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Eu podia dizer a quem nos ler que vou agora falar sobre o Zeca, mas não. É do Zeca que estou a falar quando afirmações, conselhos ou opiniões afloram como flores ou espadas de outros Zecas. O Zeca que eu conheci aqui na nossa Academia de Alhos Vedros, na nossa rua, ou na casita onde ainda moro, construi-se bebendo nas fontes que aqui invoco, que aqui recordo e com quem convirjo. O Zeca simples, humilde e enigmático que eu conheci era o nosso pombo-correio. Ele saltava de Setúbal para a Baixa da Banheira, Seixal, Barreiro, e trazia tarjetas para recolhas de auxílio aos presos políticos, escondia-se nas casas dos amigos, tinha a noite como companheira favorita e protectora. O Zeca com a sua guitarra, as velhas calças de bombazina e a sua esfiapada camisa aos quadradinhos, chegava e passado muito pouco tempo já toda a gente passava palavra: o Zeca está na Academia! E era a maré-cheia. A extraordinária juventude expandia-se, agigantava-se e aconteciam palavras, olhares, entusiasmos. Era contagiante. Quando o evocamos no velho cemitério da Piedade, em Setúbal, é o seu incomparável entusiasmo que pretendemos reavivar, tal como o ferreiro reaviva a forja, a padeira anima o forno, ou o guerreiro limpa as armas em tempo de paz com guerras no horizonte. É meu dever que cumpro com gosto, referir que é pela mão do meu velho amigo Dr. Afonso de Albuquerque que o Zeca Afonso desembarca, já não sei bem quando, aqui na Academia. Depois foram as sopinhas de couves quentinhas que a minha mulher servia ao Zeca. Partilhávamos então notícias sobre greves, prisões, torturas e até assassinatos. A PIDE estava lá fora, hedionda, traiçoeira e sempre pronta a saltar sobre nós. Pela mão do Zeca aqui vieram cantores, escritores, jornalistas, actores e políticos: Padre Fanhais, Fausto, Benedito, Letria, Castrim, Alice Vieira, Rogério Paulo, Yevetutchenco, Sotomaior Cardia, João Mota, Grupos de Teatro, etc. Nunca houve nada programado na Academia. A sala era o palco. Passava-se a palavra e a festa estava no ar. Nas ruas montávamos vigilância e muitas vezes corremos a PIDE à pedrada até ao comboio. Mercê de tudo isso sentimos na pele os interrogatórios, a prisão e a tortura. A Academia era uma casa permanentemente vigiada e sempre perseguida. O Zeca deixou marcas indeléveis de luta e solidariedade em toda a juventude da nossa terra e da nossa região. O Bairro Gouveia e as Arroteias foram os que mais livremente usufruíram a contagiante personalidade do amigo Zeca. Aqui na Academia nunca ninguém nos derrotou. A presença do Zeca era a nossa fortaleza e nós bem sabíamos que ainda havia o Luís Cília e o grande Amigão Adriano Correia de Oliveira, homem a quem me dobro e agradeço o muito que aprendemos. Não esquecer também o papel relevante que o Zeca teve na formação da juventude daqui. Essa mesma juventude que acorreu em força à grande manifestação de luta e pesar que constituiu o funeral do estudante Ribeiro Santos, militante do MRPP assassinado pela PIDE decorria o ano de 1972. Foi ainda acerca da Guerra Colonial que Zeca Afonso mais lutou e ensinou, sendo por ele e por outros camaradas dados os primeiros e mais importantes passos contra aquela guerra tão nefasta ao nosso povo e aos povos africanos.
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Leonel Coelho
Março/2010
3 comentários:
Sei que a tua terra é o mundo, e a tua pátria a língua portuguesa...
Mas, entre tantos nomes que recordas, dos grupos que passaram pela Academia e que conviveram com Zeca Afonso, não encontrei a citação a um grupo que teve a sua génese em Alhos Vedros. Refiro-me ao "Aqueduto".
Este grupo fez a sua estreia no Pinhal Novo e lá estiveram Zeca e Letria... que foram impedidos de cantar pela PIDE...
Foi o "Aqueduto" que cantou as suas canções...
Abraço,
António
Na altura em que chegou às minhas mãos o comentário do meu amigo Tapadinhas estava a comentar o Estudo Geral e as minhas notícias sobre o tema "Zeca Afonso mora aqui" com uma amiga que tem aqui, na Academia, o seu filho a aprender Ténis de Mesa e dizia-lhe que lamentava ter-me esquecido de nomes importantes como Urbano Tavares Rodrigues, Maria do Amparo, para além do imperdoável esquecimento do grande trabalho do grupo musical "Aqueduto". As minhas desculpas a todos e um acento tónico: Não se esqueçam sobreviventes desse formidável Aqueduto que também vocês se esqueceram de vós próprios. Eu continuo aqui, apareçam quando quiserem.
Leonel Coelho
só lamento é que os autarcas de agora (Barreiro e Moita), não deem o devido valor ás pessoas(cantores e grupos) que arriscaram a sua cabeça antes do 25 de abril oferecendo de bom gosto a sua solidariedade com o "canto livre".
Para o Tapadinhas e demais amigos um grande abraço do Márinho (Aqueduto)
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