quinta-feira, 31 de outubro de 2024

Mural da História

 por Luís Santos

OUTONAIS

Ainda há pouco, quando fui comprar o pão nosso de cada dia, dei com uma conversa de circunstância entre vizinhos, sobre um conflito primário que se lhes relacionava e, pensei eu com os meus botões, certamente de forma algo injusta, tratarem-se de pessoas com um qualquer tipo de ligação à azáfama de coisas mais básicas que durante o resto do dia ficam ligados nos crimes do “correio da manhã tv” que, como se sabe, a julgar pelo elevado “share” das audiências, é um dos canais que determinam a representatividade política da nossa jovem democracia. E, de repente, pelo meio do ruído que ecoava pelas paredes da padaria, sem olhar a quem, de forma inesperada e em jeito conclusivo, saiu-se assim: “deixe lá, o universo sempre acaba por pôr as coisas no seu lugar”.

Mural da história: Tão evidentes que são os limites da nossa natureza e, ao mesmo tempo, tão ilimitados. 

UMA FAMÍLIA DO NEPAL

Ontem numa turma que junta estudantes de dois cursos de licenciatura, "Comunicação Social" e "Tradução e Interpretação da Língua Gestual Portuguesa", falámos de estudos antropológicos sobre a organização da família em vários povos espalhados pelo mundo.

Nesses estudos, fizémos referência ao que se chama de monogamia, bigamia, poligamia e poliandria. De forma simplificada, chama-se de monogamia quando uma união familiar junta um homem e uma mulher; de poligamia quando um homem vive maritalmente com duas ou mais mulheres; e de poliandria quando uma mulher casa com vários homens.

O primeiro caso faz regra um pouco por todo o mundo ocidental; o segundo caso é muito frequente no continente africano; o terceiro caso encontra-se em países da Ásia.

Na foto, uma mulher do Nepal com seus três maridos.

Mural da história: As sociedades humanas caracterizam-se, de facto, por uma grande diversidade cultural nas múltiplas formas em que se organizam.


terça-feira, 29 de outubro de 2024

Vítor Moinhos

 



Vítor Moinhos

Desfragmentação

100x80

Acrílico sobre tela


terça-feira, 15 de outubro de 2024

Do Diário de Vida de Raul Iturra


 

Noite Irritante


Quando chega a noite, Querido Diário, começa o meu eterno problema:

 “Será que eu vou dormir ou não? Será que o meu colega de quarto vai dormir para eu dormir também?”

Tenho tido sucessivos colegas de quarto, como tenho narrado antes, cada um com feitios e preocupações diferentes. O meu primeiro colega foi o cego que gostava de ser chamado o “garanhão do lar” porque tinha seduzido várias senhoras, as velhinhas nossas colegas utentes que gostavam dele. Elas o disputavam aos murros entre elas, com uma certa cumplicidade minha para o advertir quando via “mouros na costa”, quer dizer os funcionários a vigiar comportamentos. Era um colega de quarto que mal me deixava dormir porque apesar de tanta atividade sedutora deitava-se cansado, adormecia e ressonava… Outro problema ao que me tive que habituar e…habituei-me!

Em toda a minha permanência no lar deitava-me cedo para acordar cedo. Comecei por me deitar às dezanove horas para acordar às quatro e quarenta e cinco. A minha esperança era poder adormecer a pensar na minha família distante e imaginar minhas filhas como pessoas queridas e sábias. O que eu não sabia era que este poder dormir cedo e acordar calmo era devido aos sedativos que me eram prescritos pela  minha descendente psicóloga clínica e tutora. Uma antiga médica do lar achou essa medicação excessiva e, com a sua sabedoria e a minha resiliência, ajudou-me a mudar a receita. Preferia eu com o seu apoio ser dono de mim e do meu pensamento. Elaborei uma estratégia para me controlar. O meu comprimido para dormir acabou e depois de vários dias a dormir pouco e mal, aprendi a descansar a noite toda: eu meditava sobre uma ideia e dava voltas e voltas a essa ideia até que essa cansativa reiteração aborrecia-me e adormecia, após ter feito uma respiração profunda de dez ou quinze inspirações e expirações de ar que tinha aprendido no yoga. O medo de não dormir, no entanto, estava sempre presente mas lembrava-me da dita médica, da sua simpatia, da sua gentileza, da sua amabilidade e essa lembrança acalmava-me, conseguia retornar ao meu pensamento e adormecia. A verdade, Querido Diário, é que o medo da insónia é duro, é pesado, amedronta. Sem a medicação instala-se esse estar calado a pensar nos problemas da vida quotidiana. É uma dor que não recomendo, é uma ansiedade que nos mantém despertos e gera um problema de convívio no dia seguinte; não podia queixar-me a ninguém porque arriscava-me a automáticamente  ser me receitado de novo o calmante para adormecer e me ser retirada essa liberdade de escolher o meu próprio comportamento. Viver a minha realidade, viver a minha escolha, que era o que eu pensava quando acordava no meio da noite. No meu pensamento estava sempre presente a minha aprendizagem ao longo da minha vida intelectual, quando estudei e escrevi sobre as idéias de Emmanuel Mounier, Jacques Maritain, Tomás de Aquino e Aristóteles. Essas ideias eram fruto do debate secular sobre predestinação e livre arbítrio que caracteriza tanto o oriente como o ocidente sobre o destino da humanidade. Era eu um entusiasta apoiante das ideias de Agostinho de Hipona, séc. IV, que defendia duramente que éramos livres para pensar e agir e assim salvar a nossa alma. Um destino que Jean Calvin de Genebra do séc XVI argumenta que a nossa salvação já estava pré-destinada. Salvar ou perder a alma para os que acreditam nela, um debate que leva mais de três mil anos na arena intelectual. Com esse debate e essas teorias no meu recordo durante noites irritantes, ia adormecendo enquanto assim fugia do lar em pensamento. Era essa uma questão que não inquietava os meus colegas utentes cujo livre arbítrio, tanto defendido para mim e para os outros, estavam perdidos na demência senil, no alzheimer e na obedência ao credo católico e nos calmantes administrados para passar a noite e não escarafunchar a paz do recinto chamado “casa de repouso”. Era um debate impossível num lar de não livre escolha; pensava eu enquanto arguía para adormecer com a predestinação calvinista e com a tese da igreja escocesa presbiteriana de condenação e o dito livre arbítrio dos católicos. Deus punia pelos tantos pecados cometidos durante a nossa vida  e nos lança para o inferno, essa delícia da chamada Santa Inquisição. Nem ideia tinham os meus meus queridos velhos desse secular debate, desse meu debate com os meus professores dominicanos, em que pensava enquanto pretendia adormecer, eu, homem sem crenças fazia já muito tempo. Assim ia cansando o meu pensamento e a minha mente, e, adormecia. Levemente lembrava-me que era um debate começado por mim aos meus 14 anos e que na noite irritante dos meus oitenta, ajudava-me a dominar a ansiedade que causava a insónia… livre, predestinado, livre, predestinado…e aparecia essa menina nua na minha cama e assim reparava que sonhava, quer dizer, dormia, sonhava, via as horas e reparava que tinham passado horas … santo céu!... sempre ia descansando. Tornava a pensar em Aristóteles  e a leitura desses livros proibidos feitas pelo dominicano Tomás de Aquino no séc XIII, que para não pecar tanto lia os escritos do árabe Averróis sobre Aristóteles…um sábio Islamico cujos textos iluminaram Aquino que por sua vez defende a minha apreciável liberdade de escolha…e ia eu pensando, nesse meio acordar, meio dormir da uma da manhã, o que vou eu dizer à minha amiga quando às cinco da manhã lhe envio a minha mensagem habitual no computador que uso no lar e com essa preocupação tão material e terrena tornava a adormecer…Uma motosserra a atroar  acordava me outra vez às três da manhã…era o ressonar do meu companheiro de quarto, o garanhão, ressonar profundo, duro, barulhento…dei-lhe um grito e calou-se mas entrou a funcionária da noite a pedir silêncio e com voz exacerbada…”Os senhores nem me deixam descansar no turno da noite, gritam tanto”. Pensei que não era bom rispostar, o que me iria criar outra causa de insônia, e assim deixar a funcionária da noite dormir no seu turno… ainda eram três e meia da madrugada. Era possível dormir um pouco…um par de horas…não se descansa…a aula acabava…havia palmas…eu corado fazia reverências como quando estrelava numa peça de teatro na minha juventude…era mais uma vez a funcionária da noite a bater as mãos “acordar, sair da cama!…”...não havia liberdade de escolha tomista…a funcionária não sabia disso, mas sabia que queria ir embora para casa, para dormir após um dia e uma noite de trabalho. Levantar todos os velhinhos às cinco da manhã permite-lhe sair às sete. Já não pensei mais estava descansado por ter conseguido dormir algumas horas,  podia ir escrever após o meu duche quotidiano e descrever no meu diário mais uma noite irritante com o medo da insónia que a dinamiza… e esperar a passagem do dia… para dormir no sofá e depois à noite voltar para a minha cama com esse típico medo da insónia numa casa que repousa com calmantes…santa paciência!


Professor Doutor Raul Iturra, Catedrático Emérito do ISCTE-IUL

Texto Editado por Claire Smith, Antropóloga


sábado, 12 de outubro de 2024

Coisas que se vêm da nossa janela

 por Luís Santos


Filho de muito boa gente, mas muito pouco dados às letras, ainda assim, puseram-me na escola paga logo aos 3 anos. Desconheço as razões porque o fizeram, mas fiquei de tal forma com o destino marcado que nunca mais de lá saí. No meio de inúmeras dificuldades e obstáculos, lá fui fazendo uma vida de Professor, faz muitos anos.

Quando ingressei na Universidade, tive como Professor um chileno, que fugia do golpe fascista de Pinochet, e acabou a coordenar licenciatura que eu fiz, enquanto já ia dando umas aulas que me garantia a almejada autonomia financeira.

Esse Professor, de seu nome Raul Angel Iturra, que veio do lugar chileno de Vale Paraíso, se bem me lembro, com doutoramento pelo meio feito em Cambridge, acabou também por presidir à Associação Portuguesa de Antropologia que, por seu convite, acabei por integrar durante dois biénios. Em resumo, aqui ficaram dez anos de vida que nos juntaram, o Doutor que veio do Chile e o filho de gente nada ligada à escola que, por ironia do destino, haveria de cair nas letras que tão pouco lhe diziam.

Hoje, o distinto Doutor que, entre-tanto, se tornou Professor catedrático, agora jubilado, depois de muitos anos de intervalo, tornou-se nosso colaborador neste pasquim digital que vamos mantendo por aqui, já faz quase década e meia. Assim, uma vez por mês, e de há meia dúzia de meses para cá, vai assinando uma rubrica que tem como título "Do Diário de Vida de Raul Iturra. A vida no Lar." E escreve o Professor de forma tão distinta, e tão esclarecida, pela farta experiência nas letras que a vida lhe deu, que nós vos recomendamos vivamente a ler.

 

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Quando interrogados sobre a última das verdades, os videntes védicos resumiam dizendo: “Eu sou o Universo”.

Ora, “ser tudo”, na nossa cultura é uma afirmação que não deixa de soar estranho, e a propósito até se conta a história de uma dama inglesa que ao visitar umas grutas na Índia onde yogis faziam as suas meditações, foi amavelmente recebida por um deles e, no fim da visita, ela disse-lhe:

- Talvez o senhor não costume sair daqui, mas eu gostaria muito de lhe mostrar Londres.

- Minha senhora – respondeu-lhe calmamente o yogui -, eu sou Londres.

 

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Não é fácil o Amor.

Faz já algum tempo, um PÁSSARO AZUL como numa aparição, pousou mesmo à nossa frente. Quando o passámos para poema, o extraordinário pintor, amigo, António Tapadinhas dedicou-lhe uma tela. Chamou-lhe "o pintor e o pássaro azul".

Janita Salomé, canta-autor que tem alguns irmãos ali para o Redondo, Alentejo, também deu nome de tal pássaro ao seu último album, basta ir no "you tube" e ouvir, por exemplo, "Tardes de Casablanca" ou "Não é Fácil o Amor", entre outras.

Pois bem, a belíssima pintura de que falamos é a que se vê. Deu capa a um livro de contos que chamámos "O Espírito dos Pássaros", tal como o dito cujo deu título a um dos contos que dele fazem parte.

O livrinho foi editado pela Bubok, uma editora espanhola de vendas on-line, mas o número de livros em papel impresso foi muito reduzido. Como também o editámos em formato digital, acessível a todos, aqui deixamos o endereço para alguém que tenha curiosidade em visitá-lo. Basta ir no seguinte endereço: http://oespiritodospassaros.blogspot.com

Tem fotografias muito bonitas e podem simplesmente correr o texto que não se vão arrepender. Trata-se de uma ave de BOA SORTE. BOAS VIAGENS.

 


quinta-feira, 26 de setembro de 2024

Do Diário de Vida de Raul Iturra

 

Os velhos somos também pessoas que amamos.

A afetividade no lar. 


Lembras-te, Querido Diário, que temos falado de perda de identidade no lar. Parece-me que a pior das perdas é a falta de amar e sermos amados. Somos criados na vida social como construtores da identidade amorosa, como criadores de afetividade. Começamos por amar os nossos pais, continuamos pela empatia com os nossos irmãos, parentes e amigos. Amamos e gostamos de ser amados pela pessoa que nos pode acompanhar durante a nossa vida; se temos filhos tomamos conta deles e se é uma relação não reprodutiva ou adoptamos ou amamos os dos amigos. Não é preciso consultar Freud ou seu discípulo Donald Winnicott para entender que querer e desejar são actividades muito próximas: quando queremos alguém, normalmente queremos tocar essa pessoa, não apenas dar a mão ou um golpe no ombro ou um braço pelo pescoço, também queremos abraçar estreitamente e beijar. O costume ocidental é homem beijar mulheres e vice-versa, crianças beijar adultos, adultos acarinhar pequenos.


Estes factos não existem nos lares onde tenho vivido  exceto raras ocasiões de intimidade entre homem e mulher. Não há solução para a falta de abraço estreito, menos ainda o de beijar exceto, como eu aprendi a fazer com adultos com doenças senis ou degenerativas que precisam de contacto físico afectivo: dar a mão, trocar palavras, acariciar. É uma forte dor não ter ninguém para abraçar. Donald Winnicott descobriu o que tenho analisado num outro livro meu e diz que a partir do quarto mês de gestação a criança em formação desenvolve afetividade erótica e normalmente quando um pénis erecto entra numa vagina com um bebé em formação, este feto mexe e tenta expelir o intruso que penetra a essa futura mãe.

 

O amor e o desejo existem no lar, especialmente  entre adultos com camaradagem prolongada. Tive no meu quarto um colega que passado um ano de conversas sobre a sua família filhos e mulher sobre qual ele sempre falava, perguntou-me um dia: “Ó Doutor acha que faz mal que eu bata uma punheta”, “ó meu amigo só não faz mal como é o hábito de pessoas sós e desde criança, bata que é bom para si”. Prudentemente eu me retirava do quarto quando ele parecia excitado e respeitei a única intimidade possível para um velho num lar. Única possibilidade erótica para idosos, cabelos brancos, rugas, com falta de excitação exceto se é estimulado. As pessoas mais novas procuram seres da sua geração que permitam um desejo mais agradável. Nós os velhos também queremos ter interacção sexual mas dificilmente se torna possível com pessoas mais novas que não se sentem atraídos por nós. No lar a vigilância é tão estreita que ainda que haja atração esta não se pode materializar.


Eu tive a tentativa de sedução dentro do lar por uma amiga de longa data que me contava os sonhos eróticos que ela tinha comigo. “Ó Sr. Doutor, ontem à noite sonhei que o senhor me penetrava e eu sentia-me feliz, tive que brincar com a minha “patareca” para me satisfazer. Eu replicava “fico feliz de saber que a satisfiz, ainda que na sua fantasia”, “Sr Doutor não queria meter-se na cama comigo?”, “Ó minha senhora era uma grande honra mas cá está proibido” “quem, quem proibiu…, fazer amor não é pecado”, “minha senhora é pecado para os que mandam no lar e não permitam que nós dois possamos brincar”. Contudo não havia dia que eu não fosse de manhã  visitar a senhora desde a porta do seu quarto, não havia noite que eu antes de deitar não fosse ao quarto dela para lhe levar bolachas que ela esperava com prazer e fruição. Não era só a bolacha que ela esperava, era também a carícia na sua mão e a minha voz que lhe pedia que tivesse doces sonhos e que não falasse com as suas colegas de quarto para ela dormir e elas descansarem bem. Ao longo de 9 anos habituamo-nos à simpatia de falarmos, comer na mesma mesa, mudar o canal de televisão para que possa ver o que ela queria até que esta minha amiga foi removida da minha mesa e lhe deram o seu lugar sentada noutra sala. A nossa amizade foi interrompida pela autoridade do lar, não apenas não podíamos materializar nenhum desejo bem como a nossa troca de ideias e conversas foi acabada. Não é apenas o desejo proíbido bem como o cultivo da amizade pura e casta que  também foi acabada. Só foi possível retomar nossa conversa quando ela começou a perder a sua memória e o contacto com a vida real e voltaram a dar-lhe o seu lugar no sofá junto ao meu no corredor da entrada, não pela nossa amizade mas bem por conveniência do lar. Foi assim que, sentada ao pé de mim, eu ouvia as suas histórias, tomava conta dela, chamando um funcionário quando os chichis e os cocós saiam da fralda para o chão e pedia a mudança de fraldas quando já estava toda a roupa empapada. Foi uma amizade aceite porque passei a ser útil nesta casa de repouso para uma utente que já não era capaz de controlar os seus esfíncteres. A  utilidade é o que manda nas relações do lar.


Não apenas eu tive este contacto simpático na nossa vida em comum, também havia um outro colega de quarto praticamente cego que namorava uma senhora utente da sua geração e que tinham de fechar a porta do quarto para eles se acariciarem despidos e eu tinha que avisá-los atempadamente quando iam aparecer funcionários que proibiam o amor entre velhos. Nunca me esqueço dessa primeira vez que entrei no nosso quarto e ele estava sem calças nem fraldas e ela despida sem camisola e sem soutien. Esta primeira vez ela gritou e como ainda era mulher ágil, saltou da cama e correu de volta ao seu quarto aos gritos “meu Deus, meu Deus, que horror, desculpa…” foi a partir desse dia que eu falei com o meu colega e pedi-lhe para ter mais cuidado na sua sedução. Ele ria e disse-me que ele era o “garanhão do lar”, que estava aí para amar e fornicar com essa e outra velha que gostava dele e o perseguia usando as suas mão para o esfregar entre as pernas e ele feliz, satisfeito com a sua vida erótica do “velho mais ativo sexualmente” do lar.


Havia formas simpáticas de usar a líbido proibida, especialmente dar-se as mãos, trocar beijos, ouvir declarações de amor. Não esqueço esse senhor que estava sempre a solicitar os amores de uma idosa que ele queria, mas era-lhe proibido declarar-se abertamente. A afetividade e o desejo apareciam de outras formas como o de essa senhora que dançava comigo quando havia festas e saídas para o jardim da casa mas que acabaram quando ficou confinada numa cadeira de rodas por se ter acidentado e partido o osso da perna no seu eterno andar pelos corredores do lar. A partir daí a afetividade passou a manifestar-se nas sessão de jogo do bingo,  a beijar-me e dar-me a mão quando eu ia a falar com ela na sua cadeira e dizia-me “Ó Sr. Presidente Américo Tomás dê trabalho ao meu filho que não consegue juntar dinheiro para mim”, “Senhor tenente ande cá dê-me a mão e acaricia-me as bochechas e beija-me”. O que eu fazia para a sua alegria e satisfação. Ou aquele senhor habituado a estar com a mãe e a irmã em casa deles mas que no lar não tinha a quem acarinhar e chamava-me aos gritos, agarrava as minhas mãos mas beijava e punha as suas bochechas a jeito para eu as beijar e, às vezes, beijava-me nos lábios, ele feliz e eu complacentemente  entendi a sua necessidade de afecto. Tanto assim que sem me chamar eu ia de modo próprio à sua cadeira de rodas acariciava as suas mãos e beijava-o com simpatia. Às vezes ia ao seu quarto onde era levado por causa dos seus gritos, o acariciava, o acalmava e ele parava de gritar.


A afetividade no lar é muito controlada. A maior parte dos idosos raramente recebem visitas porque os seus parentes estão a trabalhar. Quando os parentes vão visitá-los, falam com eles, levam-lhes lanches ou bolachas ou frutas e o idoso ou idosa visitado passam a ter a sua afetividade satisfeita por um tempo. Quando os parentes vão embora procuram uma pessoa amiga entre os colegas utentes para, pelo menos, conversar. A afetividade como eu dizia está reduzida ao mínimo ou a carícias que alguns funcionários, especialmente os estrangeiros, dispensem aos utentes. Nunca esqueço este primeiro ano de atividade de um funcionário que mal entrava de turno comprimentava com beijo nas bochechas todos os idosos sentados na sala de convívio. Ou as funcionárias não portuguesas que atribuíam aos idosos  diminutivos ou alcunhas, criadas por elas.  Mas também há as senhoras funcionárias que abraçam e beijam os utentes com senilidade menos avançada, com abraços estreitos, apertados e excitantes. Todos eles ficavam felizes de serem assim amados por pessoas que exercem autoridade sobre o comportamento dentro do lar.


O que mais me admira é a suavidade e a paciência com que funcionários muito crentes na divindade sorriem, acariciam, abraçam, contam histórias a pessoas que de outra maneira não teriam ninguém em quem se apoiar para amar e serem amados. A afetividade é procurada por quem viveu uma vida inteira a procriar, educar e produzir. A afetividade é um bem precioso que quando estamos mais combalidos e solitários e sem ninguém para tocar, procuramos a simpatia de quem, mas nem sempre, nos pode amar. Uma das formas que alguns dos utentes têm de exprimir a sua emotividade é gritar, vilipendiar, chamar nomes, inventar histórias que vários dos outros utentes rejeitam ofendidos. Já tinha referido no capítulo anterior a senhora de 94 anos que grita “puta, bêbada, caralho” que acorda nos outros, especialmente nas suas colegas de mesa uma raiva que se manifesta em gritos de zangas, às vezes em muros com que as ofendidas tentam defender o seu bom nome que tanto estimam.


Não consigo esquecer um funcionário, que deixou de trabalhar no lar, que vivia com o seu companheiro, sargento do exército, na casa maternal e que por hábito dava nomes simpáticos a toda a população idosa do lar. Eu fui batizado por ele de “doutor charmoso”, especialmente quando eu vestia calças brancas e camisola vermelha, ele vinha me abraçar estreitamente e me beijava; fiquei triste quando ele se foi embora para um sítio melhor. Ele normalmente contava-me as suas histórias de amor e de como mudava rapidamente de namorado porque nenhum deles prestava para ele; eu aconselhava-lhe e trocava ideias sobre o namoro, tal como eu falava com outros funcionários de suas famílias o que eles agradeciam; é mais uma forma de expressão da solidão afectiva que todos temos de uma casa tão fora da realidade social. A afetividade é tão deturpada que eu costumava sonhar que fazia amor com uma funcionária muito bonita mas de um temperamento espantosamente desagradável, distante e aos gritos comigo. Não permitia que eu saísse do meu quarto antes das cinco da manhã, a minha hora habitual que tive que adotar no lar. Não me dava o chá com açúcar medicamente prescrito para o meu acordar. Ela evitava comprimentar-me no dia dia e no entanto eu falava-lhe de forma simpática e nos meus sonhos a desejava. Normalmente ela não sabia do meu sonho como dos que eu contava a uma outra funcionária com a qual éramos amigos e riamos, estrepitosamente. Era assim como manifestava o meu carinho aos funcionários estrangeiros que também me iam contando as suas vidas e as suas solidões por estarem longe dos seus países. Eram tão exilados como eu, eu político eles de economia política. As nossas conversas pessoais ficam comigo por serem complexas e delicadas.

 

Os velhos somos pessoas. Os velhos amamos. Os velhos desejamos. Os velhos queremos fazer amor. Existe a pacata ideia de que passado setenta anos, nós, idosos, temos dado cabo do nosso erotismo. Com o que eu tenho referido, posso provar como é uma falácia; que é impossível satisfazer o desejo como o imaginamos, lá isso é verdade. Sim, como disse antes os velhos amamos e desejamos, mas o nosso desejo é abafado pelas leis da ética das religiões que impede uma relação entre duas pessoas que não estão casadas de forma heterosexual. É abafada pela crença nessa ética pela autoridade do lar e pela moral dos funcionários que nunca sei se é respeitada também na sua vida quotidiana. Os funcionários nos vêm com o olhar desta ética que exige que nós tenhamos um comportamento  de respeito dos costumes que não acredita na sinceridade do amor entre velhos para exprimirem a sua afetividade. 



Professor Doutor Raul Iturra, Catedrático Emérito do ISCTE-IUL

Texto Editado por Claire Smith, Antropóloga

Barra Mansa, Setembro de 2024 


domingo, 8 de setembro de 2024

Filosofias do Oriente




 Breves notas sobre Filosofia Vedanta, Hinduísmo, Budismo e Taoísmo

Quando do curso de doutoramento na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, a parte curricular implicava a escolha de alguns seminários. Um dos escolhidos, Filosofia das Religiões, comparava espiritualidades ocidentais e orientais. Aqui ficam algumas sínteses dos estudos que se desenvolveram.

1. Vedas

Entre as escrituras sagradas hindus, contam-se os "hinos védicos", pensamentos sagrados da civilização védica que antecedem o hinduísmo. A recitação dos hinos sagrados dos vedas sempre foi mantida até hoje, desde há milhares de anos. 

A civilização védica desenvolveu-se até ao século VI (a.C.), período em que a sua cosmogonia começou a transformar-se nas formas clássicas do hinduísmo. 

Segundo o conhecimento védico, a alma individual, idêntica ao Absoluto, nunca nasce e nunca morre. Nunca nascida e eterna, fora do tempo, ela não morre quando morre o corpo.

2. Hinduísmo 

O Mahãbãrata é um dos livros que faz parte das escrituras sagradas hindus. Um dos seus capítulos é o célebre Bhagavad-Gita, ou a “A Canção de Deus”. 

O grande protagonista do capítulo que fala na primeira pessoa, Krishna, o avatar de Vishnu, ou seja, a própria divindade, dialoga com Arjuna, seu discípulo guerreiro, em pleno campo de batalha. Arjuna representa o papel de uma alma confusa sobre o seu dever e recebe iluminação diretamente do seu divino mestre que o instrói na arte da autorrealização.

A essência de Krishna é o universo inteiro, a totalidade. Tudo é sagrado. Tudo é uno. O uno e o múltiplo são inseparáveis. 

É o texto inspirador de Ghandi. Einstein dizia que quando o lia e pensava nas leis do universo, tudo o resto se tornava vulgar. 

3. Budismo 

Depois de atingir o despertar Siddartha Gautama, o Buda, sentiu o apelo de transmitir aos outros a sua sabedoria. A palavra Buda, mais do que uma pessoa, designa um estado de consciência que permite apreender a verdadeira realidade das coisas.

A filosofia budista parte da definição das "4 nobres verdades": a constatação do sofrimento; o sofrimento provém de uma mente limitada; é possível cessar o sofrimento; há um caminho para cessar o sofrimento. 

Ou seja, as causas do sofrimento são internas e é possível removê-las. O caminho que se propõe é um método que ajuda na libertação da mente, uma técnica meditativa para concentração do espírito e da mente, de forma a um atingir um determinado estado de repouso e, consequentemente, de consciência. 

Algum tipo de meditação sempre surge associada às diferentes filosofias antigas da Índia e é uma prática intrínseca do Yoga.

31. Reencarnação 

É um dos ensinamentos fundamentais do budismo. O espírito humano pode elevar-se até a um “espírito subtil” ou “consciência subtil”. Esta consciência existe independente do corpo e do cérebro. É o espírito subtil que reencarna. 

Seguindo o Dalai Lama, a reencarnação está ligada a um certo nível da vida do espírito. Se este espírito for desenvolvido pode escolher o seu próprio destino. É então um passo para a libertação, para uma possível melhora. Sem esta escolha o renascimento é uma queda no samsara, sucessão de vidas que ocorre sem parar. Enquanto a existência estiver condicionada, o ciclo renascimento/morte perdurará.

3.2 Transferência da Consciência e Libertação pela Escuta 

Quando os sinais ocorrem indicando que a morte se aproxima devemos prepararmo-nos para a transferência da consciência e refletirmos sobre os ensinamentos da Libertação pela Escuta nos Estados Intermediários. 

Quanto à transferência da consciência há um exercício que deve ser treinado: Devemos tapar todos os orifícios começando pelo reto, da procriação, umbigo, boca, narinas, olhos e ouvidos. No cimo da cabeça devemos visualizar a fontanela, depois visualizar também o canal central, no meio do corpo, direito e ereto – na sua extremidade inferior, abaixo do umbigo devemos visualizar um ponto seminal branco e brilhante, o qual constitui a essência da consciência desperta, pulsando continuamente e à beira de ascender. A força vital vai movê-lo ascensionalmente, até ao umbigo, depois coração, depois garganta, depois o espaço entre as sobrancelhas e, por fim, vai até à fontanela, após o que devemos visualizar que ele gira de novo para baixo e vem repousar abaixo do umbigo como uma difusão branca. Há que permanecer neste estado durante algum tempo. 

Diz-se que obteremos a libertação se a consciência sair pela fontanela da coroa. Os lugares mais importantes do corpo para uma transferência da consciência depois da fontanela são os olhos e a narina esquerda. 

Quanto à Grande Libertação pela Escuta, quando uma pessoa se aproxima da morte é habitual procurar-se um lama qualificado que deve iniciar as recitações de introdução ao estado intermediário.

Após a respiração haver cessado, a energia vital é absorvida no canal da sabedoria primordial e a consciência emerge como uma radiância interior. O defunto pode ouvir tudo o que se passa à sua volta, mas os outros não o podem ver. Assim, ele pode ir-se embora. Neste momento surgem três fenómenos: sons, luzes e raios de luz, o que pode provocar medo ou pasmo. Assim, durante este período deve ser lida a Grande Introdução ao Estado Intermediário da Realidade. 

Terminamos com um pequeno excerto da leitura a ser realizada:

“Ó Filho da Natureza de Buda, quando a tua mente e corpo se separarem, surgirão as puras (e luminosas) aparições da própria realidade: subtis e claras, radiantes e deslumbrantes, naturalmente brilhantes e terríveis, tremeluzindo como uma miragem numa planície no Verão. Não as temas! Não fiques horrorizado! Não estejas aterrado! Elas são as luminosidades naturais da tua própria realidade verdadeira. Reconhece-as.” O corpo agora que tens chama-se um “corpo mental”. Tu, agora, estás para além da morte. Isto é o estado intermediário. Se não reconheceres os sons, as luzes e os raios de luz, continuarás a vaguear dentro dos ciclos da existência. 

 4. Taoísmo 

Lao-Tsé (604-517 a.C.) é o grande precursor da tradição filosófica chinesa conhecida por Taoísmo. O principal livro que a suporta é o “Tao Te King”, o Livro da Via e da Virtude. Tao significa (Vida), Te (Energia), King (Virtude). 

Trata-se de um texto com grande economia de palavras, onde com pouco se diz muito, onde se crê que o dito e o não dito são absolutamente inseparáveis, onde “o silêncio é um amigo que nunca trai”. 

Porém, o Tao não pode ser explicado nem por palavras, nem pelo silêncio. Nele tudo flui, tudo é governado sem desígnio. Tentarmos encontrar o seu sentido é perder. Tudo já é. A rosa é sem porquê… nascida no tempo certo, floresce porque floresce.

É-nos dado como a eficácia da naturalidade. Tudo acontece quando tem de acontecer. Só age bem quem não está interessado em agir.

À partida, não se precisa acrescentar nada aquilo que já somos. O sábio é como a água, corre sempre a via que tem de correr. Ele não se preocupa consigo e, todavia, é o que ocupa o lugar mais proeminente. 

O céu trata tudo e todos de uma forma indiferente, mas benéfica. A ideia essencial do Tao é que o mundo se produz por um “não fazendo”, onde se deve agir de forma espontânea, deixando a mente à vontade.


sexta-feira, 30 de agosto de 2024

Do Diário de Vida de Raul Iturra

 

A PERDA DE IDENTIDADE NO LAR


Nem tudo o que acontece no lar, querido diário, é resultado do eterno debate entre funcionários e utentes ao qual me tenho referido nas páginas anteriores. Entramos no lar já velhos, cansados, com uma história de vida marcada pelas nossas relações sociais construídas na interação com os outros. Somos pessoas resultado da nossa vida social, vivemos em nichos definidos pela dita interacção. Nascemos, somos filhos, um primeiro nicho social; se temos pila entramos na categoria de homem, se não, mulher. Desenvolvemos o nosso comportamento imitando os adultos que nos criam, que nos rodeiam, que acompanham o nosso crescimento, sejam eles familiares ou instituições que tomam conta de crianças. Em breve somos estudantes, somos enviados para instituições chamadas escolas para sermos introduzidos à cultura, à mente cultural do estado em que vivemos: somos preparados para sermos cidadãos do país em que nascemos e incutem-nos sabedoria de letras, sabedoria de história, sabedoria sobre o universo em que moramos; incutem-nos também a crença numa divindade e um comportamento religioso que define como agirmos com outros seres humanos; incutem-no sermos pessoas.


Os anos passam, cada época da nossa vida é diferente da etapa anterior: somos aprendizes, somos estudantes, chegamos à idade de amar e sermos amados, à idade de trabalhar e colaborar com a economia social, passamos a ser profissionais. Uma profissão seja letras, ciência ou trabalho direto, que nos introduz à economia, que nos dá salário, casa, emprego. Normalmente encontramos o nosso par, juntamo-nos, acasalamos, passamos ao estatuto de pais, criamos, educamos, orientamos. A nossa atividade muda de etapa em etapa e vamos ganhando uma identidade pela qual somos conhecidos no país de que somos parte. Somos cidadãos com responsabilidade ética, estética e afetiva. É principalmente o nosso papel de pais que define o nosso comportamento como um elo importante do nosso objectivo de vida: não apenas reproduzimos seres humanos, também reproduzimos saber para introduzir os seres humanos que criamos na vida social, como nós também fomos igualmente introduzidos. Sermos pais é o mais importante da nossa vida de interação. O nosso objetivo não é apenas educar, é também amar e ser amado pela geração de pessoas que temos estado a criar. Crescemos, envelhecemos, cansamo-nos. A geração que criamos devia tomar conta de nós e velar por um fim adequado de vida, calmo, tranquilo e economicamente funcional. No entanto, a vida social moderna tem organizado uma interação que retira os mais velhos da responsabilidade social directa e entrega-os a lares que os alimentam, os cuidam, os vestem, definem os seus parâmetros quotidianos.


A nossa identidade muda de sermos adultos responsáveis para sermos outra vez crianças que obedecem a um plano definido de comportamento individual. A nossa vida social muda, deixamos de ser entidades, passamos a sermos indivíduos obedientes.


Já não vou referir o que acontece com os outros colegas utentes do lar em que vivo como tenho feito nos outros capítulos do meu diário mas vou  passar a vasculhar apenas na minha própria vida. Um dia não consegui andar, colocaram nas minhas mãos um andarilho para me apoiar e continuar meu quotidiano como sempre tinha sido. Esta etapa não durou muito tempo: caía na rua, enganava-me nas compras, a minha gestão económica era-me difícil com o pouco dinheiro que me era pago cada mês pela minha reforma, pela mudança das formas do acontecer no quotidiano; entrou na nossa vida pessoal  a internet, os bancos passaram a serem geridos pelo computador, as compras eram feitas em linha, enfim um descalabro que me acontecia após 70 anos de uma construção histórica social liderada por mim próprio e a partir do meu entendimento. As formas de vida mudaram de tal maneira que era necessário uma nova educação para viver de forma autónoma como o tinha feito antes. Confiei que a minha descendência ajudar-me-ia, confiei que a minha descendência explicar-me-ia as novas formas de ação em função da minha nova etapa de vida. Não tive esta sorte. A minha descendência resolveu fechar-me num lar e referir que eu não entendia a realidade, que eu estava doente e não valia a pena explicar-me a nova vida social, e isolar-me do mundo que eu tinha ajudado a construir foi a solução encontrada. Eu próprio acreditei que era incapaz de perceber o mundo atual causado por doença progressiva, seria parkinson e demência vascular tal como me era explicado que doravante era a minha realidade. Felizmente uma médica do lar disse-me: Doutor Raul vamos parar com estas queixas e doenças, vamos diminuir a medicação que toma ao pequeno almoço, almoço, e jantar e a pouco e pouco vai se confrontar com a vida como ela é e não como a sua filha mais velha, a quem foi confiada a sua tutoria, lhe quer fabricar. Perguntei-lhe como iria eu fazer? Com paciência, com calma e boa disposição, respondeu-me a médica, e  quando precisar venha falar comigo para contar-me o que pensa, o que sonha e o que sente.

 

A partir deste momento foi uma progressiva viragem.

 

Assim no lar eu tinha todo o tempo para mim, estava isolado, não tinha passeios, não tinha visita dos meus amigos e colegas excepto o convívio com duas antigas estudantes de doutoramento que não pararam de me acompanhar, alguns passeios com uma antiga amiga de longa data e pelo convívio da minha filha mais nova que me visitava desde do estrangeiro um par de vezes ao ano. Visitas escassas devido à distância do lar do meu antigo local de vida e dominadas pela falta de partilha da vida social ativa.


Como disse antes tinha todo o tempo para mim e pensando como redefinir um convívio com os meus colegas de lar resolvi apoiar quem precisasse cada vez que fosse necessário, andar, ajudar os meus colegas a jogar ao bingo com a animadora cultural, ler livros sem fim o dia todo, escrever o meu diário de vida na sofá que uso, inventar conversas com funcionários amigos que me relatavam o que acontecia no mundo exterior. Raramente ouvia notícias, normalmente nunca aceitei sentar-me a ver televisão. Conseguir ler e escrever foi o meu objectivo de vida. Era difícil convencer as diversas diretoras do lar de como eu queria organizar a minha vida. Fiz-me amigo profundo de uma senhora com quem almoçava, conversava e ria. Esta senhora foi retirada da minha mesa e fui colocado com outras pessoas sendo assim o meu convívio organizado pela direcção do lar, por ordem de quem neste tempo, conforme a lei, era a minha tutora. Tive que lutar e com ajuda de poucos amigos e da minha filha mais nova, mandei o meu grito de ipiranga  recorremos ao tribunal de família e tempo mais tarde fui libertado da minha submissão a uma tutoria que me ia matando. A minha identidade foi recuperada pelo grande esforço e disciplina de vida que organizei no meu dia a dia: acordar às 5 da manhã, tomar banho, escrever e viver o dia entre comidas, conversas, reflexões e música. Tive sorte, e a pouco e pouco tornei a ser o Raul Iturra que eu tinha sido. Comecei a interagir em mensagens e telefonemas com algumas pessoas que quiseram responder às minhas mensagens e chamadas.

 

No lar é mais fácil perder identidade e submeter-se ao que define a direção por ordem da família. Falei com o proprietário do lar e pedi para ser tratado como um velho que não tinha para onde ir e aí morava por falta de acolhimento noutro sítio. O lar submete. O lar manda. O lar ouve a família e não o utente. O utente normalmente tem pouco para dizer e passa a ser como criança como falei nos capítulos anteriores. No meu caso infelizmente entendia o que acontecia e bati-me contra a disciplina e organização do meu tempo por outros. Aceitei horário de comida do lar, mas o meu tempo quotidiano foi por mim organizado: assim me entretive e os nove anos passaram sem eu reparar.

Somos pessoas. Somos adultos, somos pais, somos cidadãos. Tudo isso parece acabar quando se quer manter uma  disciplina no seio de um grupo de adultos que passa o dia a conversar e ver televisão, eventualmente a se entreter com as atividades de animação cultural. Há eleições nacionais, ninguém sabe e ninguém vota, ninguém vai às urnas. Apenas dois de nós temos seguido à risca a planificação política do país. Ninguém sabe o que se passa nem qual será o futuro. O nosso país prescinde das pessoas que moram em lares apenas orientados pelas suas famílias nas quais cada utente confia com profundidade e nos quais tem esperança de os ver outra vez numa próxima visita.


O lar faz perder a identidade de ser pessoa que a sociedade nos incute antes de sermos velhos entrando assim no fim da sua vida sem que saibamos para onde vamos, nem com quem, nem como. Eu gritei, pedi acesso ao tribunal de família e libertei-me do autoritarismo com que a lei manda tratar os velhos do país. Tentei recuperar a minha identidade mas choro pela solidão dos meus colegas que ainda estão fechados no lar sem saber para onde vão até um dia dele sair no seu próprio funeral.



Professor Doutor Raul Iturra, Catedrático Emérito do ISCTE-IUL

Texto Editado por Claire Smith, Antropóloga

Barra Mansa, Agosto de 2024


sábado, 17 de agosto de 2024

Crónicas de Paulo Landeck


EM ÓRBITA

Desejou ter barba de raspar fósforos, e guardar no bolso universal uma pedra de isqueiro para desconsertar improvisado céu em noite escura, quando fugisse novamente de casa para viver nas dunas à beira mar.

Nessa altura, em que tudo se podia e quase nada era ainda permitido pelos pais, - nem mesmo fugir de casa, - sonhou desentortar um dos olhos com o garfo e cuspi-lo até à lua! 

Com um pouco de sorte, deixaria a sua marca em solo lunar. 

Mas...tinha uma dúvida, só uma dúvida: 

não saberia como piscar o olho mais tarde, ciente de que perderia o globo e a dúvida surgiria.

Tinha só esse problema com o olho, o seu olho, uma dúvida, sem o resto do corpo em redor para o chatear...imaginem se fossem duas, problemas a dobrar!

Lá bem ao alto, a singular dúvida persistiria, na direção do berlinde terrestre que reflectia vivo azul e deflectia algo que talvez nem sequer pudesse um dia voltar a vislumbrar; por seu deleite, e por todos os oceanos que o seu olho jamais derramaria, seguro no garfo ou longe de si, admitiu o fracasso da ideia.

Procurou renovar sofrimentos, queria agora polir o fosco iluminado pelo farol. 

Se esquerdo ou direito, não sabia precisar...e ao centro, sobejava o nariz.  

Das três, uma certa, libertou-se da armação devido à condicionada ilusão.

Tanto sonhou e sonhou para não deixar de quebrar óculos...e assim, possíveis fragmentos de janelas e mais janelas perdidas no espaço!

Ainda como consequência, o lume jamais se apagou das páginas bruxuleantes dos muitos livros lidos fora de horas. - Palavra de narrador. - Estava mais do que certo, destinado para toda a vida a sonhar acordado. - E talvez depois da morte fosse uma espécie de sonho ao contrário, quem sabe, livre de pesadelos. Não sei...sonhos e pesadelos sempre andaram de mão dada, pelo menos, na vida real de quem sonha acordado. - 

De nada lhe valeria fugir de casa...ainda que encontrasse seguramente conforto nas dunas de verão à beira-mar.

Naquele tempo, dificilmente existiria céu igual. 

Despertou. 

Pensou então em aprimorar nova técnica de olho posto na ambição. Quem sabe o que dali resultaria, se resolvesse explorar uma outra órbita à procura de familiar globo ocular, desta feita, de faca e garfo. - Nada como a boa educação, nunca sabemos quem pode estar à espreita numa qualquer janela indiscreta. -

Deu por si abraçado a um enorme sobreiro despido, inequivocamente envergonhado. 

Seria por causa do coração da menina gravado à navalhada pelo futuro marinheiro!? 

Faltava-lhe o garfo, afinal. 

Não sabia ainda, se o coração dela palpitaria sequer por tão notável entrega e delicadeza. 

Desconhecidas as contas, não passava de um sonhador preso no espaço, ansioso por regressar à Terra, tremendamente nervoso por avaliar todas as possibilidades de regresso. - 

Tinha visto uma vez em vários documentários, como as impressionantes expedições às florestas virginais, podiam bem começar nos despenteados vasos das varandas, algures pela vizinhança. 

Avencas e fetos até o ajudavam a pensar, mas ali, na zona nascente da serra, só tinha um enorme sobreiro corado, e uma navalha de algibeira para cortar os cotos no lugar das côdeas...-

sem um pé-terra sequer para afogar ansiedade em sumo; e quando assim é, o melhor é aguardar que chova. -

Procurou então novos sinais, de pés bem assentes na terra...para dar com marca pintada cor da neve. Quedou-se incrédulo: próximo encontro marcado com a desgraçada que lhe dera a volta ao miolo, só dali a nove anos!

Como pôde ser tão cruel...não podia ser...

Tinha quase a certeza de estar bem perto das nove da noite, por issso, resolveu esperar mais um pouco.

quinta-feira, 15 de agosto de 2024

TOMAR

 por Luís Santos

CRÓNICAS DE VIAGEM


Convento de Cristo


Uma escapadinha até TOMAR, com paragem na Golegã para descansar.

Em Tomar, coube-nos um quarto com nome inscrito em letras grandes, Ordem do Templo, mais figura impressa na parede do chão até ao teto de Hugo de Payns, um dos 8 fundadores dos “Cavaleiros do Templo ou Pobres Cavaleiros de Cristo e do Templo de Salomão”, como inicialmente se chamaram.

Depois desses primeiros tempos passou a Ordem do Templo e, mais tarde, Ordem de Cristo, com toda a história exposta, bem resumida, na sala de refeições.

Tomar respira Templários por todos os poros, e lá está a demonstrá-lo Gualdim Pais em pedestal, na praça central da cidade. A sua transformação histórica na Ordem de Cristo, D. Dinis, e mais à frente com destaque para administração do Infante D. Henrique, que outra vez foi ao mundo, são flagrantes episódios para uma breve crónica boa de se desenvolver.

Amiúde, pelas ruas, a referência à famosa Festa dos Tabuleiros, que saem à rua de 4 em 4 anos, algures encimados por enorme, significativa, pomba branca.

Por fim, lá no alto, para mais ampliar a consciência, paredes meias com o Castelo, o Convento de Cristo, geometria sagrada, cujas palavras são sempre poucas para o descrever. O melhor é ir ver. Mesmo!

E como foi bom de palmilhar, passo a passo, as ruas de Tomar.


sábado, 27 de julho de 2024

Do Diário de Vida de Raul Iturra

 

Os velhos, somos atropelados…


Não é uma afirmação gratuita, Querido Diário, nasce da minha experiência com diversas pessoas da vida social. Estava eu sentado no meu sofá em frente da porta do refeitório, a meu lado uma comprida fila de velhos em cadeiras de rodas estava à espera de entrar no refeitório para lanchar. Todos já com babete imenso que cobre peito e colo, para não sujar as roupas e colocados a correr pelos funcionários que organizavam a entrada ao refeitório, todos preparados para comer! 

De repente abre-se a porta da sala de jantar e aparece uma mulher com aspecto descuidado, desgrenhada como é o seu cabelo. É uma funcionária nova que diz aos gritos: 

  • “Então! está tudo bem, ainda todos vivos!, ou já há vários mortos como deve ser com os velhos”.

 As pessoas protestaram: 

  • “Eu não quero morrer, sou ainda uma pessoa nova, tenho 25 anos e a minha mãe deixou-me cá enquanto foi às compras”, diz a minha amiga de 85 anos, que antes andava muito e agora não consegue abandonar a sua cadeira de rodas. Mais 3 ou 4 pessoas protestam e dizem : 

- “Eu não quero morrer, eu quero comer!”, enquanto a desalinhada funcionária ri e assobia alto e diz “Morrer é uma lei da vida e vocês estão todos perto da hora de desaparecer”. 

Eu furioso pela atitude protesto e peço à funcionária para calar-se e ser mais discreta com as pessoas que ela estava a espantar; esse espanto usado para subordinar os velhotes às suas ordens. Felizmente a porta do refeitório abriu e a fila de adultos maiores concentrou-se no ritual de entrada e serem levados aos seus sítios nas mesas do dito refeitório: O desejo de comer era tão forte que faz esquecer a ”simpática” ameaça da funcionária que não parava de assobiar. 

As pessoas querem viver, as pessoas não querem sofrer, as pessoas querem rir, falar e engolir, não comer, engolir os alimentos que estão na mesa e comentam uns com os outros: “Eu não tenho pão!, tu tens!”, eu tenho iogurte com bolachas que gosto mais ", diz outro. Todos debatem numa confusão em que vários querem arrebatar o que tem a pessoa que está ao pé deles: até parecem adequar-se ao grito da funcionária que lhes disse que todos iam morrer, para poder controlar o acesso à comida. Mas não é necessário porque aparece a cozinheira de mãos nas ancas e grita violentamente: 

  • ”Pouco barulho, o lanche é para estarem calados e sem comentários, calem! e pela força do grito as pessoas assustam-se, calam e comem em silêncio.

 Então a cozinheira diz: 

  • "Lindos meninos, assim é que é, todos caladinhos e a comer como deve ser”.

Custa-me muito aceitar estes procedimentos. Como já tinha dito em capítulos anteriores, o agir das pessoas cuidadoras é pouco simpático para todos, é por meio do medo e da ameaça que o pessoal que vive na casa de repouso, obedece cheio de pânico de fazerem mal e receber mais uma gritada de quem deveria cuidá-los e tratá-los com simpatia, mas não conseguem. Havia os funcionários mais novos que eram amáveis e carinhosos com os utentes. Mas o peso do trabalho de sentar nas cadeiras conduzir ao refeitório, abrir os iogurtes, levantar as bolachas que caem no chão, levar os utentes de volta , nas cadeiras de roda e sentá-los nos seus sofás respectivos é uma tarefa pesada que dá cabo da amabilidade e do sorriso que estes funcionários tinham nos primeiros dias de trabalho. Conseguem realizar a tarefa mas mal acabam, refugiam-se na cozinha ou no pátio de trás para se contarem entre eles quem tinha conseguido melhor despachar os utentes. Estes, os utentes, ficam sós na sala de convívio a ver televisão em alto volume de som para apagar qualquer tipo de conversas entre eles e que só leva ao desânimo, à zanga, ao se bater uns com os outros, como crianças a lutar por um rebuçado. Comportamento que bem podia ser evitado se houvesse entretenimento onde fixar as energias não gastas de adultos maiores que antigamente lavravam a terra , lavavam roupa para outros, cozinhavam para os demais, …. Não têm agora como se entreter, como fixar seus pensamentos, como gastar suas energias, excepto gritar uns para os outros: “cala-te, estás doido, antigamente não eras assim!” e outras mordomias que a inatividade do dia inteiro os levam a exprimir. Não são apenas os gritos que se tentam calar mas também as conversas que se possam iniciar entre os utentes e que uma funcionária desactiva manda todos calar. 

Em suma, os utentes são vigiados. 

Lembro-me bem das conversas que eu tinha com o meu colega de aulas Michel Foucault, na Maison des Sciences de l’Homme e no Collège de France, Paris, que referia um livro que tinha escrito “Vigiar e Punir” onde ele sustém que a vigilância é a forma de orientar o pensamento para aquilo que quem vigia pretende. O título em francês é mais eloquente “Surveiller et Punir” que é obcecadamente, insidiosamente, ver o que faz o outro para retirar qualquer dinâmica de comportamento não adequado à calma procurada pelo vigilante. Não é em vão que a polícia em Espanha ou em países da América Latina são chamados “vigilantes”. Estes levem no seu pensamento o que a lei prescreve para um comportamento socialmente adequado e assim ninguém tem a ousadia de inventar condutas alternativas, autônomas e independentes. “Deus nos livre” dizem os sacerdotes da igreja católica, “Deus nos valha” costuma dizer a cozinheira do lar quando nada é feito como ela manda. A vigilância total reside na divindade que “vigia” e “pune” o que está mal feito pelas pessoas que interagem. Deus vê. Deus julga, Deus premeia ou retira favores. É este o esquema básico do que Michel Foucault propõe nos seus livros, retirados da sua observação da conduta social e da história. É isto o que os utentes usam entre eles para adequar o comportamento do vizinho ao comportamento por eles desejado. É o comportamento dos funcionários com os utentes; é o comportamento dos sacerdotes que falam do inferno com os seus fiéis ou dos políticos que usam o covid para fechar a população por anos nas suas casas e usar o trabalho a domicílio como forma de produção. 

Este comportamento alastra-se já desde a época da Idade Média onde quem sabe se pôr em posição de mandar manda e como era nessa época, quem não obedece é morto. Hoje em dia não se mata tão facilmente mas estabelece-se um comportamento de vergonha e atribui-se um diagnóstico negativo.

É o que me aconteceu com a neuróloga que devo visitar como a lei prescreve de 6 em 6 meses e que deve avaliar se ainda sou capaz de pensar, falar, articular um discurso lógico, entender a realidade. Tanto faz se eu sei ou não sei, se eu me comporto ou não como esperado de uma forma lógica, o diagnóstico está já feito nos livros e é me aplicado. Este senhor tem uma escrita compulsiva, este senhor não é capaz de planificar. Eu pergunto-me de onde foi retirado este diagnóstico? E lembro-me que antes tinha sido eu submetido a uma bateria de testes por uma outra neuróloga, simpática, bonita e querida que tinha concluído também a escrita compulsiva e a falta de planificação de vida que antes, num episódio decadente da minha vida tinha sido diagnosticado por psicólogos que me tinham examinado. Faz 12 anos que este diagnóstico foi emitido; faz 12 anos que já estava condenado ao mesmo diagnóstico por medo dos médicos de falhar na sua vigilância. Felizmente um neurólogo antigo que consultei recentemente, independente não envolvido em teorias de livros, mas ele criador duma teoria adaptada à realidade observada, disse com sorriso “sempre foi assim" referindo-se à insistência de classificar a minha escrita de compulsiva e ofereceu-se a ler este meu Diário de Vida e a escrever o seu prólogo.

Tanto pelo diagnóstico da neuróloga, tanto pelo comportamento de funcionários e utentes reitera-se o espreitar, vigiar, “surveiller” para punir. Punição que se manifesta por fechar velhos num lar, encher de calmantes e comprimidos para ninguém desobedecer. Criar grilhetas novas para os desesperados que procuram um agir adequado aos seus objetivos de vida que é comer, descansar, amar, rir. É assim que eu penso que nós os velhos somos atropelados, é assim que eu penso que nunca nos dão razão. Vigiar e punir é a base da estrutura religiosa e da vida social que incute o comportamento em que a punição final é o velho ser ignorado, encarcerado.

 

Professor Doutor Raul Iturra, Catedrático Emérito do ISCTE-IUL

Texto Editado por Claire Smith Antropóloga

Barra Mansa, Julho de 2024


quinta-feira, 11 de julho de 2024

Epaminondas Costalima


EU NUNCA ESTIVE AQUI...

 Para Agostinho da Silva

Ah Portugal!
Ninguém neste mundo agora sabe
em que dias remotos
um Vaz, um Nunes,
um Ribeiro, um Rosa
um Silva, um Costa Lima
deixaram a casa avoenga
e partiram 
para nunca mais.

Ninguém!
Nem mesmo os que, como eu,
seus velhor nomes portam
e ainda conservam
na alquimia do sangue
um certo contigente
do que lhes foi legado
originariamente.

Ah esses fantasmas ancestrais
insistem
em açular extintas
memórias.
Quem, senão eles,
de onde estão comandam 
esta vontade de rever
o nunca dantes visto
e de reviver
o que não foi jamais
por mim
vivido?

Assim, já não sei, Portugal
se sou eu que venho a ti
ou eles que regressam
disfarçados
dentro de mim.

Alguns por certo
cantaram enternecidos
suas próprias canções.

Daí,
este apelo do sangue
que antecede
as histórias ouvidas
na infância.
...velhos castelos
princesas e fadas
madrastas cruéis
inocentes órfãs
as incríveis perfídias
da Moura Torta.
E o herói
(ou o destino?)
aparecendo afinal
quando o bem
invariavelmente
triunfava sobre o mal.

E é deles também
o apelo que revive
impressões obscuras
- Trovas de amor ingênuo
Cantigas de Amigo -
das primeiras leituras. 

Ah esses fantasmas ancestrais
blasonam
seu grande destemor nas caravelas.
Daí, talvez,
este apelo do sangue
que se junta à lembrança mais funda
da epopéia lusíada.
Os versos de Camões
outrora declamados
agora compreendidos
quando piso, reverente,
as lájeas dos Jerónimos
onde repousam o Gama,
e o Vate,
e reis e infantes.
Onde um sepulcro jaz
vazio
à espera de um rei
que partiu
para nunca mais.

Ah Portugal!
Dói de tão intensa
a emoção que me envolve
nesta hora
ao percorrer 
em lentos passos
os enormes salões,
os corredores,
os terraços
de teus museus,
de teus palácios.

Silencioso, assisto
o desfilar de séculos
de tua longa história,
enquanto à minha volta
esses fantasmas ancestrais
comentam
que viveram, sofreram,
pelejaram
neste ou naquele episódio.

Acompanham-me, depois,
ao Terreiro do Paço,
à Torre de Belém,
ao Tejo!
que ainda é formoso
e é meu também.

E seguem-me
pelas ruas de Alfama
onde, inesperadamente,
tal como vieram
no ar se desvanecem.

De novo só,
no entanto ilhado
pelas lembranças
que ficaram em mim
do ler, do ouvir dizer.
Versos, romances,
lugares... A Baixa,
o Chiado, o Rossio...

Ah Portugal!
De tão familiares
não me surpreenderia
se visse agora
o vulto esguio de Eça
saindo da Havanesa;
ou, em um café anônimo,
Fernando Pessoa solitário
a meditar
ninguém sabe com qual
de seus heterônimos.

Ah Portugal!
Estas confusas emoções
recebe-as
com paciência e com bondade
que eu nunca estive aqui
e vim matar saudade.

Lisboa, Maio/81



A fotografia é do editor