A memória dos meus velhos
Eis-me irritante, meu Diário amigo, por essa crença das
pessoas todas, dos velhos sermos esquecidos, não entendermos, não dizermos o
que pretendemos, termos só memória do passado e ignorar o presente. No entanto,
somos pessoas prioritárias em qualquer fila, deixam-nos passar primeiro nas
ruas onde os carros param à nossa passagem. Vejo-me obrigado a agradecer
mexendo a minha bengala em gesto de cumprimento. Faz pouco fui convidado a ver
uma peça de teatro com a minha família. No foyer éramos uma multidão à
espera do começo da obra. Os mais jovens, corpos ágeis, tinham aparecido
primeiro e estavam sentados nas escassas cadeiras; o meu enteado mais velho e a
sua mulher procuraram sítio para mim porque tínhamos chegado mais tarde devido
ao meu caminhar lento; uma senhora amável levantou-se e convidou-me a usar o
seu sítio contra todos os meus princípios de “ladys first” e dizer, como era
meu hábito à mulher que me oferecia a cadeira e à mulher do meu enteado que
elas é que deveriam ter prioridade. Princípio que ninguém queria aplicar, eu
era um velhinho magro e tremido por estar em pé; eles eram amáveis entendiam a
realidade, eu por minha vez queria usar o tradicional “mulheres primeiro” que
tinha norteado quase oitenta anos da minha vida…Como é que uma mulher, ainda
por cima bonita, ia-me dar o seu lugar?…
Os
velhos não somos pessoas que esquecemos, somos seres de princípios. Estes
princípios têm mudado com a passagem do tempo. Os nossos corpos resistem um
pouco, cansamo-nos, custa-nos muito admitir essa realidade. Talvez uma simpatia
devesse acompanhar essa gentileza de quem nos quer amparar para nos ajudar, sem
acanhamento: um sorriso, uma palavra amável para nos aceitar, uma abertura e
argúcia a outras realidades. Ó Diário querido como educar os jovens para serem
espontâneos no seu apoio, com alguma imaginação e sem vergonha nem embaraço
pela caridade que fazem. Caridade essa que entendo ser a atitude má. Ser
caridoso é o que nós os velhos rejeitamos porque salienta a nossa inutilidade
na interação social. Na sociedade capitalista da concorrência é a forma de
mostrar que somos inúteis na produção, de nos sentirmos pouco ativos na vida
social, especialmente depois de termos passado a vida a criar e orientar
outros, a criar filhos para serem interativos. Fomos criados numa sociedade que
entende que a realidade deve ser caridosa e que obriga a socorrer os
velhos…Dizem de nós: “Eles não sabem, coitadinhos não entendem, esqueceram!”
Tudo isto é indigno de nós.
Tenho
uma querida amiga entre os meus velhos do lar que fartava de dizer a todos os
que queriam ouvir que ela era filha dum senhor que compunha música e escrevia
poemas na sua casa da aldeia A, da freguesia B, do concelho de C, do distrito
D, onde ela tomava conta do rebanho de cabras e ovelhas todo o dia enquanto ia
lendo histórias; após sete anos de contar isto a todos, agora só lembra este
facto se lhe é perguntado com simpatia numa conversa normal, com carinho e
estímulo. Tenho reparado que este carinho e apoio estimula a memória que outros
dizem que não temos, uma memória atrapalhada pelo medo dos que mandam, dos que
decidem. Um temor destas nossas crianças que rapidamente no tempo passam a ser
autoridades no lugar em que dantes éramos nós a organizar a sua vida. Não
reclamo o status quo, não peço para parar a sociedade na geração anterior, só
digo que não queremos condescendência, queremos igualdade no tratamento e amor
na interação. Não queremos que gozem da nossa conversa, menos ainda fazer pouco
de nós, mas queremos que seja aceite sem ironia a realidade que vive o adulto
maior; se se aceita com alegria e estímulo o que uma criança inventa como
realidade, porque não fazer igual com a criança velha?
Tenho reclamado esse respeito ao longo da minha vida em
livros e ensaios, mas nunca tive aderentes a essa ideia.
Tenho tido companheiros de quarto que se sentem atemorizados
quando chegamos ao pé deles, gritam e pedem ajuda, como esse senhor acometido
com o mal degenerativo de Huntington que, por casualidade, um dia
perguntei-lhe quem era esse lindo rapaz numa foto que tinha ao pé dele, se era
filho ou amigo. Ele parou de gritar e disse-me com orgulho ”esse sou eu aos
meus vinte anos”. Comecei a falar com ele sobre a sua vida dessa altura, e ele
passou a contar-me das pessoas namoradas que tinha tido e, na sua difícil
maneira de narrar, disse-me do colega que o tinha seduzido e da mulher que o
tinha abandonado pela sua doença. Desde aquele dia pude acarinhá-lo, ouvi-lo,
perdi o medo, pude beijá-lo. Um carinho que ele passou a esperar da minha parte
porque mais ninguém lhe falava ou acariciava. O medo que eu tinha com os seus
gritos passou com o amor que lhe dei e ele por seu lado acalmou. Nenhum homem
beija outro na nossa cultura pelo temor de ser qualificado como gay. Com esse
medo os machos batem nos outros machos quando é necessário. Para acalmar e
apoiar os meus colegas do lar, apenas os funcionários não cristãos tocam e
beijam esses velhos doentes. Com eles aprendi e assim a memória volta, e torna
a vida calma, volta a simpatia, a comunicação… o medo desaparece, esse medo que
faz gritar. Também deste colega de mesa, que sempre dizia que nada tinha para
dizer, descobri que tinha uma filha e uma sobrinha com as quais não se dava
muito bem, mas foi-me contando a vida da sua descendência e do seu passado. Até
ganhou peso, antes aprisionado num corpo magro de solidão, depois de ter
socializado seu problema.
A falta de lembrança também ocorre pela falta
de contacto com a normalidade da realidade criada nas pessoas pela
demência senil ou doenças neurológicas que aparecem com a idade. Assim como a
senhora que fala com a sua irmã defunta e que quando eu aceitei esta conversa
como um facto real, ela passou a sentar-se ao pé de mim e a me contar as suas
conversas com a morta. Facto que eu contei às suas filhas e a partir daí, sem
dúvida, conseguiram melhorar a sua relação com a mãe. Eu próprio tive uma filha
que inventou uma família que dormia na casa de banho da nossa casa. Ela não
conseguia dormir sem antes ir deitar a sua família inventada que para ela tinha
existência material. Se aceitamos a realidade inventada com respeito, carinho e
inteligência para uma criança, porque não se aceita também a realidade
inventada pelo adulto maior.
Os velhos não esquecemos, a nossa verdade é que é diferente da histórica, até por motivos de limitações fisiológicas e biológicas. É difícil viver na interação da concorrência e do lucro para o que já não temos nem informação, força, apetite ou entendimento. A maior parte de nós não pode realizar operações bancárias ou mesmo de comunicação porque hoje em dia tudo é digital e virtual, até o dinheiro pelo que lutamos uma vida inteira transforma-se em números abstratos - nunca o vemos, é imaterial. Como é que se pode pretender que o velhinho se lembre da materialidade que sustenta a memória se hoje ela é completamente diferente? Hoje em dia há barrigas de aluguer para a reprodução humana, matrimónio entre pessoas do mesmo sexo, morte assistida, divórcio, namoros que começam pela cama, valor das palavras na mesma língua que tem diferente significados. É uma sociedade absolutamente diferente para o qual o velho ou velha, este adulto maior, foi educado e que as religiões persistem em impingir como verdade dogmática contra os princípios que agora governam a interação… A maior parte da sociedade está condenada a não lembrar o que não viveu… Com carinho é que se entende as recordações e realidade deste ser que já é de outra história. A falta de carinho dá medo e o medo faz esquecer.
Professor Doutor Raul Iturra, Catedrático Emérito do ISCTE-IUL
Texto Editado por Claire Smith, Antropóloga
Barra Mansa, Dezembro de 2024