prazer. É a alegria dos seres humanos que sabem bater nos mais perdidos…Diário querido…alegrias do lar…

Professor Doutor Raul Iturra, Catedrático Emérito do ISCTE-IUL

Texto Editado por Claire Smith, Antropóloga

Barra Mansa, 16 Novembro de 2024 


quinta-feira, 31 de outubro de 2024

Mural da História

 por Luís Santos

OUTONAIS

Ainda há pouco, quando fui comprar o pão nosso de cada dia, dei com uma conversa de circunstância entre vizinhos, sobre um conflito primário que se lhes relacionava e, pensei eu com os meus botões, certamente de forma algo injusta, tratarem-se de pessoas com um qualquer tipo de ligação à azáfama de coisas mais básicas que durante o resto do dia ficam ligados nos crimes do “correio da manhã tv” que, como se sabe, a julgar pelo elevado “share” das audiências, é um dos canais que determinam a representatividade política da nossa jovem democracia. E, de repente, pelo meio do ruído que ecoava pelas paredes da padaria, sem olhar a quem, de forma inesperada e em jeito conclusivo, saiu-se assim: “deixe lá, o universo sempre acaba por pôr as coisas no seu lugar”.

Mural da história: Tão evidentes que são os limites da nossa natureza e, ao mesmo tempo, tão ilimitados. 

UMA FAMÍLIA DO NEPAL

Ontem numa turma que junta estudantes de dois cursos de licenciatura, "Comunicação Social" e "Tradução e Interpretação da Língua Gestual Portuguesa", falámos de estudos antropológicos sobre a organização da família em vários povos espalhados pelo mundo.

Nesses estudos, fizémos referência ao que se chama de monogamia, bigamia, poligamia e poliandria. De forma simplificada, chama-se de monogamia quando uma união familiar junta um homem e uma mulher; de poligamia quando um homem vive maritalmente com duas ou mais mulheres; e de poliandria quando uma mulher casa com vários homens.

O primeiro caso faz regra um pouco por todo o mundo ocidental; o segundo caso é muito frequente no continente africano; o terceiro caso encontra-se em países da Ásia.

Na foto, uma mulher do Nepal com seus três maridos.

Mural da história: As sociedades humanas caracterizam-se, de facto, por uma grande diversidade cultural nas múltiplas formas em que se organizam.


terça-feira, 29 de outubro de 2024

Vítor Moinhos

 



Vítor Moinhos

Desfragmentação

100x80

Acrílico sobre tela


terça-feira, 15 de outubro de 2024

Do Diário de Vida de Raul Iturra


 

Noite Irritante


Quando chega a noite, Querido Diário, começa o meu eterno problema:

 “Será que eu vou dormir ou não? Será que o meu colega de quarto vai dormir para eu dormir também?”

Tenho tido sucessivos colegas de quarto, como tenho narrado antes, cada um com feitios e preocupações diferentes. O meu primeiro colega foi o cego que gostava de ser chamado o “garanhão do lar” porque tinha seduzido várias senhoras, as velhinhas nossas colegas utentes que gostavam dele. Elas o disputavam aos murros entre elas, com uma certa cumplicidade minha para o advertir quando via “mouros na costa”, quer dizer os funcionários a vigiar comportamentos. Era um colega de quarto que mal me deixava dormir porque apesar de tanta atividade sedutora deitava-se cansado, adormecia e ressonava… Outro problema ao que me tive que habituar e…habituei-me!

Em toda a minha permanência no lar deitava-me cedo para acordar cedo. Comecei por me deitar às dezanove horas para acordar às quatro e quarenta e cinco. A minha esperança era poder adormecer a pensar na minha família distante e imaginar minhas filhas como pessoas queridas e sábias. O que eu não sabia era que este poder dormir cedo e acordar calmo era devido aos sedativos que me eram prescritos pela  minha descendente psicóloga clínica e tutora. Uma antiga médica do lar achou essa medicação excessiva e, com a sua sabedoria e a minha resiliência, ajudou-me a mudar a receita. Preferia eu com o seu apoio ser dono de mim e do meu pensamento. Elaborei uma estratégia para me controlar. O meu comprimido para dormir acabou e depois de vários dias a dormir pouco e mal, aprendi a descansar a noite toda: eu meditava sobre uma ideia e dava voltas e voltas a essa ideia até que essa cansativa reiteração aborrecia-me e adormecia, após ter feito uma respiração profunda de dez ou quinze inspirações e expirações de ar que tinha aprendido no yoga. O medo de não dormir, no entanto, estava sempre presente mas lembrava-me da dita médica, da sua simpatia, da sua gentileza, da sua amabilidade e essa lembrança acalmava-me, conseguia retornar ao meu pensamento e adormecia. A verdade, Querido Diário, é que o medo da insónia é duro, é pesado, amedronta. Sem a medicação instala-se esse estar calado a pensar nos problemas da vida quotidiana. É uma dor que não recomendo, é uma ansiedade que nos mantém despertos e gera um problema de convívio no dia seguinte; não podia queixar-me a ninguém porque arriscava-me a automáticamente  ser me receitado de novo o calmante para adormecer e me ser retirada essa liberdade de escolher o meu próprio comportamento. Viver a minha realidade, viver a minha escolha, que era o que eu pensava quando acordava no meio da noite. No meu pensamento estava sempre presente a minha aprendizagem ao longo da minha vida intelectual, quando estudei e escrevi sobre as idéias de Emmanuel Mounier, Jacques Maritain, Tomás de Aquino e Aristóteles. Essas ideias eram fruto do debate secular sobre predestinação e livre arbítrio que caracteriza tanto o oriente como o ocidente sobre o destino da humanidade. Era eu um entusiasta apoiante das ideias de Agostinho de Hipona, séc. IV, que defendia duramente que éramos livres para pensar e agir e assim salvar a nossa alma. Um destino que Jean Calvin de Genebra do séc XVI argumenta que a nossa salvação já estava pré-destinada. Salvar ou perder a alma para os que acreditam nela, um debate que leva mais de três mil anos na arena intelectual. Com esse debate e essas teorias no meu recordo durante noites irritantes, ia adormecendo enquanto assim fugia do lar em pensamento. Era essa uma questão que não inquietava os meus colegas utentes cujo livre arbítrio, tanto defendido para mim e para os outros, estavam perdidos na demência senil, no alzheimer e na obedência ao credo católico e nos calmantes administrados para passar a noite e não escarafunchar a paz do recinto chamado “casa de repouso”. Era um debate impossível num lar de não livre escolha; pensava eu enquanto arguía para adormecer com a predestinação calvinista e com a tese da igreja escocesa presbiteriana de condenação e o dito livre arbítrio dos católicos. Deus punia pelos tantos pecados cometidos durante a nossa vida  e nos lança para o inferno, essa delícia da chamada Santa Inquisição. Nem ideia tinham os meus meus queridos velhos desse secular debate, desse meu debate com os meus professores dominicanos, em que pensava enquanto pretendia adormecer, eu, homem sem crenças fazia já muito tempo. Assim ia cansando o meu pensamento e a minha mente, e, adormecia. Levemente lembrava-me que era um debate começado por mim aos meus 14 anos e que na noite irritante dos meus oitenta, ajudava-me a dominar a ansiedade que causava a insónia… livre, predestinado, livre, predestinado…e aparecia essa menina nua na minha cama e assim reparava que sonhava, quer dizer, dormia, sonhava, via as horas e reparava que tinham passado horas … santo céu!... sempre ia descansando. Tornava a pensar em Aristóteles  e a leitura desses livros proibidos feitas pelo dominicano Tomás de Aquino no séc XIII, que para não pecar tanto lia os escritos do árabe Averróis sobre Aristóteles…um sábio Islamico cujos textos iluminaram Aquino que por sua vez defende a minha apreciável liberdade de escolha…e ia eu pensando, nesse meio acordar, meio dormir da uma da manhã, o que vou eu dizer à minha amiga quando às cinco da manhã lhe envio a minha mensagem habitual no computador que uso no lar e com essa preocupação tão material e terrena tornava a adormecer…Uma motosserra a atroar  acordava me outra vez às três da manhã…era o ressonar do meu companheiro de quarto, o garanhão, ressonar profundo, duro, barulhento…dei-lhe um grito e calou-se mas entrou a funcionária da noite a pedir silêncio e com voz exacerbada…”Os senhores nem me deixam descansar no turno da noite, gritam tanto”. Pensei que não era bom rispostar, o que me iria criar outra causa de insônia, e assim deixar a funcionária da noite dormir no seu turno… ainda eram três e meia da madrugada. Era possível dormir um pouco…um par de horas…não se descansa…a aula acabava…havia palmas…eu corado fazia reverências como quando estrelava numa peça de teatro na minha juventude…era mais uma vez a funcionária da noite a bater as mãos “acordar, sair da cama!…”...não havia liberdade de escolha tomista…a funcionária não sabia disso, mas sabia que queria ir embora para casa, para dormir após um dia e uma noite de trabalho. Levantar todos os velhinhos às cinco da manhã permite-lhe sair às sete. Já não pensei mais estava descansado por ter conseguido dormir algumas horas,  podia ir escrever após o meu duche quotidiano e descrever no meu diário mais uma noite irritante com o medo da insónia que a dinamiza… e esperar a passagem do dia… para dormir no sofá e depois à noite voltar para a minha cama com esse típico medo da insónia numa casa que repousa com calmantes…santa paciência!


Professor Doutor Raul Iturra, Catedrático Emérito do ISCTE-IUL

Texto Editado por Claire Smith, Antropóloga


sábado, 12 de outubro de 2024

Coisas que se vêm da nossa janela

 por Luís Santos


Filho de muito boa gente, mas muito pouco dados às letras, ainda assim, puseram-me na escola paga logo aos 3 anos. Desconheço as razões porque o fizeram, mas fiquei de tal forma com o destino marcado que nunca mais de lá saí. No meio de inúmeras dificuldades e obstáculos, lá fui fazendo uma vida de Professor, faz muitos anos.

Quando ingressei na Universidade, tive como Professor um chileno, que fugia do golpe fascista de Pinochet, e acabou a coordenar licenciatura que eu fiz, enquanto já ia dando umas aulas que me garantia a almejada autonomia financeira.

Esse Professor, de seu nome Raul Angel Iturra, que veio do lugar chileno de Vale Paraíso, se bem me lembro, com doutoramento pelo meio feito em Cambridge, acabou também por presidir à Associação Portuguesa de Antropologia que, por seu convite, acabei por integrar durante dois biénios. Em resumo, aqui ficaram dez anos de vida que nos juntaram, o Doutor que veio do Chile e o filho de gente nada ligada à escola que, por ironia do destino, haveria de cair nas letras que tão pouco lhe diziam.

Hoje, o distinto Doutor que, entre-tanto, se tornou Professor catedrático, agora jubilado, depois de muitos anos de intervalo, tornou-se nosso colaborador neste pasquim digital que vamos mantendo por aqui, já faz quase década e meia. Assim, uma vez por mês, e de há meia dúzia de meses para cá, vai assinando uma rubrica que tem como título "Do Diário de Vida de Raul Iturra. A vida no Lar." E escreve o Professor de forma tão distinta, e tão esclarecida, pela farta experiência nas letras que a vida lhe deu, que nós vos recomendamos vivamente a ler.

 

 *          *          *          *          *

 

Quando interrogados sobre a última das verdades, os videntes védicos resumiam dizendo: “Eu sou o Universo”.

Ora, “ser tudo”, na nossa cultura é uma afirmação que não deixa de soar estranho, e a propósito até se conta a história de uma dama inglesa que ao visitar umas grutas na Índia onde yogis faziam as suas meditações, foi amavelmente recebida por um deles e, no fim da visita, ela disse-lhe:

- Talvez o senhor não costume sair daqui, mas eu gostaria muito de lhe mostrar Londres.

- Minha senhora – respondeu-lhe calmamente o yogui -, eu sou Londres.

 

 *          *          *          *          *

 

Não é fácil o Amor.

Faz já algum tempo, um PÁSSARO AZUL como numa aparição, pousou mesmo à nossa frente. Quando o passámos para poema, o extraordinário pintor, amigo, António Tapadinhas dedicou-lhe uma tela. Chamou-lhe "o pintor e o pássaro azul".

Janita Salomé, canta-autor que tem alguns irmãos ali para o Redondo, Alentejo, também deu nome de tal pássaro ao seu último album, basta ir no "you tube" e ouvir, por exemplo, "Tardes de Casablanca" ou "Não é Fácil o Amor", entre outras.

Pois bem, a belíssima pintura de que falamos é a que se vê. Deu capa a um livro de contos que chamámos "O Espírito dos Pássaros", tal como o dito cujo deu título a um dos contos que dele fazem parte.

O livrinho foi editado pela Bubok, uma editora espanhola de vendas on-line, mas o número de livros em papel impresso foi muito reduzido. Como também o editámos em formato digital, acessível a todos, aqui deixamos o endereço para alguém que tenha curiosidade em visitá-lo. Basta ir no seguinte endereço: http://oespiritodospassaros.blogspot.com

Tem fotografias muito bonitas e podem simplesmente correr o texto que não se vão arrepender. Trata-se de uma ave de BOA SORTE. BOAS VIAGENS.

 


quinta-feira, 26 de setembro de 2024

Do Diário de Vida de Raul Iturra

 

Os velhos somos também pessoas que amamos.

A afetividade no lar. 


Lembras-te, Querido Diário, que temos falado de perda de identidade no lar. Parece-me que a pior das perdas é a falta de amar e sermos amados. Somos criados na vida social como construtores da identidade amorosa, como criadores de afetividade. Começamos por amar os nossos pais, continuamos pela empatia com os nossos irmãos, parentes e amigos. Amamos e gostamos de ser amados pela pessoa que nos pode acompanhar durante a nossa vida; se temos filhos tomamos conta deles e se é uma relação não reprodutiva ou adoptamos ou amamos os dos amigos. Não é preciso consultar Freud ou seu discípulo Donald Winnicott para entender que querer e desejar são actividades muito próximas: quando queremos alguém, normalmente queremos tocar essa pessoa, não apenas dar a mão ou um golpe no ombro ou um braço pelo pescoço, também queremos abraçar estreitamente e beijar. O costume ocidental é homem beijar mulheres e vice-versa, crianças beijar adultos, adultos acarinhar pequenos.


Estes factos não existem nos lares onde tenho vivido  exceto raras ocasiões de intimidade entre homem e mulher. Não há solução para a falta de abraço estreito, menos ainda o de beijar exceto, como eu aprendi a fazer com adultos com doenças senis ou degenerativas que precisam de contacto físico afectivo: dar a mão, trocar palavras, acariciar. É uma forte dor não ter ninguém para abraçar. Donald Winnicott descobriu o que tenho analisado num outro livro meu e diz que a partir do quarto mês de gestação a criança em formação desenvolve afetividade erótica e normalmente quando um pénis erecto entra numa vagina com um bebé em formação, este feto mexe e tenta expelir o intruso que penetra a essa futura mãe.

 

O amor e o desejo existem no lar, especialmente  entre adultos com camaradagem prolongada. Tive no meu quarto um colega que passado um ano de conversas sobre a sua família filhos e mulher sobre qual ele sempre falava, perguntou-me um dia: “Ó Doutor acha que faz mal que eu bata uma punheta”, “ó meu amigo só não faz mal como é o hábito de pessoas sós e desde criança, bata que é bom para si”. Prudentemente eu me retirava do quarto quando ele parecia excitado e respeitei a única intimidade possível para um velho num lar. Única possibilidade erótica para idosos, cabelos brancos, rugas, com falta de excitação exceto se é estimulado. As pessoas mais novas procuram seres da sua geração que permitam um desejo mais agradável. Nós os velhos também queremos ter interacção sexual mas dificilmente se torna possível com pessoas mais novas que não se sentem atraídos por nós. No lar a vigilância é tão estreita que ainda que haja atração esta não se pode materializar.


Eu tive a tentativa de sedução dentro do lar por uma amiga de longa data que me contava os sonhos eróticos que ela tinha comigo. “Ó Sr. Doutor, ontem à noite sonhei que o senhor me penetrava e eu sentia-me feliz, tive que brincar com a minha “patareca” para me satisfazer. Eu replicava “fico feliz de saber que a satisfiz, ainda que na sua fantasia”, “Sr Doutor não queria meter-se na cama comigo?”, “Ó minha senhora era uma grande honra mas cá está proibido” “quem, quem proibiu…, fazer amor não é pecado”, “minha senhora é pecado para os que mandam no lar e não permitam que nós dois possamos brincar”. Contudo não havia dia que eu não fosse de manhã  visitar a senhora desde a porta do seu quarto, não havia noite que eu antes de deitar não fosse ao quarto dela para lhe levar bolachas que ela esperava com prazer e fruição. Não era só a bolacha que ela esperava, era também a carícia na sua mão e a minha voz que lhe pedia que tivesse doces sonhos e que não falasse com as suas colegas de quarto para ela dormir e elas descansarem bem. Ao longo de 9 anos habituamo-nos à simpatia de falarmos, comer na mesma mesa, mudar o canal de televisão para que possa ver o que ela queria até que esta minha amiga foi removida da minha mesa e lhe deram o seu lugar sentada noutra sala. A nossa amizade foi interrompida pela autoridade do lar, não apenas não podíamos materializar nenhum desejo bem como a nossa troca de ideias e conversas foi acabada. Não é apenas o desejo proíbido bem como o cultivo da amizade pura e casta que  também foi acabada. Só foi possível retomar nossa conversa quando ela começou a perder a sua memória e o contacto com a vida real e voltaram a dar-lhe o seu lugar no sofá junto ao meu no corredor da entrada, não pela nossa amizade mas bem por conveniência do lar. Foi assim que, sentada ao pé de mim, eu ouvia as suas histórias, tomava conta dela, chamando um funcionário quando os chichis e os cocós saiam da fralda para o chão e pedia a mudança de fraldas quando já estava toda a roupa empapada. Foi uma amizade aceite porque passei a ser útil nesta casa de repouso para uma utente que já não era capaz de controlar os seus esfíncteres. A  utilidade é o que manda nas relações do lar.


Não apenas eu tive este contacto simpático na nossa vida em comum, também havia um outro colega de quarto praticamente cego que namorava uma senhora utente da sua geração e que tinham de fechar a porta do quarto para eles se acariciarem despidos e eu tinha que avisá-los atempadamente quando iam aparecer funcionários que proibiam o amor entre velhos. Nunca me esqueço dessa primeira vez que entrei no nosso quarto e ele estava sem calças nem fraldas e ela despida sem camisola e sem soutien. Esta primeira vez ela gritou e como ainda era mulher ágil, saltou da cama e correu de volta ao seu quarto aos gritos “meu Deus, meu Deus, que horror, desculpa…” foi a partir desse dia que eu falei com o meu colega e pedi-lhe para ter mais cuidado na sua sedução. Ele ria e disse-me que ele era o “garanhão do lar”, que estava aí para amar e fornicar com essa e outra velha que gostava dele e o perseguia usando as suas mão para o esfregar entre as pernas e ele feliz, satisfeito com a sua vida erótica do “velho mais ativo sexualmente” do lar.


Havia formas simpáticas de usar a líbido proibida, especialmente dar-se as mãos, trocar beijos, ouvir declarações de amor. Não esqueço esse senhor que estava sempre a solicitar os amores de uma idosa que ele queria, mas era-lhe proibido declarar-se abertamente. A afetividade e o desejo apareciam de outras formas como o de essa senhora que dançava comigo quando havia festas e saídas para o jardim da casa mas que acabaram quando ficou confinada numa cadeira de rodas por se ter acidentado e partido o osso da perna no seu eterno andar pelos corredores do lar. A partir daí a afetividade passou a manifestar-se nas sessão de jogo do bingo,  a beijar-me e dar-me a mão quando eu ia a falar com ela na sua cadeira e dizia-me “Ó Sr. Presidente Américo Tomás dê trabalho ao meu filho que não consegue juntar dinheiro para mim”, “Senhor tenente ande cá dê-me a mão e acaricia-me as bochechas e beija-me”. O que eu fazia para a sua alegria e satisfação. Ou aquele senhor habituado a estar com a mãe e a irmã em casa deles mas que no lar não tinha a quem acarinhar e chamava-me aos gritos, agarrava as minhas mãos mas beijava e punha as suas bochechas a jeito para eu as beijar e, às vezes, beijava-me nos lábios, ele feliz e eu complacentemente  entendi a sua necessidade de afecto. Tanto assim que sem me chamar eu ia de modo próprio à sua cadeira de rodas acariciava as suas mãos e beijava-o com simpatia. Às vezes ia ao seu quarto onde era levado por causa dos seus gritos, o acariciava, o acalmava e ele parava de gritar.


A afetividade no lar é muito controlada. A maior parte dos idosos raramente recebem visitas porque os seus parentes estão a trabalhar. Quando os parentes vão visitá-los, falam com eles, levam-lhes lanches ou bolachas ou frutas e o idoso ou idosa visitado passam a ter a sua afetividade satisfeita por um tempo. Quando os parentes vão embora procuram uma pessoa amiga entre os colegas utentes para, pelo menos, conversar. A afetividade como eu dizia está reduzida ao mínimo ou a carícias que alguns funcionários, especialmente os estrangeiros, dispensem aos utentes. Nunca esqueço este primeiro ano de atividade de um funcionário que mal entrava de turno comprimentava com beijo nas bochechas todos os idosos sentados na sala de convívio. Ou as funcionárias não portuguesas que atribuíam aos idosos  diminutivos ou alcunhas, criadas por elas.  Mas também há as senhoras funcionárias que abraçam e beijam os utentes com senilidade menos avançada, com abraços estreitos, apertados e excitantes. Todos eles ficavam felizes de serem assim amados por pessoas que exercem autoridade sobre o comportamento dentro do lar.


O que mais me admira é a suavidade e a paciência com que funcionários muito crentes na divindade sorriem, acariciam, abraçam, contam histórias a pessoas que de outra maneira não teriam ninguém em quem se apoiar para amar e serem amados. A afetividade é procurada por quem viveu uma vida inteira a procriar, educar e produzir. A afetividade é um bem precioso que quando estamos mais combalidos e solitários e sem ninguém para tocar, procuramos a simpatia de quem, mas nem sempre, nos pode amar. Uma das formas que alguns dos utentes têm de exprimir a sua emotividade é gritar, vilipendiar, chamar nomes, inventar histórias que vários dos outros utentes rejeitam ofendidos. Já tinha referido no capítulo anterior a senhora de 94 anos que grita “puta, bêbada, caralho” que acorda nos outros, especialmente nas suas colegas de mesa uma raiva que se manifesta em gritos de zangas, às vezes em muros com que as ofendidas tentam defender o seu bom nome que tanto estimam.


Não consigo esquecer um funcionário, que deixou de trabalhar no lar, que vivia com o seu companheiro, sargento do exército, na casa maternal e que por hábito dava nomes simpáticos a toda a população idosa do lar. Eu fui batizado por ele de “doutor charmoso”, especialmente quando eu vestia calças brancas e camisola vermelha, ele vinha me abraçar estreitamente e me beijava; fiquei triste quando ele se foi embora para um sítio melhor. Ele normalmente contava-me as suas histórias de amor e de como mudava rapidamente de namorado porque nenhum deles prestava para ele; eu aconselhava-lhe e trocava ideias sobre o namoro, tal como eu falava com outros funcionários de suas famílias o que eles agradeciam; é mais uma forma de expressão da solidão afectiva que todos temos de uma casa tão fora da realidade social. A afetividade é tão deturpada que eu costumava sonhar que fazia amor com uma funcionária muito bonita mas de um temperamento espantosamente desagradável, distante e aos gritos comigo. Não permitia que eu saísse do meu quarto antes das cinco da manhã, a minha hora habitual que tive que adotar no lar. Não me dava o chá com açúcar medicamente prescrito para o meu acordar. Ela evitava comprimentar-me no dia dia e no entanto eu falava-lhe de forma simpática e nos meus sonhos a desejava. Normalmente ela não sabia do meu sonho como dos que eu contava a uma outra funcionária com a qual éramos amigos e riamos, estrepitosamente. Era assim como manifestava o meu carinho aos funcionários estrangeiros que também me iam contando as suas vidas e as suas solidões por estarem longe dos seus países. Eram tão exilados como eu, eu político eles de economia política. As nossas conversas pessoais ficam comigo por serem complexas e delicadas.

 

Os velhos somos pessoas. Os velhos amamos. Os velhos desejamos. Os velhos queremos fazer amor. Existe a pacata ideia de que passado setenta anos, nós, idosos, temos dado cabo do nosso erotismo. Com o que eu tenho referido, posso provar como é uma falácia; que é impossível satisfazer o desejo como o imaginamos, lá isso é verdade. Sim, como disse antes os velhos amamos e desejamos, mas o nosso desejo é abafado pelas leis da ética das religiões que impede uma relação entre duas pessoas que não estão casadas de forma heterosexual. É abafada pela crença nessa ética pela autoridade do lar e pela moral dos funcionários que nunca sei se é respeitada também na sua vida quotidiana. Os funcionários nos vêm com o olhar desta ética que exige que nós tenhamos um comportamento  de respeito dos costumes que não acredita na sinceridade do amor entre velhos para exprimirem a sua afetividade. 



Professor Doutor Raul Iturra, Catedrático Emérito do ISCTE-IUL

Texto Editado por Claire Smith, Antropóloga

Barra Mansa, Setembro de 2024 


domingo, 8 de setembro de 2024

Filosofias do Oriente




 Breves notas sobre Filosofia Vedanta, Hinduísmo, Budismo e Taoísmo

Quando do curso de doutoramento na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, a parte curricular implicava a escolha de alguns seminários. Um dos escolhidos, Filosofia das Religiões, comparava espiritualidades ocidentais e orientais. Aqui ficam algumas sínteses dos estudos que se desenvolveram.

1. Vedas

Entre as escrituras sagradas hindus, contam-se os "hinos védicos", pensamentos sagrados da civilização védica que antecedem o hinduísmo. A recitação dos hinos sagrados dos vedas sempre foi mantida até hoje, desde há milhares de anos. 

A civilização védica desenvolveu-se até ao século VI (a.C.), período em que a sua cosmogonia começou a transformar-se nas formas clássicas do hinduísmo. 

Segundo o conhecimento védico, a alma individual, idêntica ao Absoluto, nunca nasce e nunca morre. Nunca nascida e eterna, fora do tempo, ela não morre quando morre o corpo.

2. Hinduísmo 

O Mahãbãrata é um dos livros que faz parte das escrituras sagradas hindus. Um dos seus capítulos é o célebre Bhagavad-Gita, ou a “A Canção de Deus”. 

O grande protagonista do capítulo que fala na primeira pessoa, Krishna, o avatar de Vishnu, ou seja, a própria divindade, dialoga com Arjuna, seu discípulo guerreiro, em pleno campo de batalha. Arjuna representa o papel de uma alma confusa sobre o seu dever e recebe iluminação diretamente do seu divino mestre que o instrói na arte da autorrealização.

A essência de Krishna é o universo inteiro, a totalidade. Tudo é sagrado. Tudo é uno. O uno e o múltiplo são inseparáveis. 

É o texto inspirador de Ghandi. Einstein dizia que quando o lia e pensava nas leis do universo, tudo o resto se tornava vulgar. 

3. Budismo 

Depois de atingir o despertar Siddartha Gautama, o Buda, sentiu o apelo de transmitir aos outros a sua sabedoria. A palavra Buda, mais do que uma pessoa, designa um estado de consciência que permite apreender a verdadeira realidade das coisas.

A filosofia budista parte da definição das "4 nobres verdades": a constatação do sofrimento; o sofrimento provém de uma mente limitada; é possível cessar o sofrimento; há um caminho para cessar o sofrimento. 

Ou seja, as causas do sofrimento são internas e é possível removê-las. O caminho que se propõe é um método que ajuda na libertação da mente, uma técnica meditativa para concentração do espírito e da mente, de forma a um atingir um determinado estado de repouso e, consequentemente, de consciência. 

Algum tipo de meditação sempre surge associada às diferentes filosofias antigas da Índia e é uma prática intrínseca do Yoga.

31. Reencarnação 

É um dos ensinamentos fundamentais do budismo. O espírito humano pode elevar-se até a um “espírito subtil” ou “consciência subtil”. Esta consciência existe independente do corpo e do cérebro. É o espírito subtil que reencarna. 

Seguindo o Dalai Lama, a reencarnação está ligada a um certo nível da vida do espírito. Se este espírito for desenvolvido pode escolher o seu próprio destino. É então um passo para a libertação, para uma possível melhora. Sem esta escolha o renascimento é uma queda no samsara, sucessão de vidas que ocorre sem parar. Enquanto a existência estiver condicionada, o ciclo renascimento/morte perdurará.

3.2 Transferência da Consciência e Libertação pela Escuta 

Quando os sinais ocorrem indicando que a morte se aproxima devemos prepararmo-nos para a transferência da consciência e refletirmos sobre os ensinamentos da Libertação pela Escuta nos Estados Intermediários. 

Quanto à transferência da consciência há um exercício que deve ser treinado: Devemos tapar todos os orifícios começando pelo reto, da procriação, umbigo, boca, narinas, olhos e ouvidos. No cimo da cabeça devemos visualizar a fontanela, depois visualizar também o canal central, no meio do corpo, direito e ereto – na sua extremidade inferior, abaixo do umbigo devemos visualizar um ponto seminal branco e brilhante, o qual constitui a essência da consciência desperta, pulsando continuamente e à beira de ascender. A força vital vai movê-lo ascensionalmente, até ao umbigo, depois coração, depois garganta, depois o espaço entre as sobrancelhas e, por fim, vai até à fontanela, após o que devemos visualizar que ele gira de novo para baixo e vem repousar abaixo do umbigo como uma difusão branca. Há que permanecer neste estado durante algum tempo. 

Diz-se que obteremos a libertação se a consciência sair pela fontanela da coroa. Os lugares mais importantes do corpo para uma transferência da consciência depois da fontanela são os olhos e a narina esquerda. 

Quanto à Grande Libertação pela Escuta, quando uma pessoa se aproxima da morte é habitual procurar-se um lama qualificado que deve iniciar as recitações de introdução ao estado intermediário.

Após a respiração haver cessado, a energia vital é absorvida no canal da sabedoria primordial e a consciência emerge como uma radiância interior. O defunto pode ouvir tudo o que se passa à sua volta, mas os outros não o podem ver. Assim, ele pode ir-se embora. Neste momento surgem três fenómenos: sons, luzes e raios de luz, o que pode provocar medo ou pasmo. Assim, durante este período deve ser lida a Grande Introdução ao Estado Intermediário da Realidade. 

Terminamos com um pequeno excerto da leitura a ser realizada:

“Ó Filho da Natureza de Buda, quando a tua mente e corpo se separarem, surgirão as puras (e luminosas) aparições da própria realidade: subtis e claras, radiantes e deslumbrantes, naturalmente brilhantes e terríveis, tremeluzindo como uma miragem numa planície no Verão. Não as temas! Não fiques horrorizado! Não estejas aterrado! Elas são as luminosidades naturais da tua própria realidade verdadeira. Reconhece-as.” O corpo agora que tens chama-se um “corpo mental”. Tu, agora, estás para além da morte. Isto é o estado intermediário. Se não reconheceres os sons, as luzes e os raios de luz, continuarás a vaguear dentro dos ciclos da existência. 

 4. Taoísmo 

Lao-Tsé (604-517 a.C.) é o grande precursor da tradição filosófica chinesa conhecida por Taoísmo. O principal livro que a suporta é o “Tao Te King”, o Livro da Via e da Virtude. Tao significa (Vida), Te (Energia), King (Virtude). 

Trata-se de um texto com grande economia de palavras, onde com pouco se diz muito, onde se crê que o dito e o não dito são absolutamente inseparáveis, onde “o silêncio é um amigo que nunca trai”. 

Porém, o Tao não pode ser explicado nem por palavras, nem pelo silêncio. Nele tudo flui, tudo é governado sem desígnio. Tentarmos encontrar o seu sentido é perder. Tudo já é. A rosa é sem porquê… nascida no tempo certo, floresce porque floresce.

É-nos dado como a eficácia da naturalidade. Tudo acontece quando tem de acontecer. Só age bem quem não está interessado em agir.

À partida, não se precisa acrescentar nada aquilo que já somos. O sábio é como a água, corre sempre a via que tem de correr. Ele não se preocupa consigo e, todavia, é o que ocupa o lugar mais proeminente. 

O céu trata tudo e todos de uma forma indiferente, mas benéfica. A ideia essencial do Tao é que o mundo se produz por um “não fazendo”, onde se deve agir de forma espontânea, deixando a mente à vontade.


sexta-feira, 30 de agosto de 2024

Do Diário de Vida de Raul Iturra

 

A PERDA DE IDENTIDADE NO LAR


Nem tudo o que acontece no lar, querido diário, é resultado do eterno debate entre funcionários e utentes ao qual me tenho referido nas páginas anteriores. Entramos no lar já velhos, cansados, com uma história de vida marcada pelas nossas relações sociais construídas na interação com os outros. Somos pessoas resultado da nossa vida social, vivemos em nichos definidos pela dita interacção. Nascemos, somos filhos, um primeiro nicho social; se temos pila entramos na categoria de homem, se não, mulher. Desenvolvemos o nosso comportamento imitando os adultos que nos criam, que nos rodeiam, que acompanham o nosso crescimento, sejam eles familiares ou instituições que tomam conta de crianças. Em breve somos estudantes, somos enviados para instituições chamadas escolas para sermos introduzidos à cultura, à mente cultural do estado em que vivemos: somos preparados para sermos cidadãos do país em que nascemos e incutem-nos sabedoria de letras, sabedoria de história, sabedoria sobre o universo em que moramos; incutem-nos também a crença numa divindade e um comportamento religioso que define como agirmos com outros seres humanos; incutem-no sermos pessoas.


Os anos passam, cada época da nossa vida é diferente da etapa anterior: somos aprendizes, somos estudantes, chegamos à idade de amar e sermos amados, à idade de trabalhar e colaborar com a economia social, passamos a ser profissionais. Uma profissão seja letras, ciência ou trabalho direto, que nos introduz à economia, que nos dá salário, casa, emprego. Normalmente encontramos o nosso par, juntamo-nos, acasalamos, passamos ao estatuto de pais, criamos, educamos, orientamos. A nossa atividade muda de etapa em etapa e vamos ganhando uma identidade pela qual somos conhecidos no país de que somos parte. Somos cidadãos com responsabilidade ética, estética e afetiva. É principalmente o nosso papel de pais que define o nosso comportamento como um elo importante do nosso objectivo de vida: não apenas reproduzimos seres humanos, também reproduzimos saber para introduzir os seres humanos que criamos na vida social, como nós também fomos igualmente introduzidos. Sermos pais é o mais importante da nossa vida de interação. O nosso objetivo não é apenas educar, é também amar e ser amado pela geração de pessoas que temos estado a criar. Crescemos, envelhecemos, cansamo-nos. A geração que criamos devia tomar conta de nós e velar por um fim adequado de vida, calmo, tranquilo e economicamente funcional. No entanto, a vida social moderna tem organizado uma interação que retira os mais velhos da responsabilidade social directa e entrega-os a lares que os alimentam, os cuidam, os vestem, definem os seus parâmetros quotidianos.


A nossa identidade muda de sermos adultos responsáveis para sermos outra vez crianças que obedecem a um plano definido de comportamento individual. A nossa vida social muda, deixamos de ser entidades, passamos a sermos indivíduos obedientes.


Já não vou referir o que acontece com os outros colegas utentes do lar em que vivo como tenho feito nos outros capítulos do meu diário mas vou  passar a vasculhar apenas na minha própria vida. Um dia não consegui andar, colocaram nas minhas mãos um andarilho para me apoiar e continuar meu quotidiano como sempre tinha sido. Esta etapa não durou muito tempo: caía na rua, enganava-me nas compras, a minha gestão económica era-me difícil com o pouco dinheiro que me era pago cada mês pela minha reforma, pela mudança das formas do acontecer no quotidiano; entrou na nossa vida pessoal  a internet, os bancos passaram a serem geridos pelo computador, as compras eram feitas em linha, enfim um descalabro que me acontecia após 70 anos de uma construção histórica social liderada por mim próprio e a partir do meu entendimento. As formas de vida mudaram de tal maneira que era necessário uma nova educação para viver de forma autónoma como o tinha feito antes. Confiei que a minha descendência ajudar-me-ia, confiei que a minha descendência explicar-me-ia as novas formas de ação em função da minha nova etapa de vida. Não tive esta sorte. A minha descendência resolveu fechar-me num lar e referir que eu não entendia a realidade, que eu estava doente e não valia a pena explicar-me a nova vida social, e isolar-me do mundo que eu tinha ajudado a construir foi a solução encontrada. Eu próprio acreditei que era incapaz de perceber o mundo atual causado por doença progressiva, seria parkinson e demência vascular tal como me era explicado que doravante era a minha realidade. Felizmente uma médica do lar disse-me: Doutor Raul vamos parar com estas queixas e doenças, vamos diminuir a medicação que toma ao pequeno almoço, almoço, e jantar e a pouco e pouco vai se confrontar com a vida como ela é e não como a sua filha mais velha, a quem foi confiada a sua tutoria, lhe quer fabricar. Perguntei-lhe como iria eu fazer? Com paciência, com calma e boa disposição, respondeu-me a médica, e  quando precisar venha falar comigo para contar-me o que pensa, o que sonha e o que sente.

 

A partir deste momento foi uma progressiva viragem.

 

Assim no lar eu tinha todo o tempo para mim, estava isolado, não tinha passeios, não tinha visita dos meus amigos e colegas excepto o convívio com duas antigas estudantes de doutoramento que não pararam de me acompanhar, alguns passeios com uma antiga amiga de longa data e pelo convívio da minha filha mais nova que me visitava desde do estrangeiro um par de vezes ao ano. Visitas escassas devido à distância do lar do meu antigo local de vida e dominadas pela falta de partilha da vida social ativa.


Como disse antes tinha todo o tempo para mim e pensando como redefinir um convívio com os meus colegas de lar resolvi apoiar quem precisasse cada vez que fosse necessário, andar, ajudar os meus colegas a jogar ao bingo com a animadora cultural, ler livros sem fim o dia todo, escrever o meu diário de vida na sofá que uso, inventar conversas com funcionários amigos que me relatavam o que acontecia no mundo exterior. Raramente ouvia notícias, normalmente nunca aceitei sentar-me a ver televisão. Conseguir ler e escrever foi o meu objectivo de vida. Era difícil convencer as diversas diretoras do lar de como eu queria organizar a minha vida. Fiz-me amigo profundo de uma senhora com quem almoçava, conversava e ria. Esta senhora foi retirada da minha mesa e fui colocado com outras pessoas sendo assim o meu convívio organizado pela direcção do lar, por ordem de quem neste tempo, conforme a lei, era a minha tutora. Tive que lutar e com ajuda de poucos amigos e da minha filha mais nova, mandei o meu grito de ipiranga  recorremos ao tribunal de família e tempo mais tarde fui libertado da minha submissão a uma tutoria que me ia matando. A minha identidade foi recuperada pelo grande esforço e disciplina de vida que organizei no meu dia a dia: acordar às 5 da manhã, tomar banho, escrever e viver o dia entre comidas, conversas, reflexões e música. Tive sorte, e a pouco e pouco tornei a ser o Raul Iturra que eu tinha sido. Comecei a interagir em mensagens e telefonemas com algumas pessoas que quiseram responder às minhas mensagens e chamadas.

 

No lar é mais fácil perder identidade e submeter-se ao que define a direção por ordem da família. Falei com o proprietário do lar e pedi para ser tratado como um velho que não tinha para onde ir e aí morava por falta de acolhimento noutro sítio. O lar submete. O lar manda. O lar ouve a família e não o utente. O utente normalmente tem pouco para dizer e passa a ser como criança como falei nos capítulos anteriores. No meu caso infelizmente entendia o que acontecia e bati-me contra a disciplina e organização do meu tempo por outros. Aceitei horário de comida do lar, mas o meu tempo quotidiano foi por mim organizado: assim me entretive e os nove anos passaram sem eu reparar.

Somos pessoas. Somos adultos, somos pais, somos cidadãos. Tudo isso parece acabar quando se quer manter uma  disciplina no seio de um grupo de adultos que passa o dia a conversar e ver televisão, eventualmente a se entreter com as atividades de animação cultural. Há eleições nacionais, ninguém sabe e ninguém vota, ninguém vai às urnas. Apenas dois de nós temos seguido à risca a planificação política do país. Ninguém sabe o que se passa nem qual será o futuro. O nosso país prescinde das pessoas que moram em lares apenas orientados pelas suas famílias nas quais cada utente confia com profundidade e nos quais tem esperança de os ver outra vez numa próxima visita.


O lar faz perder a identidade de ser pessoa que a sociedade nos incute antes de sermos velhos entrando assim no fim da sua vida sem que saibamos para onde vamos, nem com quem, nem como. Eu gritei, pedi acesso ao tribunal de família e libertei-me do autoritarismo com que a lei manda tratar os velhos do país. Tentei recuperar a minha identidade mas choro pela solidão dos meus colegas que ainda estão fechados no lar sem saber para onde vão até um dia dele sair no seu próprio funeral.



Professor Doutor Raul Iturra, Catedrático Emérito do ISCTE-IUL

Texto Editado por Claire Smith, Antropóloga

Barra Mansa, Agosto de 2024


sábado, 17 de agosto de 2024

Crónicas de Paulo Landeck


EM ÓRBITA

Desejou ter barba de raspar fósforos, e guardar no bolso universal uma pedra de isqueiro para desconsertar improvisado céu em noite escura, quando fugisse novamente de casa para viver nas dunas à beira mar.

Nessa altura, em que tudo se podia e quase nada era ainda permitido pelos pais, - nem mesmo fugir de casa, - sonhou desentortar um dos olhos com o garfo e cuspi-lo até à lua! 

Com um pouco de sorte, deixaria a sua marca em solo lunar. 

Mas...tinha uma dúvida, só uma dúvida: 

não saberia como piscar o olho mais tarde, ciente de que perderia o globo e a dúvida surgiria.

Tinha só esse problema com o olho, o seu olho, uma dúvida, sem o resto do corpo em redor para o chatear...imaginem se fossem duas, problemas a dobrar!

Lá bem ao alto, a singular dúvida persistiria, na direção do berlinde terrestre que reflectia vivo azul e deflectia algo que talvez nem sequer pudesse um dia voltar a vislumbrar; por seu deleite, e por todos os oceanos que o seu olho jamais derramaria, seguro no garfo ou longe de si, admitiu o fracasso da ideia.

Procurou renovar sofrimentos, queria agora polir o fosco iluminado pelo farol. 

Se esquerdo ou direito, não sabia precisar...e ao centro, sobejava o nariz.  

Das três, uma certa, libertou-se da armação devido à condicionada ilusão.

Tanto sonhou e sonhou para não deixar de quebrar óculos...e assim, possíveis fragmentos de janelas e mais janelas perdidas no espaço!

Ainda como consequência, o lume jamais se apagou das páginas bruxuleantes dos muitos livros lidos fora de horas. - Palavra de narrador. - Estava mais do que certo, destinado para toda a vida a sonhar acordado. - E talvez depois da morte fosse uma espécie de sonho ao contrário, quem sabe, livre de pesadelos. Não sei...sonhos e pesadelos sempre andaram de mão dada, pelo menos, na vida real de quem sonha acordado. - 

De nada lhe valeria fugir de casa...ainda que encontrasse seguramente conforto nas dunas de verão à beira-mar.

Naquele tempo, dificilmente existiria céu igual. 

Despertou. 

Pensou então em aprimorar nova técnica de olho posto na ambição. Quem sabe o que dali resultaria, se resolvesse explorar uma outra órbita à procura de familiar globo ocular, desta feita, de faca e garfo. - Nada como a boa educação, nunca sabemos quem pode estar à espreita numa qualquer janela indiscreta. -

Deu por si abraçado a um enorme sobreiro despido, inequivocamente envergonhado. 

Seria por causa do coração da menina gravado à navalhada pelo futuro marinheiro!? 

Faltava-lhe o garfo, afinal. 

Não sabia ainda, se o coração dela palpitaria sequer por tão notável entrega e delicadeza. 

Desconhecidas as contas, não passava de um sonhador preso no espaço, ansioso por regressar à Terra, tremendamente nervoso por avaliar todas as possibilidades de regresso. - 

Tinha visto uma vez em vários documentários, como as impressionantes expedições às florestas virginais, podiam bem começar nos despenteados vasos das varandas, algures pela vizinhança. 

Avencas e fetos até o ajudavam a pensar, mas ali, na zona nascente da serra, só tinha um enorme sobreiro corado, e uma navalha de algibeira para cortar os cotos no lugar das côdeas...-

sem um pé-terra sequer para afogar ansiedade em sumo; e quando assim é, o melhor é aguardar que chova. -

Procurou então novos sinais, de pés bem assentes na terra...para dar com marca pintada cor da neve. Quedou-se incrédulo: próximo encontro marcado com a desgraçada que lhe dera a volta ao miolo, só dali a nove anos!

Como pôde ser tão cruel...não podia ser...

Tinha quase a certeza de estar bem perto das nove da noite, por issso, resolveu esperar mais um pouco.